O livro do mesmo nome está sendo publicado pela editora DIALÉTICA. Aqui no blog algumas correções estilísticas menores foram feitas.
SOBRE A
NATUREZA DA FILOSOFIA
________________________
Claudio Costa
ἡ Σίβυλλα
μαίνεσθαι φθέγξεται ἀστολιστὶ καὶ ἀκαλλώπιστα καὶ ἀμύριστα, διαπεραίνουσα χιλίων
ἐτῶν φωνῇ διὰ τοῦ θεοῦ.*
Heráclito
Nun scheint mir, gibt
es ausser der Arbeit des Kunstlers noch
eine andere, die
Welt sub specie aeterni einzufangen.
Es ist – glaube ich, der Weg des Gedankens,
der gleichsam über die Welt hinfliege und sie so lässt, wie sie
ist – sie von oben von Fluge betrachtend.**
Ludwig Wittgenstein
Science is what we know; philosophy is what
we don’t know. (…) Science is what we can prove to be true; philosophy is what
we can’t prove to be false.***
Bertrand Russell
The gem is of purest ray serene, but it is condemned to remain in
the dark, unfathom’d caves of ocean; the flower has its swetness, although
it is wasted in the desert air.****
Robert Merton
_____________
* A
sibila, com boca raivosa, proferindo palavras sem riso, sem adorno e sem
incenso, alcança mais de mil anos pelo deus que nela habita.
** Assim
parece que junto ao trabalho do artista há ainda outro, que é o de capturar o
mundo sub specie aeterni. É – eu creio, o caminho do pensamento que, por
assim dizer, voa sobre o mundo deixando-o como está – visto de cima, de seu voo.
***
Ciência é o que conhecemos; filosofia é o que não conhecemos. (...) Ciência é o
que podemos provar que é verdadeiro; filosofia é o que não podemos provar que é
falso.
****
A joia é de raio sereno e puríssimo, mas está condenada a permanecer nas
cavernas escuras e insondáveis do oceano; a flor tem sua doçura, embora se
perca no ar do deserto.
SUMÁRIO
PREFÁCIO
APRESENTAÇÃO
I.
INTRODUÇÃO:
OBJETIVOS E METODOLOGIA
1. Observações Metodológicas
II.
FILOSOFIA COMO
ANÁLISE CONCEITUAL
1. Os atalhos da crítica da linguagem
2. Filosofia como análise da linguagem
3. A falácia objetal na filosofia analítica
4. Para concluir: um paralelo com o Organon
aristotélico
III.
FILOSOFIA
COMO ANTECIPAÇÃO CONJECTURAL DA CIÊNCIA
1. O caráter inevitavelmente conjectural da
indagação filosófica
2. A ideia da filosofia como protociência
3. Origens e divisões da ciência
4. Alguns exemplos de insights filosóficos
protocientíficos
5. Fissão
6. O núcleo resistente de problemas filosóficos
residuais: duas hipóteses
7. Nossa ideia geral da ciência
8. Por uma concepção não-restritiva de ciência
9. Filosofia como protociência
10. Consequências da concepção proposta
11. Filosofia analítica: da decadência ao desastre
IV.
RELIGIÃO E
OS REMANESCENTES MÍSTICOS DA FILOSOFIA
1. Filosofia e religião: a abordagem genética
2. A lei comteana dos três estágios
3. Uma breve avaliação da lei de Comte
4. Filosofia como uma indagação transitória entre
religião e ciência
5. Conclusões
V.
A RELAÇÃO
ENTRE FILOSOFIA E ARTE
1. O sabor artístico de alguns escritos
filosóficos: similaridades externas
2. Similaridades internas entre filosofia e arte
3. Considerações adicionais
VI.
PARA UMA
EXPLICAÇÃO ABRANGENTE: INTEGRANDO
AS
CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS
1.
Filosofia
como uma atividade cultural derivada
2.
Uma explicação
integradora da atividade filosófica
3.
O triângulo
metafilosófico
4.
Para exemplificar
VII.
COROLÁRIOS
E PROSPECTOS
1. Formas da Filosofia
2. Três tradições filosóficas
3. Três períodos históricos na evolução da
filosofia
4. A filosofia linguístico-analítica nas rodas da
história
5. O futuro da filosofia
REFERÊNCIAS
PREFÁCIO
Há muitos anos publiquei um pequeno livro intitulado The
Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (UPA, 2002). Escrevi-o em
1999, enquanto pesquisador visitante, sob os auspícios da CAPES, na Universidade
da Califórnia em Berkeley, enquanto assistia aos formidáveis cursos de John Searle.
Apesar
da avaliação bastante positiva do parecerista da editora, o livro foi o
primeiro dentre os vários natimortos que, desde então, publiquei em inglês – trabalhos
que jamais receberam sequer uma resenha. Também, pudera! Recolhido em um autoimposto
exílio no acolhedor Nordeste do Brasil, portador de dislexia social (termo que
prefiro à palavra ‘autismo’), condição que me permitiu obter a benesse de uma limitação
ergonômica como professor da UFRN, eu vivia em quase completo isolamento pessoal
e intelectual. Esse isolamento me trouxe ao menos um bônus: independência e liberdade
intelectual para pesquisar o quanto, como e o que eu quisesse, mas com o ônus da
invisibilidade e da mais completa ignorância sobre como a comunidade de ideias
e o mercado editorial funcionam. Daí que, à época, eu ignorava que as grandes
editoras anglo-americanas detêm monopólio de um mercado majoritariamente voltado
para bibliotecas universitárias, mesmo que isso tenda a gerar um círculo vicioso.
Para piorar, essas grandes editoras acadêmicas, como a OUP e MIT-Press, sempre se
recusaram a avaliar manuscritos de um completo outsider como eu. Afinal,
quem levaria a sério livros escritos por um estrangeiro desconhecido, sem mencionar
ocultos interesses corporativistas? Restou-me publicar em editoras de menor
peso, como a UPA, a CSP e até mesmo a tradicional De Gruyter, o que,
acrescido à minha rejeição da mainstream, não parecia de bom augúrio.
Em 2005, decidi traduzir o livro para o
português e publicá-lo pela editora de minha universidade. O que eu não sabia era
que a editora não fazia distribuição. Ou seja: ainda hoje você poderá encontrar
os exemplares guardados no depósito!
Mas sou persistente e aprecio meu trabalho,
razão pela qual é nele que encontro minha maior recompensa (Tolstoy). Esta nova
edição, com um título mais apropriado, contém uma versão que, de tanto ser
revisada, acabou se transformando em um novo livro, que do primeiro guarda apenas
a espinha dorsal.
Há pessoas às quais devo a mais
sincera gratidão por terem contribuído para a formação de alguns valores intelectuais
que sustentam minhas ideias metafilosóficas. Meus professores Raul Landim e Guido
Antônio de Almeida, que juntamente com meus ex-colegas Fernando Fleck e Fernando
Rodrigues, foram os primeiros a me mostrar, há muitos anos, a importância da tradição
filosófica; Ernst Tugendhat, que me influenciou por sua defesa intransigente de
uma visão unificada do trabalho filosófico; John Searle, que me acolheu em Berkeley
quando escrevi a primeira versão do livro, e que foi, em seus cursos, um exemplo
vivo de como se pode realizar um trabalho independente e criativo em filosofia;
Susan Haack, que me advertiu sobre as dificuldades envolvidas na realização de
um trabalho realmente autônomo dentro do escolasticismo vigente na filosofia contemporânea.
Agradecimentos especiais ao professor Peter Stemmer,
que me recebeu em Konstanz durante o turbulento ano sabático de 2021, e ao
professor Francesco Orilla, que, nessa mesma época, gentilmente me convidou a
expor minhas ideias sobre metafilosofia na Universidade de Macerata. Sou também
grato aos professores e amigos Cinara Nahra e Eduardo Maciel, pelo apoio cultural
e humano. Acima de tudo, agradeço à Rita Cristina Fressa, a quem devo mais do
que seria capaz de reconhecer.
Por
fim, preciso admitir que a culpa de tudo o que se vai ler aqui é exclusivamente
minha.
APRESENTAÇÃO
Desejo começar com um breve resumo das ideias centrais deste livro, de modo
que seu eventual leitor possa perceber o fio condutor em meio a um texto repetitivo
e marcado por digressões. Meu objetivo principal foi esboçar uma teoria metafilosófica
da natureza da filosofia, mais sistemática, mais complexa e, no juízo de seu
autor, muito superior a eventuais concorrentes.
Esse trabalho
de teorização desenvolveu-se como uma tentativa de esclarecer o lugar cultural
dos problemas centrais legados pela tradição, mas também se estende parcialmente
a outras formas quaisquer de indagação filosófica. Tal abrangência só se tornou
possível por se tratar de uma teoria formulada sob uma perspectiva externa a
essas formas, o que permite um olhar histórico-cultural mais amplo do que o oferecido
por qualquer metafilosofia específica. A ideia geral que apresentarei a seguir não
é inédita, mas o que importa é sua exploração. Afinal, ter um caso suficientemente
duradouro e aprofundado com uma ideia não é o mesmo que ter tido um encontro meramente
casual com ela.
A teoria que desenvolvo neste livro nasceu de
uma investigação das conexões entre a filosofia e três atividades culturais
mais fundamentais: ciência, religião e arte. Ao considerar
essas relações, a filosofia é concebida como uma atividade cultural derivada –
uma amálgama de elementos originalmente presentes no compromisso com a busca da
verdade que se espera do pensamento científico, no ímpeto holístico inerente à religião
e nos recursos metafóricos e polissêmicos próprios da arte.
Talvez
o exemplo mais emblemático dessa amálgama seja a filosofia de Platão. Em sua
obra, revela-se uma busca pela verdade, em um esforço que se expressa nos
argumentos que visam compreender nosso estar no mundo, incluindo momentos de severa
autocrítica, como ocorre na primeira parte do diálogo Parmênides. Também
em Platão encontramos uma dimensão místico-totalizante, manifesta em seu aceite
de um reino transcendente das ideias e no apelo aos mitos órficos. Por fim, sua
filosofia apresenta um forte elemento estético, evidente na estrutura dramática
dos diálogos, no estilo refinado, na ironia, nas alegorias e nos mitos que
permeiam sua escrita.
Por razão de clareza, podemos representar graficamente
as três atividades culturais originárias, a ciência, a religião e a arte, como situadas
sobre os vértices de um triângulo metafilosófico no interior do qual se encontra
a filosofia, como no gráfico abaixo:

CIÊNCIA
FILOSOFIA
RELIGIÃO
ARTE
Dependendo da posição que uma filosofia ocupa no interior do triângulo, podemos
identificar diferentes formas de filosofia: a de Platão, por exemplo, mais
próxima do centro; a de Locke, algo mais próxima do vértice científico; a de
Hegel, mais próxima do vértice religioso; a de Nietzsche, mais próxima do
vértice artístico. A de Heidegger mais próxima do lado religioso-artístico. A
mesma coisa vale para as tradições filosóficas: de modo geral, a filosofia anglo-americana
tende a se aproximar do vértice científico; a filosofia alemã, do vértice religioso;
e a filosofia francesa, do vértice artístico.
Como
estratégia, foram investigadas as semelhanças e diferenças entre a filosofia e
essas outras formas de atividade cultural. Em sua proximidade com a ciência, a filosofia
revelou-se um esforço direcionado à aproximação da verdade e de resultados efetivos,
ainda que, por sua própria natureza, não possa alcançar uma forma plena sem
transformar-se em ciência.
Em sua
relação com a religião, ela mostrou-se inclinada a ampliar ao máximo a abrangência,
profundidade, elevação e direcionamento de suas sínteses, incorporando elementos
especulativos que inevitavelmente extrapolam os limites da investigação racional.
Por fim, em sua afinidade com a arte, a filosofia
pôde ser concebida como uma “arte da razão”, por sugestão: uma prática que integra
– ou tensiona – elementos conceituais, recorrendo à criatividade, à liberdade e
à flexibilidade proporcionadas pela força metafórica e polissêmica própria da atividade
artística.
As
relações entre filosofia, religião e arte foram concebidas como dinâmicas, sujeitas
a transformações ao longo da história. A filosofia ocidental nasceu na Grécia
antiga, em substituição às respostas mitológicas, o que não demonstra que ela própria
não possa ser substituída. Aqui pode-se notar que, com o gradual, mas constante,
e hoje exponencial desenvolvimento da ciência, a filosofia tem, aos poucos, se aproximado
mais da ciência e perdido parte de seus elos com a religião e com a arte, além
de ceder à ciência parcelas que outrora lhe eram constitutivas.
O caráter dinâmico da relação entre filosofia e
ciência me levou a supor que grande parte da filosofia possa ser concebida, mesmo
em seus núcleos historicamente centrais, como um esforço conjectural ou especulativo
antecipador da ciência – aquilo que denominei “protociência”. Essa hipótese é
reforçada pelo fato de que as ciências básicas, como a física, a química e a
biologia, foram todas especulativamente antecipadas pela filosofia.
Contudo,
a concepção da filosofia como um simples berçário das ciências tem sido frequentemente
apresentada como limitadora e empobrecedora de nossa compreensão da atividade filosófica.
Essa crítica revela-se pertinente sempre que temos em vista uma concepção estreita,
de cunho cientificista e reducionista, do que se entende por ciência ou mesmo por
filosofia.
Não obstante,
o conceito de ciência por mim adotado é suficientemente liberal e flexível para
evitar tais dificuldades. A ideia central pode ser encontrada em John Ziman, um
físico que investigou o funcionamento social da ciência do ponto de vista do que
os cientistas realmente chamam de ciência, definindo-a como conhecimento público
passível de consenso.
Desenvolvendo
a linha proposta por Ziman, defendi que a concepção mais intuitiva e plausível
da natureza da ciência é aquela que a define como qualquer investigação cujos
resultados são verdades susceptíveis de legitimação consensual por uma comunidade
crítica de ideias. Essa comunidade é entendida como aquela que satisfaz, de
forma suficiente, exigências como as de competência, veracidade, transparência
e liberdade – condições essenciais para a obtenção de consenso legítimo
quanto à verdade de suas conclusões.
