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terça-feira, 25 de novembro de 2025

SOBRE A NATUREZA DA FILOSOFIA (2-4)

 Continuação...

 

 

 

 

                                                          III

 

                             FILOSOFIA COMO ANTECIPAÇÃO

                                CONJECTURAL DA CIÊNCIA

 

                                        Where there is philosophy, there will be Science.

                                        [Onde a filosofia está, lá estará a ciência]

                                        Robert Nozick

 

                                               

Gostaria agora de dar início à busca descritivista dos critérios empregados para identificar o discurso e o pensamento filosóficos. Minha proposta é que, mesmo que não possamos encontrar um objeto próprio da investigação filosófica e nada de metodologicamente relevante que lhe seja exclusivo, ainda assim seremos capazes de encontrar algo peculiar à filosofia, desde que voltemos a atenção aos elementos constitutivos de sua forma.

 

 

1.     O CARÁTER INEVITAVELMENTE CONJECTURAL

     DA INDAGAÇÃO FILOSÓFICA

 

Mesmo que o metafilósofo descritivista não encontre um traço distintivo da filosofia nos aspectos materiais de sua investigação, ele poderá sempre encontrar um traço formal marcante e comum a toda indagação filosófica, qual seja, seu caráter conjectural:

 

A filosofia é, por essência, um empreendimento conjectural ou especulativo, no sentido de que filósofos não são capazes de produzir um acordo consensual suficiente sobre suas ideias, doutrinas e mesmo sobre seus valores e concepções mais fundamentais.

Não existe filosofia cujos resultados sejam considerados definitivos e indiscutíveis, como ocorre em domínios científicos, como, digamos, a biologia molecular. Como em algum lugar escreveu Russell, enfatizando esse fato: “Ciência é o que sabemos; filosofia é o que não sabemos... Ciência é o que podemos provar que é verdadeiro; filosofia é o que não podemos provar que é falso.”

   A razão do caráter inevitavelmente conjectural da filosofia não é difícil de identificar. Para alcançarmos um acordo consensual sobre os resultados de nossos questionamentos, precisamos, ao menos, compartilhar certos pressupostos fundamentadores, certas assunções gerais. No entanto, a filosofia carece de um mínimo de compartilhamento de pressupostos dessa espécie em quase todos os passos de sua investigação. Particularmente importante nesse aspecto é a ausência de pressupostos fundamentadores compartilhados capazes de produzir acordo consensual sobre o que podemos chamar de:

 

(A)   Evidências justificadoras: pressupostos gerais que tornam possível a formulação de problemas comuns e a seleção de dados relevantes (os data). (Filósofos nunca concordam sobre quais são data fundamentadores de seus argumentos ou seu grau de relevância, nem mesmo sobre as questões relevantes, que para alguns são cruciais e para outros sequer fazem sentido.)

 

E também sobre

 

(B)   Procedimentos justificadores: suficiente acordo prévio acerca de critérios e procedimentos de avaliação da verdade ou se seu valor de modo a possibilitar soluções compartilhadas. (Argumentos convincentes para alguns podem parecer implausíveis e irrelevantes a outros.)

 

Sem o compartilhamento de assunções dos tipos (A) e (B) (que não existe na filosofia, embora existam nas ciências particulares), parece impossível esperar algo como um acordo sobre resultados.

     Para ilustrar, retomemos a doutrina platônica das ideias. Essa teoria foi sugerida como solução para o problema da generalidade, tendo sido construída sob o pressuposto de que algo deve ser imutável para se tornar objeto legítimo do conhecimento. Ora, como Heráclito já havia tornado claro que o mundo sensível se encontra em constante transformação, o objeto próprio do conhecimento só poderia ser aquilo que Platão denominou ideias ou formas: entidades eternas e imutáveis, existindo fora do tempo e do espaço, em um mundo puramente inteligível. Como consequência, torna-se possível, por exemplo, predicar a beleza de uma grande diversidade de coisas visíveis, na medida em que exemplificam a ideia abstrata do belo.