Esse consenso legítimo, por sua vez, só pode
ser alcançado quando o objeto da investigação atende a condições mínimas de objetividade,
como o reconhecimento consensual, por parte da comunidade científica, do que se
conta como dados elementares e dos procedimentos válidos para a aproximação da
verdade – condições que irão variar muito de ciência para ciência. Uma vez satisfeitos
tais requisitos, torna-se possível formar uma comunidade crítica de ideias capaz
de produzir acordos consensuais legítimos acerca da verdade ou falsidade dos resultados
obtidos – um privilégio que pseudociências como a astrologia não possuem.
Diante
de uma concepção tão liberal e flexível de ciência, torna-se natural reconhecer
a possibilidade de que grande parte da tradição filosófica revele um caráter antecipador
daquela. A filosofia configura-se aqui, por contraste, como uma indagação voltada
para a verdade que, embora desenvolvida sob a pressuposição de uma comunidade
crítica de ideias – aqui entendida como o resultado de uma tradição de pensamento
com um lastro crítico cumulativo – não se mostrou, em seu tempo, capaz de alcançar
a possibilidade de obter acordos consensuais legítimos sobre a verdade
ou a falsidade dos seus resultados.
A assimetria
complementar entre filosofia e ciência, nesse contexto, é evidente, embora tenda
progressivamente a se dissipar, sobretudo ao reconhecermos que ciências básicas
foram especulativamente antecipadas pela filosofia.
Uma consequência importante de adotar a concepção
de filosofia como conjectura que, naquilo que possui de verdadeiro, pode antecipar
um conhecimento passível de legitimação consensual, é a relativização – e não a
simples refutação – da ideia de que a filosofia consiste em uma atividade de análise
conceitual. Essa ideia, quando examinada com atenção, remonta às indagações
socráticas do tipo “O que é X?”, nas quais X representa um termo conceitual a
ser analisado – em geral, termos como ‘coragem’, ‘amizade’, ‘conhecimento’, ‘justiça’,
‘o bem’. No presente caso, o X é a palavra ‘filosofia’. Daí que os métodos que empregarei
para analisar o conceito de filosofia não são, realmente, mais do que
uma forma de fazer o que, desde Sócrates, constitui o modus operandi da
prática filosófica.
I
INTRODUÇÃO:
OBJETIVOS E METODOLOGIA
Philosophy is not at its most interesting when it is talking about itself.
[A filosofia não é a mais interessante quando fala de si mesma.]
Bernard Williams
Entre os muitos problemas filosóficos, o da natureza da filosofia não é certamente
o mais importante nem o mais instigante. Não obstante, ele é o mais desconfortável
para o filósofo. Afinal, como pode alguém pretender produzir algo que chama de ‘filosofia’,
ou mesmo praticá-la corretamente, se não é sequer capaz de nos dizer o que está
tentando fazer?
Esse livro se propõe a explicar o que podemos
entender com a palavra ‘filosofia’; esclarecer a natureza de seu
questionamento, não sob uma perspectiva particular, mas com base em um exame abrangente
das conexões da filosofia com outras atividades culturais, levando em conta também
sua existência como fenômeno sócio-histórico.
Uma objeção recorrente à tentativa
de prover uma explicação unificada da natureza da filosofia é que se trata de uma
disciplina tão multifacetada e mutável que qualquer tentativa de ajustá-la a um
arcabouço teórico apropriado estaria sempre fadada ao fracasso. Afinal, as
nuvens não se classificam por suas formas. No entanto, seria mesmo impossível investigar
a filosofia teoricamente? Talvez, se partíssemos de critérios oriundos de uma perspectiva
suficientemente genérica e flexível, pudéssemos delinear seus contornos com
alguma sistematicidade? Afinal, de uma forma suficientemente vaga, a meteorologia
já de há muito classifica as nuvens, genericamente, por suas formas.
Nos capítulos seguintes, pretendo
demonstrar que é possível construir uma abordagem teórica geral da natureza da
filosofia. Ao longo deles, uma sequência de argumentos será articulada para elaborar
um arcabouço conceitual suficientemente amplo e robusto para identificar e mapear
as regiões mais relevantes do território filosófico. Antes de avançarmos, contudo,
algumas considerações metodológicas preliminares se justificam.
1. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Há dois aspectos metodológicos que merecem consideração. O primeiro refere-se
à distinção entre duas abordagens distintas da natureza da filosofia: a prescritivista
e a descritivista.
A abordagem prescritivista ambiciona definir o
que a filosofia deveria ser. Ela é uma proposta normativa sobre o que
merece ser chamado por esse nome. Para ilustrar essa diversidade de concepções,
reuni aqui algumas entre as muitas já apresentadas ao longo da história.
Durante
o conturbado período helenista (povoado por guerras, levantes e incertezas), em
escolas como a epicurista, a cética, a cínica e a estoica, a filosofia era sobretudo
imbuída de um caráter prático. Ela era, acima de tudo, um exercício espiritual
voltado à conquista de uma vida de sabedoria, capaz de nos proteger dos males
que nos afligem.[1]
Para Plotino, filósofo de forte inclinação mística,
a filosofia era “o supremamente precioso”: um exercício dialético de ascensão
espiritual da alma rumo à união com o princípio inefável que ele denominava “Uno”.
Saltando
quase dois milênios, Edmund Husserl, fundador da fenomenologia, propôs que a
filosofia deveria ser uma ciência rigorosa das estruturas essenciais da consciência.[2] Já seu discípulo rebelde, Martin Heidegger, via a
filosofia como uma investigação do “sentido do Ser” (was der Sinn von Sein
überhaupt ist), entendido como aquilo que torna possível qualquer ente.[3]
Ludwig Wittgenstein, um dos introdutores da filosofia
analítica, concebia a filosofia como um método para alcançar clareza conceitual,
capaz de apaziguar nossas inquietações — uma espécie de terapia contra o enfeitiçamento
do entendimento pelos meios da linguagem.[4]
Para
os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, a filosofia é a arte de
inventar e criar conceitos que nos permitam pensar o novo.[5] Em franco contraste, o positivista lógico Rudolf
Carnap defendeu que a filosofia deveria limitar-se à investigação da sintaxe
lógica da linguagem científica.[6]
O
problema das prescrições filosóficas é que refletem apenas aquilo que determinados
filósofos acreditavam que a filosofia deveria ser, com base em suas próprias concepções.
Isso, entretanto, não oferece qualquer garantia de que tais definições possam
ser generalizadas para outros casos ou tradições que também reivindicam o nome
de filosofia.
Uma abordagem
prescritivista não pode ser dita verdadeira ou falsa simplesmente por ser comparada
à prática histórica da filosofia, posto que não é uma abordagem destinada a esclarecer
essa prática. Com relação à história efetiva da filosofia, a abordagem prescritivista
só pode ser bem-sucedida se for adotada, e mal-sucedida se for ignorada.
Embora a não-adoção seja, em geral, a regra, algumas prescrições filosóficas
alcançaram considerável êxito. O existencialismo, por exemplo, que coloca o indivíduo,
em sua experiência de estar no mundo, no centro da reflexão, foi inaugurado por
Sören Kierkegaard e exerceu profunda influência sobre filósofos como Heidegger,
Sartre e Camus. No entanto, acabou sendo deflacionado pelos estruturalistas, especialmente
pelo anti-humanismo de Michel Foucault.
Outras
prescrições não só tiveram êxito, como também exerceram influência crucial e duradoura.
A virada epistemológica imprimida à filosofia moderna por Descartes, por exemplo,
substituiu o ponto de partida metafísico da tradição antiga e medieval por um ponto
de partida constituído pela rigorosa investigação da natureza e dos limites de
nossa capacidade de conhecer – para só então ousar desenvolver uma metafísica fundada
no que pode ser efetivamente conhecido. Esta prescrição revelou-se extremamente
bem-sucedida, tornando-se a base das filosofias de Locke, Hume e Kant. Mais tarde,
porém, os idealistas alemães, Fichte, Schelling e Hegel, encarregaram-se de deflacioná-la
ao propor um novo e insólito ponto de partida holístico e, novamente, metafísico.
Afinal, que importância tem a questão de nosso acesso epistêmico ao mundo externo,
se tudo é concebido como ideias constitutivas do evolver dialético do absoluto?
Algo semelhante pode ser dito sobre
a virada linguística promovida por Frege, Russell e Wittgenstein na primeira
metade do século XX – uma transformação que ainda hoje preserva boa parte de sua
influência. Ao propor o que a filosofia deveria ser, a abordagem prescritivista
permanece desinteressada da prática filosófica passada. Em termos figurados, ela
“olha para o futuro”.
A abordagem descritivista, por sua vez, olha para
o passado. Ela não pretende dizer o que a filosofia deveria ser, mas sim esclarecer
o que a filosofia tem sido ao longo da história. Essa abordagem busca
tornar explícitas as condições criteriais que a comunidade filosófica,
de modo tácito, sempre admitiu como meio de identificar o que se entende por
filosofia – seja ao longo de toda a trajetória da disciplina, seja em segmentos
históricos ou regionais mais delimitados.
Explicações descritivistas são mais comumente
encontradas em dicionários de filosofia e em livros-texto do que nas doutrinas
dos próprios filósofos, posto que, como já notei, os últimos costumam estar comprometidos
com o avanço de suas próprias perspectivas, muitas vezes de caráter revisionário.
Ainda assim, esforços para sustentar um paradigma
descritivista também podem ser encontrados em algumas doutrinas filosóficas. Aristóteles,
por exemplo – numa época em que não havia qualquer separação explícita entre
filosofia e ciência – entendia a filosofia como decorrente do thauma (θαῦμα),
termo grego que pode ser traduzido como espanto, admiração, perplexidade, assombro
diante do mundo.[7] No
que diz respeito à sua filosofia primeira, a metafísica, ele a concebia como a investigação
do “ser enquanto ser”[8],
definição parafraseada à perfeição por E. A. Taylor, um século atrás, como a busca
dos “princípios estruturantes universais sem os quais não poderia existir
nenhum sistema ordenado de objetos conhecíveis.”[9] Esse domínio da investigação filosófica tem sido
investigado, ainda nos dias que correm, pela metafísica analítica.
De
modo mais abrangente, filósofos clássicos – de Platão, Aristóteles e Tomás de
Aquino, passando por Spinoza e Leibniz, até Kant e Hegel – viam a filosofia
como aquilo que Wilhelm Dilthey[10]
chamou de visão de mundo (Weltanschauung). Entendiam-na de forma
ampla, como a busca por uma concepção geral do mundo e do lugar que o homem
nele ocupa – um modo de ver abrangente que, mesmo em formas menos ambiciosas,
ainda hoje conserva seu apelo.[11]
No domínio da filosofia analítica, Ernst Tugendhat, já na segunda metade do século
XX, escreveu que “o objetivo da filosofia é a elucidação da rede formada pelos conceitos
constitutivos de nosso entendimento do mundo como um todo”.[12]
Uma formulação linguisticamente enfatizada e menos ambiciosa, mas que reafirma
em essência uma concepção abrangente da tarefa filosófica.
O que
unifica e confere legitimidade a todas essas caracterizações é o esforço descritivista
visando cobrir, tanto quanto possível, a extensão do que tem sido centralmente chamado
de filosofia na tradição ocidental.
O tempo parece trabalhar a favor das abordagens
descritivistas. É possível que, com o avanço da história, o espaço para prescrições
filosóficas se torne progressivamente menor, enquanto as abordagens descritivistas
ganhem cada vez mais relevância. Se um dia a filosofia chegar ao fim, não haverá
mais espaço para prescrições, apenas para descrições do que ela já foi. Hoje, diante
de diagnósticos que apontam para a decadência da filosofia[13], ou
mesmo para seu fim,[14] a abordagem
descritivista, que será adotada nesse livro, revela-se particularmente interessante,
razão pela qual será adotada.[15]
Também é oportuno esclarecer em que sentido
empregarei o termo ‘filosofia’ sob uma perspectiva descritivista. A investigação
aqui proposta concentrar-se-á na tentativa de esclarecer o sentido mais próprio,
acadêmico, erudito ou tradicional da palavra – aquele que a
tradição filosófica ocidental tem historicamente utilizado para referir-se a si
mesma, e que se encontra exemplarmente ilustrado nas obras de seus mais proeminentes
filósofos.
Espero
poder tornar esse sentido tradicional mais explícito, por meio do esclarecimento
dos critérios que orientam o uso referencial da palavra ‘filosofia’, de
modo a identificar o que lhe pertence de forma mais legítima e o que dela se afasta.
Nesse sentido amplo, manterei consonância com o método de análise conceptual
promulgado por filósofos como o último Wittgenstein, agora aplicado ao conceito
de filosofia tal como foi geralmente empregado na tradição filosófica ocidental.
Mas o que nos autoriza a esperar que seja possível
oferecer uma explicação unificadora da natureza da filosofia por meio da análise
conceptual? A tarefa parece, prima facie, plausível – não apenas porque
temos (talvez enganosamente) o sentimento de que o termo ‘filosofia’ possui algum
sentido tradicional ou acadêmico relativamente unificado, mas também porque
pessoas devidamente treinadas demonstram-se capazes de identificar e distinguir,
com razoável segurança, o que conta mais ou menos como filosofia nesse sentido.
Dessa
constatação segue-se que, por meio de um exame cuidadoso das aplicações
históricas do termo, nós devemos, em princípio, ser capazes de tornar explícitas
as condições que têm guiado nossas decisões de empregá-lo ou não, organizando-as
sob a forma de uma caracterização metafilosófica abrangente.
A pretensão de atribuir um sentido unívoco ao
termo conceitual ‘filosofia’ é, certamente, ilusória. No entanto, adotarei
aqui, como hipótese de trabalho, a tese de que a tradição filosófica fornece um
“sentido focal” desse termo – uma hipótese que será avaliada com base nos
resultados que virá a produzir.
Nesse
ponto, algumas considerações sobre a análise conceitual podem ser introduzidas
à guisa de esclarecimento. É fato que, em grande medida, somos inconscientes dos
critérios que aplicamos para identificar os designata dos termos gerais
centrais de nossa linguagem natural – especialmente aqueles de interesse filosófico,
como ‘conhecimento’, ‘verdade’, ‘existência’, ‘causalidade’, ‘bem’, ‘justiça’ e
mesmo ‘significado’.
A razão fundamental dessa falta de consciência
é análoga àquela que nos permite falar corretamente o português, mesmo que não
tenhamos estudado as regras de sua gramática. Como observou P. F. Strawson,[16] quando
a primeira gramática do castelhano foi apresentada à rainha Isabela I de Castela,
ela queria saber qual utilidade isso poderia ter, já que todos falavam
corretamente o idioma. Afinal, a gramática foi elaborada com base no que pessoas
cultas, como ela própria, já falavam e escreviam. O que a rainha não percebeu foi
que o conhecimento que possuíam das regras da língua era automatizado, implícito,
tácito. O que os gramáticos fizeram foi apenas tornar essas regras explícitas –
o que, sem dúvida, também aprimora a capacidade de detectar desvios e erros.
A ideia central dos defensores da
filosofia como análise conceitual é semelhante: temos conhecimento inconsciente
ou implícito das regras conceituais que conferem significado a termos centrais
para o nosso entendimento do mundo, como ‘conhecimento’, ‘verdade’, ‘justiça’, ‘bem’
– mas não sabemos articulá-los explicitamente. E a razão disso, como bem salientou
Ernst Tugendhat, é que essas regras conceituais são aprendidas ainda na infância,
não por meio de definições formais, mas pela correção interpessoal, feita com auxílio
de exemplos positivos e negativos.[17]
Considere,
por exemplo, um termo conceitual bastante simples como ‘cadeira’. Todos sabemos
usar essa palavra corretamente, pois aprendemos a usá-la desde a infância por
meio de exemplos. No entanto, quando somos desafiados a dizer o que entendemos por
‘cadeira’, deixamos de nos sentir seguros. Como sou um verdadeiro especialista no
conceito de cadeira, posso lhe assegurar que a seguinte definição explicitadora
de seu sentido é correta:
Uma cadeira é um banco não-veicular provido de encosto, feito para uma só
pessoa se sentar de cada vez.[18]
Essa definição se aplica a cadeiras de mesa, de praia, de balanço, de rodas,
cadeiras elétricas e tronos, ao mesmo tempo que exclui bancos (sem encosto), sofás
(feitos para mais de uma pessoa se sentar), assentos veiculares (como os de
carros ou aviões) e formações naturais esculpidas na rocha pelas intempéries (que
podem parecer cadeiras, mas não são artefatos). Se uma cadeira normal for transferida
para um país onde as pessoas são extremamente magras e mais de uma delas puder
se sentar nela ao mesmo tempo, ela continua sendo uma cadeira, pois, como artefato,
foi feita para uma só pessoa se sentar. Se, em alguma circunstância, for
decidido que só uma determinada pessoa poderá se sentar em um determinado sofá,
ele não será, por isso, transformado em cadeira, pois não foi feito para que uma
só pessoa se sentasse nele de cada vez.
Se já enfrentamos dificuldades para definir explicitamente
algo tão cotidiano quanto uma cadeira, imagine o desafio envolvido na explicitação
de conceitos centrais ao nosso entendimento do mundo – como os de conhecimento,
verdade, justiça e bem – cuja estrutura definicional deve ser muito mais complexa!
Filósofos
como J. L. Austin perceberam que muitos termos de importância filosófica, como conhecimento,
verdade e justiça, exprimem estruturas conceituais permanentes, originariamente
incrustadas em nossa compreensão do mundo desde tempos imemoriais. Mas que dizer
do termo conceitual ‘filosofia’? Aqui poderia surgir a objeção de que ele não
pertence à classe dos conceitos centrais ao nosso entendimento do mundo, sendo de
surgimento e de desenvolvimento muito mais recentes. Daí que não há, associadas
a ele, regras criteriais implícitas a serem resgatadas.
Contudo, a objeção acima é insuficiente, primeiro
porque a estrutura conceitual expressa pela palavra ‘filosofia’ é certamente muito
mais complexa do que a expressa por uma palavra como ‘cadeira’, que, mesmo
assim, já é capaz de confundir-nos. Depois, porque somos inconscientes dos critérios
de aplicação de muitos termos técnicos relativamente recentes, como ‘explicação’,
‘previsão’, ‘observação’ e ‘lei da natureza’, tal como são usados nas ciências
particulares. Se perguntarmos a um cientista, filosoficamente não informado, o
que significa ‘explicação científica’, ele poderá sentir dificuldade em encontrar
uma resposta inequívoca, sendo forçado a apelar a exemplos. É tarefa do filósofo
da ciência tornar explícitos os complexos significados desses termos.
Ora, por que essa mesma ideia não poderia aplicar-se
também à palavra ‘filosofia’? Afinal, o conceito de filosofia foi introduzido
em nossa cultura acadêmica já há muito tempo, tendo passado por um desenvolvimento
interno subsequente, sustentado pela natureza própria da atividade filosófica e
pelos novos objetos que, gradualmente, lhe foram atribuídos como temas de
investigação.
Se formos capazes de expor os critérios que
permitem identificar o que chamamos de filosofia de maneira suficientemente
esclarecedora, justificando, assim, o emprego da palavra ao longo da história da
filosofia ocidental, estaremos diante de uma análise filosoficamente interessante
desse conceito. Em outras palavras, elaboraremos uma teoria da natureza da filosofia.
É possível que, por esse meio, não apenas compreendamos melhor o que o filósofo
busca realizar, mas também estejamos mais aptos a evitar práticas enganosas que
se apresentam sob o nome de filosofia.
O segundo ponto que desejo abordar
refere-se a dois vícios opostos que podem afetar tanto as nossas teorias metafilosóficas
quanto as filosóficas: o ampliacionismo e o reducionismo. Eis
como podemos defini-los:
Ampliacionismo: uma postura
procedimental que tende a produzir arcabouços teóricos que incluem mais do
que são capazes de sustentar.
Reducionismo: ao
contrário, define-se como uma postura procedimental que tende a produzir ideias
e teorias que excluem mais do que seria razoável.
Embora possam ser considerados defeitos, esses expedientes podem ser úteis
e inevitáveis. A escolha pode tornar-se inevitável em termos de custo-benefício,
posto que há obras ampliacionistas extraordinárias, como a filosofia de Hegel, que
tenta abarcar o absoluto por meio da razão dialética, ou a fenomenologia de Husserl,
que busca fundar todo o saber na experiência vivida. Por outro lado, há contribuições
reducionistas igualmente notáveis, como a teoria da referência de Saul Kripke[19], que
reformula questões centrais da teoria da referência com precisão lógica, para tal
precisando simplificar e distorcer elementos cognitivos e comunicacionais indispensáveis[20]; ou a
abordagem analítica de W. V. O. Quine, que produziu desafios frutíferos como os
da inescrutabilidade da referência e da indeterminação da tradução, os quais, no
entanto, excluem fatores socioculturais e intencionais inevitavelmente envolvidos.
Também vale mencionar o Wittgenstein tardio, cuja filosofia “terapêutica” visava,
sobretudo, dissolver problemas filosóficos por meio de sua decomposição em usos
linguísticos cotidianos — uma forma de reducionismo, uma vez que nem todos os
problemas filosóficos se deixam reduzir a confusões linguísticas.
Essas não são críticas aplicáveis a Aristóteles,
cuja filosofia parece escapar à dicotomia mencionada ao ajustar seu arcabouço conceitual
à amplitude temática, sem sacrificar a profundidade analítica nem a abrangência
especulativa.
Em metafilosofia,
a definição de filosofia como uma explicação do mundo como um todo e do lugar
que o ser humano nele ocupa é ampliativa: embora extremamente inclusiva,
é, por certo, excessivamente vaga e pouco informativa. Ao examiná-la mais de perto,
percebemos que ela falha em oferecer sequer uma condição necessária — afinal, muitas
obras filosóficas relevantes estão longe de alcançar tal abrangência — e
tampouco fornece uma condição suficiente, já que a religião também se propõe a
realizar o mesmo intento. Trata-se, portanto, de uma definição demasiadamente
ampla.
Na tentativa de escapar dessa limitação,
frequentemente optamos pelo caminho oposto: o reducionismo. Por meio
dele, conseguimos formular definições mais precisas, mas à custa da generalidade.
Um exemplo emblemático, no campo da metafilosofia, é a notória definição carnapiana
da filosofia como investigação da sintaxe lógica da linguagem. Trata-se de um
caso extremo de reducionismo, pagando pela vantagem da precisão um exorbitante preço
em exclusão.
A teoria descritivista abrangente da natureza
da filosofia a ser desenvolvida nesse livro busca preservar a extensão do objeto
de investigação sem incorrer nas limitações de uma caracterização insuficientemente
informativa. O propósito é evidenciar o lugar da filosofia no território mais
amplo da cultura.
Nesse
sentido, uma sugestão prima facie plausível é a de que a filosofia tradicional
é um produto derivado, que emergiu da confluência de três atividades culturais
fundamentais: ciência, religião e arte. Encontrei essa ideia expressa em Johannes
Hesse:
Se desejamos definir resumidamente a posição da
filosofia no sistema da cultura, devemos dizer o seguinte: a filosofia tem duas
faces; uma dirige-se à religião e à arte, a outra à ciência. Tem de comum com aquelas
o dirigir-se ao conjunto da realidade; com esta, o seu caráter teórico.[21]
Sendo um pastor erudito, Hessen
associou religião e arte como expressões de uma mesma dimensão espiritual, o que
nos lembra a conhecida tese de Hegel, segundo a qual ambas são manifestações do
absoluto – a arte como forma sensível e a religião como forma representacional.
A mesma ideia encontrei também em Wilhelm Dilthey:
Metafísica é um estranho anfíbio... Uma de suas
faces está voltada para a religião e a poesia, a outra, para a ciência. Mas não
é nem ciência nesse sentido, nem arte nem religião.[22]
Certamente, a ideia é intuitiva
o suficiente para poder ser encontrada em outros textos e ter origens mais remotas.
Feitas
essas considerações, proponho, como hipótese de trabalho, a suposição de que a
filosofia possui uma determinação cultural tríplice – ciência, religião e arte –,
com o objetivo de desenvolver, ao longo desse livro, a vaga intuição que nela
se inscreve, tornando-a mais tangível e conceptualmente robusta.
Antes disso, porém, dado que nossos
resultados dependerão de uma análise conceitual suficientemente rigorosa, é
oportuno examinar, com alguma atenção, a natureza do método analítico a ser adotado.
Esse será o tema do próximo capítulo.
II
FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL
Eine ganze Wolke von Philosophie kondensiert zu einem Tröpfchen Sprachlehre.
[Toda uma nuvem de
filosofia se condensa em uma gota de gramática.]
Wittgenstein
Quando, na condição de metafilósofos descritivistas, lançamos um olhar sobre
a história da filosofia, deparamo-nos com explicações de sua natureza que somos
tentados a rejeitar sem maiores considerações. É o caso, por exemplo, de toda
tentativa de fundamentar a filosofia em um objeto ou em um método próprio. Afinal,
há quase tanta diversidade de objetos e métodos quanto de filosofias e movimentos
filosóficos.[23]
Além disso, as muitas subdivisões
da filosofia teórica (voltada para o input do mundo sobre o sujeito) e da
filosofia prática (voltada para o output do sujeito sobre o mundo) parecem
corresponder a uma variedade igualmente ampla de objetos específicos, com metodologias
que variam conforme as exigências de cada domínio.
Somente o metafilósofo de orientação prescritivista
ainda pode nutrir a esperança (ou a fantasia) de delimitar o objeto de investigação
próprio da filosofia. Já o metafilósofo descritivista tenderá a ver tais tentativas
como inerentemente reducionistas ou ampliativas, por estreitarem ou alargarem as
fronteiras da filosofia para além dos limites que lhe seriam os mais adequados.
Como minha intenção é mais construtiva do que
crítica, concentrar-me-ei no exame das metodologias analíticas em filosofia. A concepção
subjaz a desenvolvimentos particularmente relevantes da filosofia do início do século
XX, em especial à ideia extraordinariamente influente de que o método próprio da
filosofia é o da análise conceitual e de que o objeto próprio da filosofia
é a estrutura conceitual ou, como Ernst Tugendhat descreveu, a estrutura
dos conceitos mais centrais ao nosso entendimento do mundo.[24]
Uma tal concepção foi, de maneiras diversas, sustentada
por filósofos como Wittgenstein, Bertrand Russell, G. E. Moore, Friedrich Waismann,
A. J. Ayer, P. F. Strawson, Michael Dummett e R. E. Brandom, entre muitos outros.
Além disso, como veremos, ela pode ser estendida à tradição filosófica se nos lembrarmos
do Sócrates dos diálogos platônicos – cuja indagação recorrente assumia a forma
“O que é X”, em que o X vinha no lugar de termos conceituais como ‘amizade’, ‘amor’,
‘beleza’, ‘justiça’, ‘conhecimento’, etc.
A concepção da filosofia como
análise conceitual foi seriamente desafiada pela assim-chamada “virada naturalista”,
inicialmente promovida por W. V. O. Quine, sob uma perspectiva deflacionária.[25] Para ele,
a filosofia não se reduz à mera investigação linguístico-conceitual, pois ela não
se distingue essencialmente da ciência empírica.
Aliás, em seu entendimento, não há sequer uma
distinção real a ser traçada entre ambas: a filosofia forma um continuum com
a ciência, e as distinções que podem ser traçadas são meramente artificiais, como
as fronteiras entre os diversos estados de um mesmo país.[26]
Quaisquer
que sejam as vantagens desse ponto de vista, persiste o problema de que nenhum advogado
da ideia de que a ciência e a filosofia se distinguem apenas arbitrariamente é
capaz de explicar por que nos sentimos tão relutantes em conceber as fronteiras
entre a ciência e a filosofia como resultado de acordos arbitrários. A tese quineana
– segundo a qual a distinção entre filosofia e ciência decorre de uma decisão artificial
– tampouco esclarece por que resistimos tão fortemente à ideia de modificar
essas fronteiras – como ao reclassificar como ciência o que tem sido chamado de
filosofia, e vice-versa. Mais ainda, e esse ponto me parece decisivo, essa tese
tampouco explica por que somos capazes de identificar uma nova teoria como
filosófica ou científica sem recorrer a nenhum acordo convencional.
A concepção
da filosofia como análise conceitual tinha, ao menos, o mérito de tentar responder
a essas questões por meio da explicitação dos traços distintivos da prática filosófica.