     Contudo, a doutrina também acarreta sérias dificuldades. Uma delas é a seguinte: como pode uma única ideia abstrata relacionar-se com os muitos indivíduos concretos a que se aplica? Para resolver esse problema, Platão apelou às metáforas da participação (μέθεξις) e da cópia (μίμησις), dificilmente resgatáveis. Assim, pela metáfora da participação, ele foi forçado a defender que muitas coisas podem participar de uma mesma ideia, sem, porém, dividi-la em partes, o que parece inconsistente. A metáfora da cópia parece ter sucesso até notarmos que não é concebível que uma ideia puramente inteligível (ou abstrata) possa ser copiada pelas coisas do mundo visível (ou sensível).

      A própria noção platônica de ideia enfrenta dificuldades. Críticos da doutrina podem sentir-se tentados a considerar o conceito platônico de ideia intrinsecamente incoerente, sobretudo por depender de metáforas irresgatáveis. São essas objeções justificadas? Parece que sim. Fui a Atualmente são poucos os filósofos platonistas, embora eles existam (Frege fez no artigo O Pensamento (Der Gedanke) a mais talvez mais refinada defesa contemporânea do platonismo.) Além disso, não temos uma alternativa que todos aceitem. Tudo o que podemos dizer é que hoje, o platonismo parece a muitos uma alternativa pouco plausível.

     A situação de dúvida não é tão ruim, mas ela se torna desesperadora se exigirmos que o período em que a doutrina filosófica foi desenvolvida seja parte da equação: no tempo de Platão, não havia sequer a possibilidade de concluir que sua doutrina fosse pouco plausível. É compreensível que Aristóteles tenha se encontrado em papos de aranha ao tentar refutar a existência de universais separados da substância em sua Metafísica.[1]

     A incerteza é, de fato, esperada, visto que a filosofia se dedica à construção de teorias fundamentadas sobre bases incertas. Essa é uma conclusão falibilista um tanto deprimente, que muitos filósofos tradicionais procuraram negar, mas que filósofos contemporâneos já há um bom tempo aprenderam a aceitar como inevitável. De fato, não há exceção. Mesmo a filosofia terapêutica tentada pelo último Wittgenstein, que pretendia ser puramente descritiva, logo acabou por mostrar-se incapaz de produzir acordo consensual: onde ele via um remédio, outros viam um placebo ou mesmo um veneno.

   Essa impossibilidade de acordo consensual também constitui o mais marcante termo de contraste entre filosofia e ciência. Pois diversamente da filosofia, em tudo o que chamamos de ‘ciências’ – tanto empíricas quanto formais – há sempre um grau suficiente de concordância prévia quanto a:

 

(A) Evidências justificacionais, ou seja, pressupostos gerais, que tornam possível a formulação de problemas comuns e a seleção de dados relevantes (dados sensíveis/axiomas), bem como

(B) Procedimentos justificadores, ou seja, suficiente acordo prévio acerca de critérios e procedimentos de avaliação da verdade ou do valor almejado a possibilitar soluções compartilhadas (verificações/provas).

 

Esses acordos prévios, por sua vez, possibilitam a concordância ulterior acerca dos resultados, tanto no que diz respeito à verificação ou refutação em ciências empíricas quanto à demonstração de teoremas em ciências formais. É precisamente por terem sido capazes de estabelecer tais pressupostos comuns que os cientistas, ao contrário dos filósofos, conseguem alcançar acordos acerca dos resultados de suas investigações e nutrir a expectativa de um desenvolvimento progressivo.