Além disso, reconhecer que a filosofia se distingue da ciência por seus próprios
meios não implica, necessariamente, a admissão do que Timothy Williamson chamou
de excepcionalismo – a ideia de que os métodos da filosofia seriam intrinsecamente
próprios, essencialmente distintos e, supostamente, superiores aos da ciência.[27]
Embora exista uma variedade de versões da concepção
de filosofia como análise conceitual, proponho reduzi-las aqui de modo um tanto
artificial a duas formas gerais, no intuito de melhor evidenciar as qualidades
e limitações intrínsecas a essa concepção. Chamarei essas duas variantes de filosofia
de:
a) crítica da linguagem e de
b) análise da linguagem.
Pela crítica da linguagem, buscamos analisar ou elucidar conceitos com o
intuito de dissolver confusões filosóficas. Já, pela análise da linguagem, o
objetivo é examinar os conceitos, visando a uma compreensão mais profunda de
nossa arquitetura conceitual. A seguir, explicarei o que entendo por cada uma
dessas formas de abordagem filosófica, argumentando que, embora ambas tenham seus
méritos metodológicos, elas falham em oferecer uma explicação adequada da natureza
própria da filosofia.
1.
OS ATALHOS
DA CRÍTICA
DA LINGUAGEM
A crítica da linguagem busca evidenciar falhas em argumentos filosóficos,
muitos deles oriundos da filosofia tradicional. Historicamente, isso tem sido realizado
de duas maneiras. A primeira consiste na aplicação de métodos formais à investigação
dos termos e enunciados filosóficos – o que chamarei de análise de orientação
formal. A segunda envolve um exame cuidadoso dos significados ou usos
das expressões de nossa linguagem natural em seus contextos interpessoais –
o que chamo de análise de orientação comunicacional.
Utilizo essas expressões, respectivamente, em
substituição a uma distinção de conotação mais limitada, a velha distinção entre
a filosofia da linguagem ideal, guiada pela lógica matemática de
Frege e Russell, e a filosofia da linguagem ordinária, guiada pela linguagem
do cotidiano, como no segundo Wittgenstein e entre os filósofos de Oxford de meados
do século passado.[28]
Digo que essa distinção é hoje limitada porque
embora ela leve em conta a distinção entre a filosofia do atomismo lógico em
Russell e no Tractatus como exemplos de filosofia da linguagem ideal, e a
filosofia terapêutica de Wittgenstein nas Investigações filosóficas, além
do trabalho dos filósofos da de Oxford como Gilbert Ryle, J. L. Austin e P. F. Strawson,
como exemplos de filosofia da linguagem ordinária, ela não contempla os desenvolvimentos
posteriores dessas duas tradições, uma de orientação mais formalista, outra de
viés empirista.
Ela não
leva em conta, por exemplo, a oposição entre os herdeiros da filosofia da linguagem
ideal, que se utilizaram de novos instrumentos formais, como a lógica modal em Kripke,
Putnam e Kaplan, além do caso dos herdeiros posteriores muito mais sistemáticos
da filosofia da linguagem ordinária, como John Searle, Paul Grice e mesmo o Jürgen
Habermas da pragmática universal. Daí que a distinção entre filosofias de orientação
formal e comunicacional se justifica aqui pela sua maior amplitude. A primeira,
propondo desafios metafísicos instigantes, mas de plausibilidade por vezes questionável;
a segunda, propondo respostas mais intuitivas, mas que podem ser insuficientes
e até mesmo triviais.
A crítica da linguagem de orientação formal
pode ser ilustrada por meio das investigações de filósofos analíticos, como Bertrand
Russell.[29]
Um exemplo ajuda a esclarecer: uma razão subjacente à criação da doutrina das ideias
por Platão teria sido uma confusão decorrente da identidade superficial entre as
estruturas gramaticais de sentenças como: “A beleza é agradável” e “Sócrates
é calvo”.
Induzido por essa identidade, Platão teria concluído
que, desde que o sujeito de sentenças como a última é um nome próprio referindo-se
a um particular, o sujeito de sentenças como a primeira também precisa ser um
nome próprio, devendo ter como referência um particular que ele chamou de a-beleza-em-si-mesma.
Contudo, como não é possível encontrar a “beleza-em-si-mesma” no mundo visível,
ela deve habitar um mundo tão somente inteligível: o mundo transcendente das ideias.
Contra essa conclusão, a crítica da linguagem,
baseada na moderna lógica dos predicados, torna claro que as estruturas lógicas
dos dois tipos de sentença são apenas aparentemente idênticas. Na verdade, a primeira
sentença tem uma estrutura lógica muito diversa de sua estrutura gramatical aparente.
Enquanto “Sócrates (s) é calvo (C)” tem a forma lógica “Cs”, uma sentença como “A
beleza é agradável” é logicamente analisável como uma abreviação de “Para todo x,
se x é belo (B), então x é agradável (A)”, ou, formalmente: “(x) (Bx
→ Ax)”. Nessa análise, o pretenso nome próprio ‘a beleza’ desaparece, enquanto ‘é
belo’ revela-se uma simples expressão predicativa.
Essa distinção sugere que, por desconhecer a
lógica fregeana, Platão foi induzido ao erro pela identidade superficial da estrutura
sujeito-predicado em ambos os tipos de enunciados. Tal confusão gramatical
teria fornecido uma justificativa ilusória para sua formulação de uma ontologia
de ideias transcendentes – uma construção metafísica de inegável importância histórica,
mas cujos fundamentos, à luz da análise lógica contemporânea, tornaram-se passíveis
de questionamento.
Vejamos agora um exemplo de crítica à
linguagem de orientação comunicacional, bem próxima do que Wittgenstein chamou
de “filosofia terapêutica”. Trata-se da exposição das confusões filosóficas decorrentes
do argumento da ilusão. Esse argumento foi desenvolvido em oposição ao realismo
direto ou ingênuo, segundo o qual temos acesso direto ao mundo
externo. Seu propósito era a defesa do realismo indireto, segundo o qual
nosso acesso ao mundo externo se dá pela intermediação dos sense-data (dados
sensórios), ou mesmo a defesa de um idealismo fenomenalista, que nega o acesso
a um mundo material externo que vá além dos sense-data.
Esse argumento parte de casos em que objetos parecem
diferentes do que realmente são, como a colher que, ao ser parcialmente imersa
em um copo d’água, parece entortada. A análise desses casos parece conduzir à conclusão
de que percebemos os objetos de forma indireta: o que percebemos diretamente não
são os objetos materiais, mas apenas nossas impressões sensoriais deles: os sense-data.
Opondo-se a tal conclusão, críticos da linguagem,
como J. L. Austin, argumentaram que não dizemos que não percebemos diretamente
os objetos, mas apenas suas representações; o que realmente dizemos é que vemos
os objetos (como a colher no copo d’água) diretamente, embora não
como eles realmente são. Assim, quando olho para o meu
nariz com ambos os olhos, não afirmo que vejo dois narizes, mas antes que
vejo o meu próprio nariz duplicado (John Searle). Do mesmo modo, quando vejo
uma moeda como elíptica, não digo que estou vendo um objeto elíptico, mas sim que
estou vendo um objeto redondo que parece elíptico.[30]
Os dois exemplos recém-apresentados evidenciam
as qualidades da crítica da linguagem, mas também revelam seus limites. Pois é evidente
que, mesmo sem a doutrina platônica das ideias, o problema continua a existir:
trata-se de explicar como podemos dizer o mesmo de muitos, ou seja, a
possibilidade de predicação, ou ainda, a função dos termos gerais no âmbito do
conhecimento. E também as objeções ao realismo direto (tanto na forma fenomenal
quanto na forma científica) do argumento da ilusão não parecem ter sido completamente
esgotadas por uma crítica puramente linguística.
Uma razão para pensar assim é
que os argumentos que sustentam a admissão de ideias como fundamento explicativo
da generalidade e da predicação, bem como aqueles que defendem a admissão dos sense-data
como os objetos mais imediatos da experiência (mediando inevitavelmente nosso
acesso ao mundo externo), parecem ter algum conteúdo substantivo subjacente. E
parece que esse conteúdo só pode ser plenamente refutado de forma definitiva por
meio de considerações teóricas mais amplas.
No caso do problema platônico de como podemos aplicar
termos gerais, isso pode ser feito por meio de uma análise do que Ernst
Tugendhat chamou
de regras de aplicação dos termos gerais.[31] No segundo
caso – o do problema da percepção – temos o fato de que embora tenhamos acesso
visual imediato aos sense-data (como demonstrado pela reprodução computacional
de imagens mentais via fMRI), a mente é capaz de reinterpretar esses sense-data,
“projetando-os” no mundo externo como objetos perceptuais, na medida em que eles
satisfazem os diferentes critérios de realidade externa, tais como máxima
intensidade sensorial, independência da vontade, intersubjetividade virtual e
conformidade com leis naturais, entre outros.[32]
Geralmente,
a crítica da linguagem não é concebida como uma teoria da natureza da filosofia,
mas apenas como uma maneira de fazer filosofia. No entanto, em certas passagens
dos textos de Wittgenstein, essa crítica parece ter se tornado uma concepção da
natureza da filosofia. Segundo alguns, ele teria concebido a filosofia como uma
espécie de terapia linguística destituída de qualquer conteúdo positivo próprio.[33] Mesmo
acreditando que Wittgenstein endossou apenas metodologicamente esse modo de ver,
dado que também fez observações que o afastam dele, essa concepção pode ser (e de
fato tem sido) retirada de seus textos, de modo que irei expô-la aqui apenas por
aquilo que ela é capaz de nos ensinar.[34]
A chamada
concepção terapêutica da filosofia sustenta que tudo o que se faz sob esse nome,
inclusive na filosofia tradicional, resulta de confusão linguística. Os filósofos,
movidos por um irresistível anseio por generalidade (craving for generality)[35] tendem
a se deixar enganar pelas estruturas superficiais da linguagem, construindo ambiciosos
“castelos de carta” teóricos. E quando essas construções colapsam em
contradições, esses mesmos filósofos acabam por ser reduzidos a desesperançados
prisioneiros de “nós do pensamento”.
Diante disso, a boa filosofia deveria assumir
um caráter terapêutico: seu objetivo seria desmontar os castelos de cartas teoréticos
do metafísico especulativo e desfazer os nós do pensamento nos quais os pensadores
mais ambiciosos se enredaram. Esse trabalho não se realizaria por meio da formulação
de novas teorias ou da explicação de fenômenos, mas sim por meio de descrições
dos modos pelos quais efetivamente usamos nossas palavras, “trazendo-as de
volta de suas férias metafísicas ao seu labor cotidiano”. Sob essa perspectiva,
a filosofia torna-se um empreendimento puramente destrutivo, bem-sucedido apenas
quando o filósofo, liberto de suas inquietações metafísicas, tal como um paciente
psicanalítico de suas fixações neuróticas, torna-se capaz de esquecer a própria
filosofia.
Como
veremos mais tarde, há muitos exemplos que demonstram que a filosofia não se reduz
a uma simples terapia linguística. Contudo, há também muitos casos em que a terapia
linguística é capaz de produzir bons resultados.
Para ilustrar,
considere a tese do perdurantismo na metafísica analítica. Segundo essa
perspectiva, os objetos materiais são entidades tetradimensionais. Eles não se definem
apenas por suas três dimensões espaciais, mas também por uma dimensão temporal:
seu perdurar no tempo. Essa concepção busca explicar como um objeto material –
como uma maçã ou uma pessoa – pode permanecer o mesmo, ainda que sofra mudanças
significativas ao longo do tempo.
O praticante da filosofia como terapia, por sua
vez, tende a alinhar-se às intuições do senso comum e à linguagem natural, o
que o levará a sugerir que o perdurantista apenas refina uma confusão primordial
entre objetos materiais e eventos ou processos, que possuem realmente uma
dimensão temporal que acaba de defini-los (o processo de transformação da
crisálida em borboleta só ganha sentido se for considerado tetradimensional). A
posição do filósofo-terapeuta, como a do crítico da linguagem, será tradicionalista
e, em alguma medida, aristotélica. Ele irá dizer que os objetos materiais são
tridimensionais e permanecem essencialmente os mesmos ao longo do tempo, de
modo que apenas suas propriedades acidentais se modificam. O problema é que,
contra a expectativa do filósofo-terapeuta, essa posição se chama endurantismo,
sendo ela também teorética, apenas que não se fundamenta em um suposto equívoco
linguístico, como acontece com o perdurantista.
O problema
com uma concepção estritamente terapêutica da filosofia é que ela corta os galhos
curtos demais. Nenhuma crítica da linguagem conseguiu ser inteiramente não
teórica nem explicativa. O próprio trabalho de Wittgenstein é um exemplo revelador
dessa impossibilidade, embora esse fato seja geralmente ocultado pelo caráter fragmentário
e elusivo de seus escritos. Como observou criticamente A. J. Ayer:
Sua reiterada preferência por descrição em lugar
de explicação e a abstenção de teoria, que ele afirmava praticar e se regozijava
diante de seus leitores, não são características de seu procedimento real em nenhum
estágio de seu desenvolvimento, incluindo o das Investigações Filosóficas.
Que suas explicações sejam rúnicas, isso não as reduz a descrições: suas teorias
não cessam de ser tais ao serem encobertamente assentadas. [36]
Considere-se, para exemplificar, as observações de Wittgenstein sobre nomes
próprios nas Investigações Filosóficas.[37]
Elas são formuladas como uma crítica à “teoria do rótulo” dos nomes próprios, segundo
a qual o significado de um nome próprio é o objeto que ele designa, sendo a
relação entre o nome e o significado análoga à de um rótulo colado em uma garrafa.
No entanto, ao rejeitar essa teoria, Wittgenstein
acabou por esboçar – intencionalmente ou não – uma versão própria da teoria do feixe
(bundle theory) dos nomes próprios. Segundo ele, o significado de nomes
como ‘Moisés’ é determinado pelas diversas descrições definidas a ele associadas,
como “o homem que conduziu os israelitas através do deserto”, “o homem que viveu
naquela época e lugar e que foi chamado de ‘Moisés’”, ou ainda “o homem que,
quando criança, foi retirado do Nilo pela filha do faraó”. Utilizando o vocabulário
do próprio Wittgenstein, poderíamos acrescentar que essas descrições são expressões
de regras que nos orientam na identificação do objeto nomeado – regras que,
em conjunto, de algum modo, constituem o que queremos dizer com o nome próprio,
seu sentido referencial.
A
consequência desse procedimento é que as considerações de Wittgenstein sobre nomes
próprios acabam por assumir um caráter teórico, uma vez que sua eficácia
terapêutica depende de uma generalização implícita de seu descritivismo para
todos os nomes próprios. Além disso, essas considerações são claramente explicativas,
pois de forma encoberta visam esclarecer os mecanismos pelos quais identificamos
pessoas por meio de nomes próprios.
Essa orientação teórica se torna ainda mais
evidente no fato de que tais ideias foram posteriormente retomadas por J. R. Searle[38],
na formulação de uma teoria do feixe para nomes próprios — uma proposta de
caráter explicitamente teórico e explicativo — e, de maneira a meu ver bem mais
decisiva, pelo autor do presente livro.[39]
Exemplos como esses mostram que uma terapia filosófica,
para ser efetiva, para curar a doença e não apenas para aliviar sintomas ocasionais,
deve apoiar-se em generalizações dotadas de poder explicativo, mesmo que implícitas.
Quando desenvolvidas, essas generalizações forçam-nos a abandonar o terreno das
considerações sobre maus usos da linguagem ordinária, de onde originalmente partiram,
e a avançar rumo a construções teóricas cada vez mais elaboradas.
Crítica e teoria, concluímos, não
podem ser completamente dissociadas, pois são como os lados opostos da mesma moeda
filosófica. A preferência por enfatizar um ou outro aspecto tende a ser menos
uma questão de princípio do que uma questão de temperamento, refletindo o
estilo e a inclinação pessoal de cada filósofo.
2.
FILOSOFIA
COMO ANÁLISE DA LINGUAGEM
O fracasso de uma concepção puramente terapêutica da filosofia leva-nos
a considerar a análise da linguagem. Trata-se do lado construtivo e teorético
da moeda filosófica, capaz de fornecer suporte à crítica da linguagem e até de torná-la
uma aplicação de si mesma. Como já fiz notar, a análise da linguagem também pode
ser feita de um modo formalmente orientado (como “filosofia da linguagem ideal”)
ou de um modo comunicacionalmente orientado (como “filosofia da linguagem ordinária”).
Um exemplo da abordagem formalmente orientada foi
o esboço de uma estrutura geral da linguagem formal, evidenciado na distinção
introduzida por Carnap entre regras de formação, responsáveis por
especificar os símbolos e as sentenças bem formadas, e regras de transformação,
responsáveis por determinar as possíveis relações lógicas entre as sentenças.[40]
Por outro lado, um exemplo de análise
da linguagem realizada sob orientação comunicacional foi a teoria dos atos de fala
de J. L. Austin. Na interpretação feita por Searle dessa teoria, a estrutura de
nossas ações comunicativas é geralmente reduzível à forma F(p), em que p
representa o conteúdo proposicional e F representa a força ilocucionária,
essa última definindo o tipo de compromisso interpessoal que o falante propõe associar
ao seu conteúdo.[41]
Para ilustrar: ao dizer “Peço-lhe para fechar a porta”, o proferimento possui
uma força ilocucionária, a de um pedido, e um conteúdo proposicional, concernente
ao ato da pessoa de fechar a porta.[42]
Posteriormente, Searle desenvolveu
uma notável teoria da intencionalidade em filosofia da mente baseada na forma
internalizada desse mesmo esquema: o que temos é a intenção I relacionada
a um conteúdo intencional p, produzindo I(p).[43] Por
exemplo: se eu quero que a porta seja fechada, o que tenho é uma intenção
(a de querer) seguida de seu conteúdo intencional (de que a porta seja fechada).
Construções analíticas como essas são teorias
gerais e diversas em escopo, além de serem desenvolvimentos capazes de conduzir-nos
próximos aos horizontes da ciência. De fato, a distinção introduzida por Carnap
entre regras de formação e de transformação já foi há muito incorporada a vários
domínios da lógica simbólica, que se consolidou como uma ciência formal, e a teoria
dos atos de fala pertence hoje ao domínio da pragmática linguística, mais do
que à filosofia. Embora tais construções teóricas também possam ser empregadas
como instrumentos críticos, essa não foi sua motivação principal. Seu propósito
fundamental foi ampliar as fronteiras de nosso conhecimento.
No que se segue, apresentarei uma versão robusta
da concepção de filosofia como análise da linguagem, que será metodologicamente
pressuposta nos próximos capítulos desse livro. Trata-se de uma abordagem de orientação
comunicacional que se estende aos limites da tolerância e da defensabilidade teórica.
Algo semelhante pode ser encontrado, com variações individuais, nas concepções de
praticantes tardios e mais refinados no uso dos métodos analíticos, como as de P.
F. Strawson e de Ernst Tugendhat.
Um pressuposto fundamental da concepção
mais robusta da filosofia como análise da linguagem – conforme já foi notado no
capítulo anterior – é a ideia de que não temos consciência da estrutura excepcionalmente
complexa dos conceitos mais centrais de nossa linguagem, e ainda menos das relações
internas que possam existir entre eles. Esses conceitos, como verdade, crença,
percepção, conhecimento, causa, tempo, bem, justiça, beleza, entre outros, estão
intrinsecamente relacionados, formando uma densa rede conceitual que usamos
cotidianamente.
Wittgenstein, em seu Tractatus
Logico-Philosophicus, enfatizou essa perspectiva ao afirmar:
A linguagem corrente
é parte do organismo humano e não menos complexa do que ele. Dela é humanamente
impossível extrair imediatamente a lógica da linguagem. A linguagem disfarça o
pensamento a tal ponto que, da forma externa de sua roupagem, não somos capazes
de inferir a forma subjacente do pensamento, já que a forma externa da roupagem
serve a fins inteiramente diferentes dos de revelar a forma do corpo.[44]
Como também já foi observado, essa ausência de consciência sobre as
estruturas conceituais tem uma explicação: não aprendemos esses conceitos e suas
possíveis relações por meio de definições explícitas, mas, desde a infância, por
meio de uma praxis não cognitiva baseada em exemplificações positivas e negativas,
às quais nosso aprendizado é repetidamente submetido à correção interpessoal. Por
isso, embora pareça evidente que conhecemos os significados de palavras como ‘conhecimento’,
‘verdade’, ‘justiça’, ‘tempo’ – já que sabemos usá-las corretamente – permanecemos
incapazes de explicitar as regras constitutivas de seus significados, ou seja,
os contornos próprios de seus conceitos. Eis por que, embora sejamos proficientes
em seu uso, com frequência sentimo-nos paralisados quando solicitados a explicar
o que queremos dizer com elas.
A falta de consciência das regras que governam
o uso de palavras centrais para nosso entendimento do mundo favorece o surgimento
de confusões filosóficas. Filósofos – especialmente aqueles que se ocupam de metafísica
especulativa – confundiram sistematicamente os usos de nossas expressões. Ainda
assim, é possível que tais confusões, como notou Wittgenstein, sejam profundas,
apontando para o que, sem elas, permaneceria despercebido.
Sob a perspectiva acima delineada, a filosofia da análise conceitual configura-se
como um empreendimento crítico, uma vez que a construção de teorias que explicitem
estruturas conceituais mais centrais, por si só, já contribui para dissipar confusões
conceituais. Por envolverem generalizações, essas teorias também possuem valor explicativo.
Seu propósito mais distintivo, contudo, deveria ser o de fornecer aquilo que, junto
a Wittgenstein, poderíamos chamar de uma representação panorâmica (übersichtliche
Darstellung), ou seja, uma espécie de “teorização orgânica” que nos permita
visualizar as relações estruturais entre conceitos de interesse filosófico. Vale
traduzir a célebre passagem central:
Uma fonte principal de nossa incompreensão é a
falta de transparência em nossa gramática. A representação panorâmica permite
ao entendimento perceber as conexões. Daí a importância de encontrar e inventar
elos intermediários. O conceito de representação panorâmica é, para
nós, de importância fundamental. Ele revela a forma de nossa representação, o modo
como vemos as coisas. (É isso uma visão de mundo?)[45]
Dado que nossos conceitos filosoficamente relevantes se encontram, em alguma
medida, inter-relacionados, a representação panorâmica poderia tornar explícita
a relação sistemática entre eles. Seu objetivo é elucidar o que Tugendhat chamou
de malha conceitual (begriffliches Netzwerk) constitutiva de nosso entendimento
como um todo.[46]
Para
completar nosso quadro, é preciso mencionar um traço particularmente esclarecedor
da filosofia analítica, identificado por W. V. O. Quine sob o termo ascensão
semântica (semantic ascent)[47], que
podemos entender como uma ênfase discursiva sobre os aspectos linguístico-conceituais.
Por meio da ascensão semântica, aspectos linguístico-conceituais de nossas expressões
são enfatizados, de modo a tornar explícitas distinções mais sutis e a prevenir
confusões.
Para dar exemplos, a questão “O que são números?”
foi parafraseada por Frege como “O que é o significado de sentenças contendo palavras-número?”,
e a asserção wittgensteiniana “O mundo é feito de fatos, não de coisas” foi parafraseada
por Carnap como “A palavra-conceitual ‘mundo’ é entendida de tal maneira que por
meio dela somente o sistema dos fatos, não o das coisas, pode ser referido”. Essa noção de ascensão semântica surgiu,
aliás, como uma reação ao conceito carnapiano correlato de modo de dizer formal,
por ele entendido como o registro adequado para tratar das questões linguístico-conceituais
próprias da filosofia. No entanto, como Quine com perspicácia observou, a distinção
carnapiana revela-se equivocada na medida em que ele quis torná-la caracterizadora
da filosofia como tal. Como Quine bem notou, a noção de ascensão semântica difere
do modo de falar formal por ser concebida como aplicável não apenas às sentenças
filosóficas, mas a qualquer sentença concebível. Como ele escreveu:
A ascensão semântica aplica-se a todo lugar. “Há masurpiais na Tasmânia”
pode ser parafraseado como “‘Masurpial’ é verdadeiro para algumas criaturas na Tasmânia”,
se houver algum ponto nisso. Apenas acontece de ser a ascensão semântica mais útil
nas conexões filosóficas.[48]
A noção de ascensão semântica, a ênfase linguístico-conceitual, pode ser
explicada em maior detalhe ao considerarmos que, para prevenir erros, a
filosofia analítica frequentemente apresenta seus argumentos de forma mais explícita,
em uma metalinguagem que nos permite centrar a atenção nas palavras e conceitos
expressos.
Uma maneira de evidenciar a importância e a
função da ascensão semântica é notar que, geralmente, ela é realizada por meio
de uma metalinguagem semântica, e não apenas de uma metalinguagem sintática.
Essa consideração permite responder à objeção de que a filosofia analítica, por
ser um empreendimento linguístico-conceitual, inevitavelmente acabaria por deixar
de fora o mundo.
Para esclarecer esses conceitos,
compare as duas sentenças seguintes:
(a) ‘Cracóvia’ é uma palavra-nome com oito letras.
(b) ‘Cracóvia” é o nome de uma cidade localizada a
50° ao norte do equador e a 20° ao leste do meridiano de Greenwich.”
Na sentença (a), empregamos uma metalinguagem sintática para tratar a palavra
como um sinal físico. Já na sentença (b), recorremos a uma metalinguagem semântica
para falar não apenas da palavra, mas também do que ela significa.
Adotando um vocabulário fregeano,
podemos dizer que, ao adotar uma metalinguagem semântica, tornamos explícitos
os sentidos de nossas palavras; mas, ao fazermos isso, também falamos
sobre aquilo a que elas se referem – ou seja, sobre o mundo – considerando
que essas referências, sejam elas objetos ou propriedades, só são cognitivamente
avaliáveis por meios conceituais.[49]
Em síntese: por meio de uma metalinguagem sintática,
falamos somente dos signos em abstração de seus significados – o que pode conduzir
a um formalismo árido. Já com a metalinguagem semântica, preservamos os sentidos
juntamente com suas referências, indo além dos signos: esse é o caminho propriamente
filosófico, pelo qual a análise da linguagem se estende das palavras ao que se
quer dizer com elas e, assim, ao próprio mundo. Desse modo, torna-se claro que
a ênfase conceitual promovida pela ascensão semântica é apenas uma forma de concentrar
nossa atenção na linguagem, sem excluir nada de valor que ela possa representar.
Embora a análise de orientação formal, em boa
medida praticada por filósofos como Rudolph Carnap, W. V. O. Quine, Donald Davidson,
David Lewis, Saul Kripke, Hilary Putnam e David Lewis, também recorra à ascensão
linguístico-conceitual, ela difere de maneira importante da concepção mais robusta
de análise, sobretudo em suas posturas diante das exigências do elemento comunicacional
presente no senso comum e na linguagem natural.
Filósofos formalmente inspirados tendem a
privilegiar a consistência interna de suas teorias, mesmo que isso implique renunciar
à consonância com o senso comum, às evidências fornecidas pela linguagem ordinária
ou mesmo pela ciência empírica. Por essa razão, estão sempre mais dispostos a sacrificar
as últimas em favor da primeira, substituindo o ônus heurístico por um bônus imaginativo.
A sugestão da existência de infinitos mundos possíveis, tão reais quanto incomensuráveis,
proposta por David Lewis, é um exemplo disso.
Com efeito,
muitas das ideias advindas da abordagem sintaticamente inspirada de análise da
linguagem encontram-se em flagrante contradição com certas intuições
fundamentais. Qual seria a razão disso? Creio que a resposta não seja difícil
de encontrar. Para tal, é preciso apelar para o conceito de semiótica, que
tomo de empréstimo de Charles Morris.[50] A semiótica
possui três dimensões: a dimensão sintática, que é a das relações entre os
signos; a dimensão semântica, que é a das relações entre os signos e suas referências;
e a dimensão pragmática, que é a das relações entre os signos e seus intérpretes,
o que certamente deve se estender aos seus efeitos na interação comunicacional.
O que pretendo demonstrar é que, de modo geral (ainda que o reverso seja, em alguma
medida, possível) existe entre essas dimensões uma relação de pressuposição,
na qual:
a dimensão da semiótica:
SINTÁTICA
é pressuposta pela dimensão
SEMÂNTICA
que é pressuposta pela dimensão
PRAGMÁTICA.