   Atentar para a natureza conjectural do esforço filosófico permite-nos esclarecer duas de suas características formais: o caráter tipicamente argumentativo e inevitavelmente aporético de seu discurso, com poucas e questionáveis exceções. Filósofos estão sempre postulando ou sugerindo princípios incertos e buscando validá-los por meio da demonstração de suas implicações. Tal procedimento depende do caráter intrinsecamente conjectural da indagação filosófica, posto que, pelo próprio fato de trabalharem com conjecturas, operam por meio de uma constante comparação crítica entre as consequências argumentativas das assunções que consideram corretas, aliada à avaliação crítica dos argumentos empregados para alcançá-las, em uma tarefa que parece não ter fim. É a natureza conjectural que fundamenta a praxis distintivamente argumentativa, dialógica e aporética da filosofia.

     Poderia a filosofia ser definida apenas por seu caráter conjectural e especulativo? Não sem qualificações, posto que nem todas as conjecturas são filosóficas. Podemos, por exemplo, formular hipóteses sobre as condições climáticas da Terra nos próximos cem anos, o que não constitui uma investigação filosófica. Uma razão pela qual essa conjectura não é filosófica é a ausência de um ponto teorético: ela não passa de uma projeção plausível de eventos empíricos sujeitos a variações. Em matemática, a conjectura de Goldbach, segundo a qual todo número par maior que 2 é igual à soma de dois números primos, também não é filosófica, ao que parece porque acreditamos que, como muitas outras conjecturas matemáticas, ela pelo menos possa ser provada. Mas em filosofia não sabemos sequer se nossas conjecturas podem ser demonstradas verdadeiras, afinal, podem recair na categoria dos assim chamados pseudoproblemas.  

   Contudo, ainda que baseada em teorias, a projeção conjectural não é, por si só, o que filosoficamente as sustenta. A conjectura teórica de Noam Chomsky sobre a existência de uma gramática universal inata presente em todos os seres humanos, embora tenha inspirado inúmeras pesquisas, não pode ser facilmente demonstrada, mas não chega a ser filosófica. No entanto, ela não chega a ser filosófica não só por seu caráter muito específico, mas também porque os caminhos de avaliação experimental podem ser reconhecidos e se encontram hoje, aos poucos, sendo aproximados. Do mesmo modo, teorias especulativas comuns à física contemporânea, como a teoria das cordas, embora testáveis em princípio, estão longe de sê-lo na prática. Tais teorias conservam, diríamos, um traço especulativo ou “filosófico”, mas são consideradas científicas na medida em que os físicos não as consideram tão especulativas a ponto de parecer absurdo imaginar um meio de fazê-las passar pelo tribunal da experiência. Vê-se, portanto, que a diferença entre a especulação científica e filosófica, por depender do grau de possibilidade de comprovação consensual, não precisa ser abrupta.

     Como conclusão, parece que podemos qualificar como filosóficos todos os esforços de investigação que, em sua época, são tidos como definitivamente conjecturais – isto é, proposições que, no momento em que são formuladas, quanto aos seus resultados, não dispõem de nenhum meio concebível de avaliação. Esse pode ser considerado o critério mais geral para distinguir o que pertence à filosofia ou não. Ainda assim, trata-se de um critério muito pouco elucidativo quanto à natureza da filosofia em suas áreas centrais e historicamente mais relevantes.

 

 

     2. A IDÉIA DA FILOSOFIA COMO

          UMA PROTOCIÊNCIA  

 

Uma resposta mais profunda à pergunta: “Por que a filosofia é uma forma conjectural de investigação?” poderia ser formulada a partir da aceitação da tese de que, em muitos casos, ela pode ser considerada uma protociência, ou seja, um empreendimento conjectural que antecipa o empreendimento científico. Sob essa perspectiva, a persistente atualidade de muitas formulações filosóficas residiria nas verdades científicas que nelas, de algum modo, se prefiguram.