Ou seja: o conhecimento da dimensão pragmática entendida cono a das
relações dos intérpretes com os signos na interação comunicacional, tende a
exigir o conhecimento de uma dimensão semântica já previamente constituída, ou
seja, das relações entre os signos e suas referências; o conhecimento da dimensão
semântica, por sua vez, tende a exigir o conhecimento da dimensão sintática, ou
seja, de uma base sintática já constituída de modo que as referências possam
ser realizadas. Assim, a dimensão pragmática pressupõe a dimensão semântica, que
pressupõe a dimensão sintática, de modo que a dimensão pragmática pressupõe as
outras duas.
Essa hierarquia tem implicações para o que denominei
de robusteza teórica no âmbito da filosofia analítica, o que ajuda a justificar
a sugestão de Searle de que a filosofia de orientação comunicacional (como a sua)
é “mais forte”.[51]
Vejamos o argumento.
Somos perfeitamente capazes de aprender a
sintaxe de uma linguagem – isto é, as regras para a combinação de seus signos,
não importando quais – mesmo em estado de ignorância das referências desses signos,
sem saber como usá-los em situações concretas e, portanto, sem sequer conhecer seus
significados. O inverso, contudo, é muito menos concebível, pois não podemos
ter acesso adequado aos significados resultantes de combinações de signos, nem
compreender os modos como esses signos são usados referencialmente em contextos
apropriados sem antes conhecer suas funções sintáticas – ou seja, sem saber
como podem ser combinados na construção de sentenças bem formadas. (Dificilmente
o oposto é concebível. Se uma bandeira vermelha significa perigo, eu posso
compreender sua dimensão semântica sem compreender sua dimensão sintática, posto
que ela sequer existe.)
Isso significa
que a dimensão pragmática tende a carregar consigo a pressuposição de todo o conjunto
de regras semânticas da linguagem, um arcabouço articulador de nossas intuições
linguístico-conceptuais, de nossas intuições de senso comum acerca dos significados
de nossas expressões, a ser manifesto nos modos pelos quais as usamos, além das
regras da sintaxe.
A assimetria recém-identificada
tem consequências filosóficas. Ela indica que a análise de orientação formal,
enfatizando a sintaxe, é menos dependente das demais dimensões, podendo ser desenvolvida
sem considerá-las com atenção e, portanto, também em maior desacordo com elas, sem
perda de inteligibilidade. Daí que o analista conceitual sintaticamente inspirado
se sente mais livre para desafiar as assunções que fundamentam a racionalidade
da linguagem e nosso entendimento comum do mundo, sobretudo quando seu procedimento
for dependente de uma livre rejeição dessas assunções. Aqui temos um espaço muito
mais livre para a postura procedimental denominada no capítulo anterior de reducionismo
e definida como a tendência de produzir ideias e teorias que excluem mais do
que seria intuitivamente razoável.
Essas
considerações são de interesse metafilosófico porque esclarecem por que muitos
argumentos desafiadores, formulados por filósofos como Quine, Kripke, Hilary Putnam,
David Kaplan e David Lewis, conseguiram opor-se muito mais facilmente ao senso
comum linguístico manifestado na linguagem ordinária. Em contraste, filósofos de
orientação comunicacional, como John Searle, P. F. Strawson e Paul Grice, que por
apresentarem teorias mais robustas só poderiam fazê-lo a custo de uma inconsistência
muito mais evidente. As últimas teorias, porém, ficam mais expostas à sedução
do que chamei de ampliacionismo. Tanto o reducionismo quanto o ampliacionismo
são vícios; mas pode haver vantagens no vício, ao menos enquanto ele não estiver
fazendo mal à saúde.
Na próxima seção, serão criticamente avaliadas
as consequências teóricas extraídas pelos filósofos das concepções recém-apresentadas.
O objetivo será demonstrar que a concepção de filosofia como análise da linguagem
e, por extensão, como crítica da linguagem, embora eficaz em indicar como
a filosofia deve poder ser, é incapaz de mostrar-nos o que a filosofia realmente
é.
3.
A FALÁCIA OBJETAL
NA
FILOSOFIA ANALÍTICA
Como o filósofo analítico está empenhado em expor a estrutura conceitual
de nossa linguagem, tanto os defensores quanto os críticos da filosofia como análise
conceitual podem bem pensar que ele:
(a)
Não está, de
modo algum, desenvolvendo hipóteses especulativas sobre o mundo, como
fazia o filósofo tradicional de orientação metafísica.
Além disso, tende-se a pensar que ele:
(b)
Tampouco
está formulando hipóteses empíricas sobre o mundo, como fazem os cientistas
naturais – ainda que o esforço de descrever o funcionamento real da
linguagem possa, de certo modo, ser considerado um empreendimento empírico[52].
Meu objetivo nesta seção é demonstrar que nem a asserção (a) nem a (b) são
corroboradas pela prática concreta da filosofia como análise da linguagem, e que
tal pretensão repousa sobre uma insidiosa falácia objetal. Ao evidenciar o
caráter falacioso dessas afirmações, pretendo também mostrar que é equivocada a
suposição de que, do ponto de vista do objeto de investigação, a filosofia analítica
se distinguiria, de maneira essencial, de outras formas de atividade investigativa.
Afinal, embora tenha como finalidade o esclarecimento de estruturas conceituais,
vimos que isso não implica abdicar de qualquer pretensão explicativa acerca do mundo.
O comprido
argumento que apresentarei para sustentar esse ponto não é, reconheço, um modelo
de linearidade ou transparência. Ainda assim, aqui vai:
Para demonstrar que o analista conceitual não
é bem-sucedido em assegurar que sua análise tenha um objeto de investigação distinto
daquele da filosofia tradicional ou mesmo da ciência em geral, precisamos começar
pela consideração de sua prática efetiva. As teses (a) e (b) poderiam, de fato,
ser mantidas de forma consistente se o analista conceitual se limitasse à análise
lógica da estrutura das sentenças ou a uma tediosa, quasi-lexicográfica descrição
dos usos ou significados das palavras-conceituais filosoficamente relevantes de
nossa linguagem natural, como ocorreu com muito da assim-chamada filosofia da linguagem
ordinária.
No entanto, não foi isso o que realmente aconteceu.
Para alcançar relevância filosófica, o analista conceitual sempre precisou ir além:
foi necessário inquirir nossa praxis real de pensamento sobre as coisas,
chegando inclusive a identificar, nessa praxis, conceitos para os quais
ainda não havia palavras na linguagem. Tais conceitos são selecionados com base
em critérios como o aumento da coerência e do poder explicativo de seus esboços
teoréticos.
Como esses conceitos recém-descobertos só podem
ser expressos por meio de novas combinações de palavras, o analista conceitual
é frequentemente levado a substituir essas combinações por termos de arte,
criados por razões de economia discursiva. Alguns exemplos ilustram esse procedimento:
o proponente de uma teoria das ações comunicativas pode analisar nossos “atos de
fala” à luz de sua “força ilocucionária”; alguém envolvido com filosofia do conteúdo
pode buscar entender a função representacional das sentenças declarativas, seu “significado
cognitivo” em termos de “regras de verificação”; um teorista da referência pode
distinguir o nome próprio das descrições definidas a ele associadas por ser ele
um “designador rígido”; um epistemólogo pode propor uma análise do conceito de conhecimento
proposicional (knowing that) como “crença verdadeira justificada enquanto
a justificação puder ser independentemente considerada suficiente para torná-la
verdadeira.”[53]
Ao refletirmos sobre a questão, um primeiro
ponto a considerar é que o procedimento supostamente analítico pode envolver momentos
de síntese, Para ilustrar: quando percebemos que os conceitos C1 e C2 se
encontram internamente relacionados, ou que ambos são constituintes da análise
de C3, estaremos realizando uma síntese. Além disso, estruturas conceituais profundas
podem ser inicialmente descobertas para, só então, serem analisadas e
nomeadas. Nesse processo, o filósofo já realiza um trabalho de generalização.
Em outras palavras, ele pode buscar trazer à tona os intermediários que (ao menos
para o analítico pragmaticamente orientado) já devem estar implicitamente presentes
no uso da linguagem.
Um problema reside no fato de que a adequação desses
conceitos unificadores, supostamente descobertos, pode ser altamente hipotética.
Isso se evidencia na controvérsia recorrente que envolve os significados dos termos
gerais empregados para explicar uma nova unidade conceitual. Muitas vezes, o filósofo
pode estar empenhado em estabelecer conceitos e relações conceituais inéditos, buscando
justificá-los por sua consistência com o sistema de crenças mais geral por ele aceito.
Tal empreendimento é inevitavelmente conjectural. Ainda assim, nessa busca por equilíbrio
reflexivo, o filósofo é capaz de propor hipóteses potencialmente frutíferas.
Vejamos alguns exemplos dessas
hipóteses conceituais formuladas no âmbito da filosofia analítica. Elas dizem
respeito: (i) à estrutura empírica da linguagem, como na teoria dos atos de fala;
(ii) à função representacional de nossos enunciados, como no caso mais especulativo
do princípio da verificabilidade, segundo o qual o significado cognitivo de uma
sentença declarativa consiste, conforme a exposição de Wittgenstein, em múltiplos
modos de verificação mais ou menos fortes[54]; (iii)
à forma pela qual a mente avalia o nosso “saber que p” na definição do
conhecimento proposicional. Todos esses casos podem ser considerados, em certa
medida, análogos ao trabalho de descoberta de leis naturais nas ciências empíricas
– isto é, análogos a algo capaz de explicar uma multiplicidade indeterminada de
casos individuais a ser posteriormente confirmado pela experiência, mesmo que esta
diga respeito às regras de interação linguística, no primeiro caso, ou à estrutura
de certos processos essencialmente cognitivos, nos dois últimos.
Penso que um filósofo de orientação comunicacional
não terá grande dificuldade em aceitar essas conclusões. Ainda assim, ele tenderá
a insistir que, embora seu procedimento analítico concreto seja precedido de um
momento hipotético de síntese, seu esforço estará sempre voltado para tornar explícito
aquilo que já pertence ao nosso sistema conceitual, e não, como o cientista empírico
ou o filósofo especulativo, para ultrapassá-lo mediante a elaboração de hipóteses
sobre o mundo empírico real.
Contudo,
ao examinarmos os exemplos disponíveis, percebemos que muito do que os filósofos
analíticos dizem também pode ser interpretado como tratando de fatos empíricos,
mesmo que sejam muito gerais ou digam respeito, sobretudo, ao modo como nossas representações
se relacionam ao mundo, mais do que ao mundo em si mesmo.
Com efeito,
ao examinarmos exemplos de análise que vão além da filosofia da linguagem, como
os encontrados na filosofia da mente ou na metafísica analítica, percebemos que
podem muito bem referir-se a constituintes gerais do próprio mundo empírico. Coisas
como propriedades, indivíduos, causas e efeitos, espaço e tempo, são constituintes
muito gerais no mundo empírico, e a investigação de sua natureza não deixa de ser
empírica.
Tomemos, para exemplificar, o caso da análise
do conceito de consciência em filosofia da mente. Restrinjo-me aqui a
uma das primeiras, dentre as muitas teorias da consciência desenvolvidas nas últimas
cinco décadas: a teoria proposta por D. M. Armstrong em 1978, filósofo de formação
analítica.[55]
Ela introduziu uma distinção fundamental
entre duas formas principais de consciência: a consciência perceptiva, que
corresponde ao estado de vigília e à percepção do mundo, e a consciência introspectiva,
que consiste na submissão de estados mentais ditos “conscientes” à introspecção
ou à cognição de segunda ordem sobre esses estados. Embora essa distinção possa
ser dita conceitual, ela também se refere a classes de fenômenos empíricos,
ou seja, a fenômenos mentais difusamente situados no espaço e no tempo.
No domínio
da metafísica analítica, destaca-se atualmente a amplamente debatida teoria ontológica
dos tropos, introduzida em 1953 pelo metafísico Donald Williams. Essa teoria
renova a análise do conceito fundamental de propriedade. Em oposição às análises
realistas tradicionais, que concebem as propriedades como universais abstratos,
Williams propôs uma alternativa: para ele, o mundo é basicamente constituído
por propriedades espaço-temporalmente localizáveis, às quais deu o nome
de tropos.[56]
Vimos que, embora a ideia de que o analista conceitual
possa expor estruturas empíricas possa parecer estranha a princípio, há respostas
convincentes em defesa disso. Também A. J. Ayer se posicionou favoravelmente a
essa perspectiva:
A distinção entre ‘sobre a linguagem’ e ‘sobre o mundo’ não é de modo algum
abrupta, pois o mundo é o mundo que descrevemos, o mundo como ele figura em nosso
sistema conceitual. Ao explorar nosso sistema conceitual, você está, ao mesmo tempo,
explorando o mundo.[57]
A resposta de Ayer torna-se especialmente convincente à luz de nossas
considerações anteriores sobre ênfase conceitual e o uso de uma metalinguagem
semântica. Ela aponta, ainda que implicitamente, também para o fato de que não podemos
distinguir o objeto de investigação próprio da filosofia apenas com base na análise
de nossas estruturas conceituais. Afinal, em sentido análogo, também se poderia
argumentar que tanto o cientista empírico quanto o metafísico especulativo
estão realizando um trabalho de “análise conceitual”. A diferença é que o cientista
empírico não precisa de recursos como o da ascensão semântica ou da
metalinguagem semântica em seu trabalho. Esse último ponto pode ser ainda mais bem
esclarecido se examinarmos separadamente as objeções levantadas contra as teses
(a) e (b).
Considere-se
a tese (a): segundo ela, diferentemente dos filósofos especulativos, os filósofos
analíticos não fazem asserções conjecturais sobre o mundo. Contra essa tese, é
importante ressaltar que a história da filosofia tem mostrado que todos os domínios
e posições da filosofia tradicional podem ser encontrados no trabalho de filósofos
considerados analíticos (por alguns até mesmo chamados de “pós-analíticos”). Sequer
faz sentido defender que a filosofia analítica não é especulativa, pois a própria
história revela que as distinções mantidas por diferentes filósofos entre:
Filosofia crítica e Filosofia
especulativa
(ocupada com a defini- (objetivando alcançar conclusões gerais
ção e análise
crítica sobre a natureza do universo e sobre
dos conceitos de nossa nosso
lugar e expectativas nele)
vida
diária e ciências) (Por C.
D. Broad);
Metafísica imanente e Metafísica transcendente
(limitando-se
ao mundo (objetivando
ir além dos sentidos,
dos sentidos) relacionando-se com o mundo
supra-sensível)
(Por
W. H. Walsh);
Metafísica descritiva e Metafísica
revisionária
(ocupada
com a descrição (tentando criar uma nova
de nossas estruturas reais estrutura
de pensamento)
de pensamento)
(Por P. F. Strawson);
encontram um paralelo no domínio da filosofia analítica, na distinção entre:
os resultados da análise e os resultados
da análise da linguagem
da linguagem de orien- de orientação formal.
tação comunicacional
(filosofia sintática e semanticamente
(filosofia pragmática- orientada)
mente orientada)
Embora esse paralelo não seja rigoroso, há uma razão profunda para sua existência.
A dependência das intuições de senso comum – frequentemente refletidas nas intuições
linguísticas –, geralmente preservada pela filosofia crítica e pelas metafísicas
imanentes e descritivas, encontra equivalente na postura do analista conceitual
comunicacionalmente inspirado. Em contrapartida, vimos que o analista conceitual
formalmente orientado demonstra pouca ou nenhuma preocupação em preservar essas
intuições ordinárias, estejam elas espelhadas na linguagem ou não, o que facilita
um trabalho muito mais especulativo. Considere, como exemplos de análise
conceitual de orientação formal, o Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein, com sua teoria dos nomes atômicos referindo-se a objetos absolutamente
simples como seus significados; a teoria causal-histórica da referência, proposta
por Saul Kripke, segundo a qual nomes próprios identificam seus referentes ao
final de uma por vezes imensa cadeia causal externa iniciada por um batismo[58]; e
ainda o realismo modal de David Lewis, que ousou postular a existência de uma infinidade
de mundos possíveis reais e mutuamente incomensuráveis.
Essas
observações demonstram que a distinção entre filosofia analítica e tradicional
não se aplica ao objeto de investigação. De fato, se formos suficientemente
imaginativos, toda a metafísica especulativa pode ser reformulada em um modo de
discurso conceitualmente acentuado, ou seja, na forma de ascensão semântica
que empregue uma metalinguagem capaz de legitimar a pretensão do filósofo especulativo
de realizar análise filosófica nos mesmos termos do analista conceitual.
Considere, como exemplo radical, o conceito de
eu puro no idealismo fichteano. Trata-se de uma entidade acessível
apenas intelectualmente, que põe (setzt) o mundo externo para pôr-se a si
mesma (por Selbstsetzung), estabelecendo, simultaneamente, uma
necessária oposição a ele, de onde se seguirá, como síntese, o mundo finito externo
e interno. Ora, não seria nem um pouco surpreendente se algum filósofo analítico
contemporâneo, simpático ao idealismo, decidisse traduzir tais afirmações em
uma análise do conceito de “eu elusivo”, entendido como constituído e como sendo
constituído pela realidade social sob assunções antirrealistas.
Mesmo que tal antirrealismo se
revele, em última instância, tão escassamente inteligível e especulativo quanto
o próprio modelo fichteano, ele não será menos defensável do que algumas ideias
do construtivismo social contemporâneo em filosofia da ciência.[59]
Embora esse tipo de estratégia possa ser facilmente
concretizado pelo analista conceitual formalmente inspirado, já vimos que ele
exigiria maior esforço por parte do analista conceitual de orientação comunicacional,
uma vez que tende a entrar em conflito com as intuições de senso comum que a linguagem
ordinária espelha, sem apresentar razão suficiente para semelhante ruptura.[60]
Mesmo nesse caso, a estratégia não é inviável:
o analista comunicacionalmente orientado pode sustentar que o desacordo com
nossas intuições é apenas aparente, buscando demonstrar que suas
afirmações podem ser harmonizadas com o pano de fundo de nossas crenças ordinárias.
Afinal, o bispo Berkeley, ao defender a ideia de que nosso mundo é constituído apenas
por ideias e espíritos, antecipou essa estratégia ao afirmar que seu imaterialismo
nada mais fazia do que refletir as verdadeiras expectativas do senso comum –
aquelas mantidas por pessoas ainda intocadas pela filosofia!
Para resumir: o trabalho dos filósofos analíticos
inclui momentos de síntese hipotética, nos quais novos conceitos são concebidos
e explorados em suas possíveis inter-relações. Seu trabalho é capaz de conter (mesmo
que de forma indireta) inesperadas especulações metafísicas, que podem ter consequências
até mesmo no modo como fundamos nossa apreensão da realidade empírica.
Já o analista conceitual de
orientação formal tende a realizar tais especulações com maior desenvoltura, pois
terá mais facilidade para sacrificar o alinhamento às expectativas intuitivas
acerca do mundo, sem, com isso, comprometer a inteligibilidade de seus argumentos.
Isso se deve ao fato de que, para ele, a inteligibilidade repousa sobretudo na
coerência formal interna de sua análise.
À luz
dessas considerações, torna-se evidente que todos os domínios da metafísica tradicional
podem, de um ou de outro modo, ser abordados por alguma forma ampliada de análise
linguístico-conceitual capaz de promover algo tão trivial quanto a ascensão semântica.
A conclusão é inevitável: sustentar que há alguma distinção substancial entre filosofia
como análise conceitual e filosofia tradicional – mesmo em suas vertentes mais especulativas
– é hipostasiar o papel meramente instrumental da ênfase linguístico-conceitual
ou, digamos, da lógica fregeana ou da semântica dos mundos possíveis.
Um argumento semelhante se aplica
à tese (b), segundo a qual a filosofia difere das ciências empíricas por se limitar
à investigação conceitual.
Que essa tese é falsa já deve ter ficado evidente,
uma vez que nosso último exemplo de análise conceitual envolveu também o mundo
natural, mesmo que de forma indireta. Mas o ponto em questão pode ser formulado
de forma mais dramática.
Suponha, primeiramente, a existência de um analista
conceitual plenamente consequente, que, ao adotar a concepção ampla de análise já
descrita, considere os conceitos e suas relações como os verdadeiros objetos de
investigação da filosofia, capaz de distingui-la de outras áreas do saber. Então,
como ele veria a ciência?
Não lhe seria difícil perceber que Einstein, ao
concluir que a velocidade da luz é constante para todos os observadores, precisou
analisar o conceito de simultaneidade aplicado a observadores em
movimento relativo a velocidades próximas à da luz, pois é certo que ele não estava
tentando analisar o movimento relativo de carros de pessoas, carros e trens ao
nosso redor.
Quanto ao trabalho do cosmologista Stephen Hawking,
nosso analista conceitual facilmente notaria que o cientista não estava envolvido
em nenhuma dissecação dos buracos negros em si mesmos, mas sim em análises astrofísicas
rigorosas sobre as implicações do conceito de buraco negro – implicações necessárias
para uma interpretação coerente do fenômeno.
Do mesmo modo, o conceito de evolução natural
– como logo notaria nosso analista conceitual perfeitamente consequente – foi primeiramente
formulado e adequadamente analisado por Charles Darwin, a partir de reflexões fundamentadas
em observações zoológicas e botânicas. Gregor Mendel analisou o conceito de gene,
Watson e Crick analisaram o conceito de DNA, abstraindo o processo de reprodução.
O psicólogo Carl Jung vislumbrou e analisou o conceito de inconsciente coletivo:
seus arquétipos já estavam presentes em seus pacientes – bastava nomeá-los. E o
sociólogo Thorstein Veblen, analisou os conceitos que ele próprio explicitou: o
de classe ociosa (que se orgulha de não precisar trabalhar) e o de consumo
ostensivo (o hábito das elites de consumir bens e serviços caros e supérfluos
como forma de exibição).
Estavam
todas essas pessoas fazendo filosofia?
Aceitando,
como o faz nosso analista conceitual inteiramente consequente, que o mundo
conceitual constitui o verdadeiro objeto da filosofia, ele não poderá evitar uma
resposta afirmativa. De fato, todo trabalho teórico parece, nesse horizonte, tornar-se
– de um modo ou de outro – um trabalho de análise conceitual, embora certamente
não-filosófico.
Contudo,
é possível imaginar a situação oposta: suponha que tenhamos junto a nós um empirista
radical, que parte da premissa de que o conhecimento científico empírico não é essencialmente
conceitual, ainda que só possa ser acessado por meio de conceitos, uma vez que
esses conceitos se aplicam a fatos empíricos, mesmo que muito abrangentes. Como
esse empirista consideraria a maioria das questões levantadas pela filosofia?
Voltando aos nossos exemplos: a teoria dos atos
de fala trata de ações comunicativas humanas em contextos reais; a análise verificacionista
dos sentidos factuais ou cognitivos de nossos enunciados diz respeito aos modos
como nossas mentes estabelecem verdades sobre o mundo; e o realismo sobre leis científicas
é uma tese sobre a constituição possível da realidade. Diante disso, o analista
será levado a conceber grande parte da filosofia como tratando de fenômenos empíricos,
ainda que difusos e abrangentes, a serem abordados pela ciência empírica.
O caso do analista conceitual plenamente consequente
mostra que uma investigação que não versa diretamente sobre conceitos, como a da
ciência empírica, pode sempre ser interpretada como envolvendo conteúdos conceituais.
Por outro lado, o caso do empirista radical revela que uma investigação usualmente
concebida como centrada em conceitos – como aquela praticada por filósofos
ditos analíticos – pode, em muitos casos, ser interpretada como uma indagação
que transcende os limites conceituais e adentra o campo do conhecimento empírico.
Que conclusões podemos extrair de tudo isso? A
primeira é que os objetos da filosofia analítica não precisam diferir, por
natureza, daqueles da filosofia especulativa tradicional e tampouco dos da ciência.
Afinal, a filosofia analítica não pode reivindicar uma distinção essencial em
relação a esses empreendimentos apenas por enfatizar o trabalho com estruturas
conceituais.
Dessa forma, nossos dois casos
demonstram, de maneira inequívoca, que a pretensão de restringir o objeto de investigação
filosófica ao exame da estrutura de nossos conceitos, quando indevidamente considerada,
acaba por inviabilizar qualquer distinção objetal entre a filosofia analítica e
outros empreendimentos teoréticos.
4. CONCLUSÃO: UM PARALELO COM O
ORGANON
ARISTOTÉLICO
Qual é, então, a diferença real entre, de um lado, a filosofia como análise
conceitual e, de outro, a filosofia especulativa tradicional ou a ciência, uma
vez que a diferença não se resume ao objeto de investigação?
A resposta
é que os filósofos analíticos submetem suas investigações a um controle metodológico
significativamente mais rigoroso. Em parte, isso se deve ao fato de formularem suas
concepções em uma metalinguagem semântica, mas também, cada vez mais, ao fato
de submetê-los a novos instrumentos formais. Além disso, e de modo cada vez
mais relevante, essas concepções são constantemente confrontadas com o pano de
fundo de nossa visão de mundo contemporânea, profundamente informada pelos avanços
da ciência.[61]
Conclui-se,
portanto, que a filosofia analítica, principalmente aquela que já foi denominada
“filosofia da análise linguística”[62] – é,
em essência, apenas o nome que atribuímos a uma maneira mais refinada
de fazer filosofia desenvolvida ao longo do século XX. Essa
abordagem exige ênfase particular no meio linguístico-conceitual, sobretudo
por razões de rigor metodológico.
Considerando que a filosofia pode ser vista
como um jogo argumentativo, indiretamente voltado à busca da verdade, realizado
por meio de lances com um material simbólico-linguístico, torna-se compreensível
por que o emprego de novos instrumentos procedurais passou a ser uma característica
distintiva da filosofia posterior a eles. Tal traço se evidencia especialmente
em suas áreas teóricas mais centrais, como a epistemologia e a metafísica, além
de outras, como as filosofias da linguagem, da ciência, da matemática e da lógica.
Um paralelo revelador pode ser traçado
entre a assimilação histórica das doutrinas propedêuticas do Organon aristotélico
e a incorporação de novos procedimentos formais nos domínios centrais da filosofia
contemporânea.
Aristóteles
via nas novas doutrinas lógicas e metodológicas contidas em seu Organon um
instrumento indispensável para o adequado exercício do raciocínio filosófico
e científico. O Organon incluía uma teoria da proposição e de seus constituintes,
uma teoria do raciocínio dedutivo (a silogística), reflexões sobre a natureza das
definições, rudimentos de uma teoria da indução, da explicação e da predição
científicas, além de uma classificação das falácias.
A assimilação dessas doutrinas foi lenta. Mas,
aos poucos, ela acabou por transformar decisivamente os modos de se fazer filosofia
teórica. Os instrumentos aristotélicos de investigação foram aperfeiçoados nas
universidades da Baixa Idade Média, especialmente sob a denominação de
dialética, estabelecendo novos e irreversíveis padrões argumentativos em filosofia
que, uma vez adotados, jamais puderam ser totalmente ignorados, ao menos nos âmbitos
de investigação aos quais se aplicavam.
Ora, a
assim chamada filosofia analítica deixa-se explicar como a consequência de uma
revolução metodológica análoga. Desde o final do século XIX, surgiram desenvolvimentos
extremamente relevantes em domínios semelhantes aos cobertos pelo Organon aristotélico.
Alguns dizem respeito à estrutura das proposições (como no caso da semântica fregeana),
outros à lógica dedutiva (como a lógica dos predicados de primeira e segunda
ordem e, mais tarde, a lógica modal...), ao raciocínio indutivo (teorias da
probabilidade, teoria descritiva da decisão...), à pragmática (teoria da verificação,
a teoria dos atos de fala...) e ao domínio da filosofia da ciência (teorias da explicação,
da confirmação...).
Seria deveras
surpreendente se a linguagem filosófica, ao menos em muitos de seus domínios, não
acabasse por ser profundamente modificada por tais desenvolvimentos, capazes de
estabelecer padrões superiores de claridade e rigor, além de aumentar notavelmente
seu potencial heurístico, ao menos enquanto devidamente aplicados. A incorporação
desses novos procedimentos em uma investigação cientificamente informada deve
inevitavelmente possibilitar uma visão mais nítida, em uma revolução comparável
àquela que a descoberta do telescópio representou para a astronomia. (Mas, como
percebeu Gottlob Frege, somente quando o que está em questão é a investigação dos
astros; não para o que se encontra ao nosso redor.)