    Que boa parte da filosofia tenha sido historicamente uma antecipação da ciência não é nenhuma tese especulativa, mas um enunciado de fato. Entre os gregos, quando todas as ciências empíricas básicas ainda estavam em vias de serem formadas, o termo ‘filosofia’ (φιλοσοφία) era aplicado indistintamente a todo o domínio da investigação humana. Somente muito mais tarde, com a emergência daquelas ciências, a aplicação dessa palavra tornou-se gradualmente mais restrita, embora mantendo um núcleo central resistente. Ao ceder parcelas de seus domínios à ciência, a tradição filosófica tem se revelado como o berço, melhor dizendo, o útero (Kenny) do qual as ciências básicas nasceram,[2] ou ainda, seu “guardador de lugar”. Essa constatação do papel da filosofia como antecipação da ciência foi sintetizada de maneira impressiva em uma bem conhecida metáfora de J. L. Austin:

 

A filosofia é o sol inicial central, seminal e tumultuoso, que, de tempos em tempos, perde uma porção de si mesmo, que se torna ciência, um planeta frio e bem regulado, progredindo constantemente em direção a um estado final distante. Isso aconteceu longo tempo atrás, com o nascimento da matemática, e outra vez com o nascimento da física; somente no último século nós testemunhamos o mesmo processo outra vez, lento e, naquele tempo, quase imperceptível, no nascimento da ciência da lógica matemática, através do trabalho conjunto de filósofos e matemáticos.[3]

 

Austin demonstrou essa tese na prática ao dedicar os últimos dez anos de sua vida ao desenvolvimento de sua gramática das relações comunicativas, a teoria dos atos de fala, hoje mais estudada nos cursos de linguística do que nos de filosofia.[4]

      Com efeito, na medida em que a filosofia é concebida como uma indagação especulativa elaborada sobre um material de pensamento que, ao menos potencialmente, pode encontrar lugar na ciência, temos uma razão mais profunda para compreender sua natureza conjectural, argumentativa e aporética. Se a filosofia é aquilo que pode ser feito antes que qualquer investigação científica se torne possível, torna-se mais compreensível que as mais diversas hipóteses possam ser formuladas, que múltiplas linhas de pensamento possam ser desenvolvidas em sua justificação, e que a disputa sobre a hipótese correta e o argumento mais convincente perdure indefinidamente.

   Como até mesmo Wittgenstein (inesperadamente) observou: “Pode-se também chamar de ‘filosofia’ o que é possível antes de todas as descobertas e invenções.”[5]  Esse estado de coisas só se encerra quando o caminho da investigação científica é definitivamente encontrado, ou seja, quando os estudiosos alcançam um grau suficiente de consenso sobre os pressupostos fundamentais que sustentam um determinado campo de pesquisa. Esse consenso estabelece uma delimitação clara sobre o que são os dados relevantes, quais questões devem ser admitidas e quais procedimentos são válidos para aferir suas respostas.

   Quando esse acordo prévio é suficientemente amplo para permitir a produção concebível de resultados consensuais, os estudiosos deixam de chamar seu objeto de pesquisa de “filosófico” e simplesmente o redefinem como objeto da ciência. (Daí o dito popular segundo o qual a tragédia do filósofo é que, sempre que ele alcança uma verdade definitiva, ele a perde para o cientista.)

 

 

3. ORIGENS E DIVISÕES DA CIÊNCIA

 

Antes de discutirmos em detalhes as possibilidades de derivação da ciência a partir da filosofia, é aconselhável dizer algo sobre a classificação e a emergência das ciências mais fundamentais.

     As ciências são certamente de duas espécies: formais e empíricas. Essas duas espécies sempre mantiveram, em alguma medida, uma relação de interdependência ao longo de seus desenvolvimentos. As ciências formais fundamentais são a lógica e a matemática, cujos princípios remontam à Antiguidade. A aritmética elementar e a geometria se desvincularam da filosofia já entre os gregos, quando seus respectivos objetos – o número, no caso da aritmética, e o ponto e as formas geométricas, no caso da geometria – passaram a ser considerados de maneira independente dos problemas práticos que originalmente deveriam resolver. Uma forma muito limitada da lógica também surgiu precocemente com a silogística aristotélica.