Recapitulando os principais resultados: a razão
profunda pela qual a filosofia analítica já pareceu ter somente a linguagem
como objeto reside em sua preocupação propedêutica com o elemento linguístico-conceitual;
uma preocupação que se tornou especialmente evidente com o emprego do que Quine
chamou de ascensão semântica. Esse enfoque levou os filósofos analíticos, inicialmente,
a confundir os novos instrumentos e procedimentos de abordagem – que também podem
ser aplicados em outros lugares – com o método peculiar da filosofia, levando-os
ao erro subsequente de tomar o objeto de aplicação desses instrumentos pelo objeto
próprio da filosofia.
O fato de que, em filosofia, recorremos frequentemente
a uma metalinguagem semântica para promover um tratamento mais rigoroso das estruturas
linguístico-conceituais não implica ignorar seus sentidos e referências – concebidas,
aliás, por meio desses mesmos sentidos. E tampouco nos obriga a renunciar ao
acesso ao mundo. Esse recurso, como outros, é um elemento constitutivo do que,
de maneira um tanto enganosa, já foi chamado de “filosofia analítica da linguagem”,
a qual, ao incluir representações panorâmicas, também incorpora um inevitável componente
de síntese teorética.
De fato, se “análise conceitual” é o nome de algo,
então designa os modos de investigação que incorporam uma consciência semiótica
mais refinada, aliada a procedimentos heurísticos que se tornaram comuns nos
domínios centrais da filosofia ao longo do século XX, iniciando com Gottlob Frege
(para Searle, “o inventor da filosofia analítica”). Em termos mais amplos, pode-se
dizer que a filosofia dita analítica resultou, em grande medida, do desenvolvimento
das “ciências semióticas” aplicadas à filosofia, o que nada tem a ver com o método
próprio e inalienável da filosofia.
Em
suma: “análise conceitual” é o nome atribuído aos traços procedurais mais
salientes de um estado da arte historicamente contingente – trata-se, se quisermos,
de um estilo que procuraremos preservar ao longo de nossa investigação.
Se, com
esse fastidioso capítulo, não avançamos significativamente, pelo menos livramo-nos
de algumas preocupações.
[1] Ver Pierre Hadot: Philosophy as a Way of
Life: Spiritual Exercises from Socrates to Foucault, cap. 11.
[2] Edmund Husserl, Ideen zu einer reinen Phänomenologie
und zu einer phänomenologischen Philosophie, Cap. 1, sec. 3.
[3] Cf. Michael Inwood, A Heidegger Dictionary, p. 164.
[4] Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen,
sec. 109.
[5] Gilles Deleuze & Félix Guattari, Qu’est-ce
que la philosophie?
[6] Rudolph Carnap, “On the Character of Philosophical
Problems” in R. C. Rorty (ed.) The Linguistic Turn, p. 54.
[7] Metafísica I, 982b
[8] “Foi o espanto que levou os
homens, agora como no princípio, a filosofar.” Aristóteles, Metafísica, 982b
12.
[9] A. E. Taylor, Aristotle
(1916), p. 42. Em consonância com
Aristóteles, G. E. Moore definiu a filosofia como uma tentativa de oferecer uma
descrição geral das mais amplas categorias de coisas no universo e das relações
entre elas. “What is Philosophy?”, p. 23.
[10] Wilhelm Dilthey, Die Typen der Weltanschauungen
und ihre Ausbildung in die metaphysischen Systemen.
[11] Ver John Kekes, The Nature of Philosophy. O tema é considerado
criticamente em C. D. Broad “Critical
and Speculative Philosophy”, sendo reconsiderado como uma espécie de ideial por
Wittgenstein em sua sugestão de que a filosofia deva buscar uma reprentação
sinóptica de nossa linguagem (übersichtliche Darstellung) talvez
refletindo uma visão de mundo (Weltaschauung).
[12] Ernst Tugendhat, “Die Philosophie unter sprachanalytischer
Sicht“, in Philosophische Aufsätze (1990), p. 268.
[13] Susan Haack,The Fragmentation of Philosophy: The Road
to its Reintegration, cap. 1.
[14] Segundo o físico Stephen Hawking, a filosofia morreu
por não ter sido capaz de acompanhar a ciência... The Great Design, p. 5
[15] Uso o
termo ‘metafilosofia’ no sentido de filosofia da filosofia. A palavra ‘metaphilosophy’
foi, ao que consta, criada por Morris Lazerovitz em 1940, significando a mesma
coisa que uma investigação filosófica sobre a natureza da filosofia. Ver seu “A
Note on Metaphilosophy”, no primeiro número da revista Metaphilosophy. Para
isso, como notaram S. Overgaard, P. Gilbert e S. Burwood (Introduction to Metaphilosophy,
p. 10), não chega a ser necessário seguir o conselho de Timothy Williamson,
substituindo a palavra ‘metafilosofia’ pela expressão ‘filosofia da filosofia’,
como se ‘metafilosofia’ significasse algo que está “olhando para a filosofia além
dela, de cima para baixo”. Cf. Williamson, The Philosophy of Philosophy,
p. xxx.
[16] Analysis and Metaphysics, p. 5.
[17] Ernst Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die Sprachanalytische
Philosophie. cap. 11.
[18] Claudio Costa, Philosophical Semantics: Reintegrating
Theoretical Philosophy, cap. II, sec. 7
[19] Saul Kripke, Naming, and Necessity.
[20] Para uma crítica ao reducionismo da teoria causal-histórica
da referência em Kripke, ver Claudio Costa: How Do Proper Names Really Work?
Cap. II.
[21] Johannes Hessen: Teoria do conhecimento, p. 18.
[22] The Nature
of Philosophy”, in Dilthey: Selected Writings, p. 122.
[23] Sobre a extraordinária variedade de recursos
metodológico-heurísticos mobilizados pelos filósofos contemporâneos, vale consultar
The Oxford Handbook of Philosophical Methodology, editado por Herman Cappelen
et all (2016). Embora útil, o livro exemplifica uma limitação recorrente
na filosofia presente: confiança subserviente na sabedoria herdada da filosofia
analítica anglófona das últimas cinco ou seis décadas. Filósofos emblemáticos como
Wittgenstein, Russell, Husserl e mesmo Gottlob Frege, são raramente mencionados.
Críticos relevantes, como John Searle, opositor do formalismo, e Susan Haack, crítica
severa do estado atual da filosofia analítica, são virtualmente silenciados.
[24] Ernst Tugendhat, Die Philosophie unter
den sprachanalytischen Sicht, p. 268.
[25] W. V. O. Quine, Word and Object, p.
270 ss.
[26] W. V. O. Quine, “A Letter to Mr. Ostermann.”
[27] Ver Timothy Williamson: The Philosophy of Philosophy,
cap. 1.
[28] J. O. Urmson Philosophical Analysis:
Its Development between the Two World Wars.
[29] Ver argumento desse gênero em Bertrand Russell, A History
of Western Philosophy, p. 127.
[30] A clássica crítica da linguagem ordinária ao argumento
da ilusão é encontrada no livro Sense and Sensibilia, de J. L. Austin. Uma
crítica muito aguda, embora esquemática, ao argumento da ilusão, pode ser encontrada
no livro de J. R. Searle, Language, Mind and Society: Philosophy in the Real
World, cap. I, p. 28 ss. A
última palavra de Searle em defesa do realismo direto encontra-se em seu muito recomendável
livro Seeing Things as they Are (2015).
[31] Ver Claudio Ferreira-Costa, How do Proper
Names Really Work?, pp. 220-241
189-190.
[32] Cf. Claudio Ferreira-Costa, How do Proper Names Really Work?, pp.
189-190.
[33] Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen
I, sec. 109, 118, 119... Uma tentativa bem articulada, mas interpretativamente objetável,
de defender essa interpretação deflacionária de Wittgenstein encontra-se em Paul
Horwich, Wittgenstein’s Metaphilosophy.
[34] Prefiro
pensar que, ao escrever sobre “terapia”, Wittgenstein estava falando de seu modo
pessoal e minimalista de trabalhar com conceitos filosóficos, e não que ele
estava propondo o único e próprio método de filosofar. Só isso explica por que
ele também manteve ideias diferentes e aparentemente incompatíveis com isso,
como foi apontado por seus melhores intérpretes. Ver, por exemplo, Anthony Kenny,
“Wittgenstein and the Nature of Philosophy”. Para uma tentativa de compatibilizar
essas duas concepções, ver meu livro, A Linguagem Factual, cap. II, que
contém um resumo de minha tese doutoral intitulada Wittgensteins Beitrag zu einer
Sprachphilosophischen Semantik.
[35] Wittgenstein, The
Blue Book, pp. 17-18.
[36] A. J. Ayer, Ludwig Wittgenstein, p. 137.
[37] L. Wittgenstein,
Investigações Filosóficas, sec. 79.
[38] J. R. Searle, “Proper Names.”
[39] How do Proper Names
Really Work?
[40] R. Carnap, Logische Syntax der Sprache, parte I.
[41] J. R. Searle, Mind, Language and Society:
Philosophy in the Real World, p. 138.
[42] Ambos os componentes podem vir implicitos alternadamente:
posso dizer “Feche a porta” e o contexto se encarregará de indicar se se trata de
um pedido ou de uma ordem. Posso dizer “Por favor” e o contexto mostrará ao ouvinte
que se trata de um pedido de fechar a porta.
[43] J. R. Searle, Intentionality: An Essay in the Philosophy
of Mind, cap. 1.
[44] Tractatus Logico-Philosophicus 4.002.
[45] Philosophische Untersuchungen I, sec. 122. Sobre o conceito
de representação panorâmica (übersichtliche Darstellung),
ver os comentários de G. P. Baker & P. M. S. Hacker, em Wittgenstein: Understanding
and Meaning, p. 489. (Refiro-me à primeira edição do texto, que prefiro à versão
revisada apenas por Hacker após o falecimento de seu coautor.)
[46] Ernst. Tugendhat, “Die Philosophie unter den sprachanalytischen
Sicht“, p. 268.
[47] W. V. O. Quine: World and Object, p.
[48] W. V. O. Quine, Word and Object, pp.
271-272.
[49] Frege chamou de sentido de um nome de Art des
Gegebenseins eines Gegenstandes: o “modo de se dar do objeto”, mas não chegou
a fazer uma análise do sentido da expressão predicativa, supostamente por ter resistido
a identificar seu sentido com o conceito.
[50] Como introdução, ver Charles Morris, Foundations
of the Theory of Signs.
[51] Searle observou em aula que sua aproximação (pragmático-comunicacional)
das questões é “mais forte” (stronger) do que uma aproximação de inspiração
puramente formal.
[52] Kai Nielsen sublinhou o fato óbvio, mas ainda assim notável,
de que quando filósofos descrevem os usos de nossas expressões, “eles estão fazendo
observações empíricas sobre como a linguagem funciona.” “What is Philosophy?”
[53] Essa ideia antiga foi pela primeira vez adequadamente
aprofundada por Robert Fogelin no capítulo I de seu livro Pyrrhonian Reflection
on Knowledge and Justification. Ela foi refinada de maneira que considero
definitiva no capítulo V de meu livro Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions. Voltarei a ela mais tarde.
[54] A sugestão original de que o significado de uma sentença
declarativa se constitui em seus procedimentos de verificação foi feita por Wittgenstein
e tem muito pouco a ver com as soluções formalistas insustentáveis tentadas mais
tarde pelos membros do Círculo de Viena – um boneco de palha que eles criaram para,
com toda razão, depois rejeitar. A sugestão original de Wittgenstein requer um desenvolvimento
pragmático que, pelo que sei, nunca foi seriamente tentado. Ver Wittgenstein’s
Lectures, pp. 28-29 (sec. 24). Para uma discussão mais detalhada, ver Claudio
Costa, Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy, cap.
V.
[55] Ver o resumo da teoria em D. M. Armstrong:
The Mind-Body Problem: an Opinionated Introduction, cap. 10. Pessoalmente,
acredito na possibilidade de uma teoria filosófica integradora e diferenciadora
dos subconceitos de consciência. Ver meu Lines of Thought: Rethinking Philosophical
Assumptions, cap. 10.
[56] Donald
Williams, “The Elements of Being”, partes I e II. A teoria tem sido aos poucos diluída
pelo escolasticismo contemporâneo, de modo que é aconselhável voltar ao original.
[57] A. J. Ayer, em entrevista com Brian Magee (Men
of Ideas, p. 127). A objeção de Magee a essa observação de Ayer e a observações similares feitas
na entrevista com Searle – uma objeção à qual respondo aqui de modo mais detalhado
– é que a indagação analítica, como qualquer indagação metalinguística, inevitavelmente
deixa o mundo real de fora (ver Brian Magee in Confessions of a Philosopher,
pp. 74-76). Outros, como John McDowell, também perceberam isso, mas sob a admissão
de um descabido externalismo semântico (Mind and World, p. 27). Contudo,
a palavra ‘significado’ significado pertence à linguagem tanto quanto a palavra
‘verdade’. Dizemos que a Revolução Industrial teve grande significado para a evolução
da humanidade, mas aqui a palavra ‘significado’ aparece apenas como substituto de
‘importância’. Minha crítica ao externalismo do significado, tal como foi desenvolvido
por Hilary Putnam, encontra-se no capítulo VIII de meu livro Cognitivismo semântico:
filosofia da linguagem sob nova chave.
[58] Note-se que essas cadeias causais externas realmente existem.
O problema é que elas não possuem, enquanto tais, qualquer poder explicativo. Ver
John Searle, Intentionality, cap. 9.
[59] Um espécime disso é o livro de B. Latour &
S. Woolgar, Laboratory Life: The Construction of Scientific Facts. Eles tiveram
a ideia (tão original quanto imatura) de investigar os cotidiano de um laboratório
científico como se estivessem estudando os rituais de xamãs em uma comunidade indígena.
[60] A máxima da integridade epistêmica é aqui:
“não transgredir a linguagem ordinária, a menos que você tenha razões suficientes
para fazê-lo”.
[61] Uma exceção histórica parece ter sido o filósofo
G. E. Moore, que pode ser considerado um herdeiro tardio da antiga escola do senso
comum, convivendo com os analíticos e confundindo-se com eles.
[62] O canto de cisne que discute a filosofia comunicacionalmente
inspirada na filosofia alemã foi o clássico estudo de Ernst Tugendhat de 1976, intitulado
Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, que foi
traduzido para o português sob o título de “Lições introdutórias à filosofia analítica
da linguagem”. Desde então, cada vez mais, a filosofia formalmente orientada
tem se tornado quase hegemônica.

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