     Poderíamos, sem dúvida, falar de uma protológica e de uma protomatemática filosóficas. O poema de Parmênides, por exemplo, oferece uma formulação metafísica implícita das leis lógicas da identidade, da não-contradição e até mesmo do terceiro excluído, ao afirmar que o ser é e que o não-ser não pode ser. Platão, por sua vez, já dispunha de uma teoria rudimentar da predicação. Os filósofos pitagóricos, impressionados pelas realizações da matemática abstrata, acreditavam que os números fossem a arché (ἀρχή), o princípio causal sustentador de toda a realidade, tomando, à sua maneira, o formal pelo empírico.[6] Contudo, a verdadeira questão, ainda hoje filosófica, acerca da natureza ontológica dos números, permanecia, naquela época, ainda envolta na mais completa escuridão.

     Retomando a discussão sobre as ciências empíricas, adotarei aqui uma versão corrigida e atualizada da classificação das ciências empíricas básicas proposta por Auguste Comte. Essa classificação ainda se mostra bastante razoável se for adequadamente reinterpretada, pois é capaz de nos proporcionar um rationale para a compreensão da ordem de aparecimento dessas ciências como o tronco historicamente demonstrado da árvore do conhecimento, a qual, em seus galhos, se torna muitíssimo variegada.

   O princípio classificatório divisado por Comte estabelece que as ciências básicas se organizam segundo uma dupla ordem:

 

(a)  Da maior para a menor generalidade no escopo dos fenômenos investigados.

(b) Da menor à maior complexidade desses fenômenos, na medida em que a exatidão de uma ciência é inversamente proporcional à complexidade dos objetos que ela estuda.

 

Ao modificar e atualizar a classificação original, podemos distinguir cinco ciências empíricas básicas: física, química, biologia, psicologia e sociologia.[7] O seguinte esquema sumariza essa classificação:

 

   PARTICULARIDADE                                         COMPLEXIDADE

 


                                5. sociologia            ciências

                                4. psicologia            humanas

        (a)                                                                                     (b)

                                3. biologia                ciências

                                2. química                naturais

                                1. física

                        (ciências formais: lógica e matemática)

 

   GENERALIDADE                                                 SIMPLICIDADE

 

 

De (1) a (5) temos as ciências empíricas básicas, organizadas em uma hierarquia em que cada uma pressupõe a anterior. A física, que é dependente do desenvolvimento das matemáticas, ocupa a base dessa estrutura. Ela é justamente considerada a ciência empírica fundamental, pois abrange, em seu escopo, toda a realidade empírica, sem exceção: átomos, partículas subatômicas e forças elementares permeiam o universo inteiro. Em seus princípios, é também a mais simples, o que justifica seu mais extenso âmbito de aplicação. A química, por sua vez, tem um escopo mais restrito, voltado aos fenômenos decorrentes da combinação de elementos atômicos. Ela se divide em duas grandes áreas: a química inorgânica, voltada a compostos não baseados em carbono, e a química orgânica, constituída por compostos de carbono, geralmente muito mais complexos. Com um escopo ainda mais restrito, a biologia dedica-se ao estudo dos seres vivos, vegetais e animais, cuja constituição é bioquímica. A psicologia restringe-se a uma pequena parcela dos seres vivos: aqueles que possuem fenômenos mentais dos quais emerge a consciência. Finalmente, a sociologia ou física social possui escopo ainda mais limitado, voltando-se exclusivamente ao estudo das sociedades humanas em suas formas estática e dinâmica.

      A progressiva perda de generalidade dos fenômenos investigados corresponde a um aumento na complexidade dos princípios envolvidos. Isso ocorre porque os fenômenos mais complexos só podem emergir em contextos mais específicos e delimitados, como os das ciências superiores.

     Cabe ainda destacar que as ciências humanas e sociais se distinguem das ciências naturais por incorporarem um elemento interpretativo em psicologia geralmente denominado empatia e, em sociologia, a compreensão (o Verstehen de Weber) ou a imaginação sociológica (C. W. Mills). Ou seja: para compreendermos os fenômenos psicológicos e sociais, é necessário recorrermos a nossas próprias mentes como espelhos do que desejamos compreender, colocando-nos no lugar de outras pessoas ou das pessoas em grupos de outras pessoas, para saber como se sentem ou reagem diante dessa ou daquela situação. Claro que a adição do elemento interpretativo torna muito mais difícil e complexa a obtenção de resultados consensuais nessas ciências, o que não significa torná-los impossíveis, dado que ele também pode ser esclarecido.

     As relações entre generalidade e complexidade também ajudam a compreender a ordem de nossa apreensão cognitiva das ciências básicas, bem como a própria sequência de seu desenvolvimento histórico. De fato, para aprender física, não é, em princípio, necessário qualquer conhecimento prévio de química. Já a química, por sua vez, pressupõe certo entendimento de seus fundamentos físicos. Também, para entender melhor a vida, precisaremos conhecer a química orgânica, pois é por meio dela que se estruturam os pilares da genética e da biologia molecular. Também o aprendizado de psicologia pressupõe suficiente entendimento de biologia. Por fim, a compreensão da sociologia requer algum conhecimento de psicologia, incluindo seu elemento interpretativo, e tende, em certa medida, a pressupor as ciências anteriores.

    Essas pressuposições nos ajudam a compreender por que o desenvolvimento das ciências básicas de menor escopo e maior complexidade depende, de modo geral, do progresso das ciências mais gerais e mais simples. Essa dependência não se limita aos fundamentos teóricos, mas também abrange os avanços tecnológicos e instrumentais das ciências mais gerais. Como poderia, por exemplo, a biologia desenvolver-se sem a invenção do microscópio, cuja construção depende dos princípios da óptica, que, por sua vez, derivam diretamente da física? Assim, o progresso das ciências superiores está condicionado não apenas ao conhecimento acumulado nas ciências anteriores, mas também às suas aplicações práticas, que viabilizam novas formas de investigação e compreensão.

   Essas considerações ajudam a entender a ordem do nascimento das ciências básicas. A primeira delas a emergir foi a física, no Renascimento. Embora já houvesse rudimentos dessa ciência na antiguidade – como a descoberta da densidade específica por Arquimedes – foi somente após Galileu que a física experimental se consolidou como um corpo unificado de ideias científicas. A química, por sua vez, só emergiu como ciência entre os séculos XVIII e XIX. A psicologia desenvolveu-se gradualmente como psicologia experimental a partir da virada do século XX, embora sua legitimidade como ciência ainda seja debatida, especialmente sob a perspectiva da “psicologia profunda”, como pretendeu a psicanálise freudiana. A sociologia só se estruturou como um corpo teórico complexo, com pretensões científicas, a partir das contribuições de Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim. Tanto a psicologia quanto a sociologia se desvincularam da filosofia apenas parcialmente, em um processo gradual, escalonado e conflituoso.

     Essas dependências ajudam a explicar por que o processo de afirmação da psicologia e da sociologia como ciências tem sido muito mais lento, laborioso e escalonado. Observamos um salto, um verdadeiro ponto de inflexão que prefiro chamar de ruptura epistêmica entre ciência e o que se fazia antes de seu surgimento[8], com o nascimento da física como um corpo de conhecimento científico com Galileu e Newton nos séculos XVII; com o nascimento da química com Lavoisier, Cavendish e outros no final do século XVIII, e mesmo com a muito mais escalonada organização da biologia como um corpo de conhecimento científico ao longo do século XIX, por cientistas como Pasteur, Claude Bernard, Mendel e Darwin.

     Essas rupturas ocorreram quando, além do acúmulo do conhecimento, foram encontrados métodos de investigação apropriados, capazes de gerar consenso quanto ao poder preditivo e explicativo das teorias que formaram um corpo unificado. No entanto, quanto mais complexos e dependentes se tornam os domínios de investigação, menores são as chances de saltos ou rupturas abruptas. Algo assim encontramos nos domínios mais complexos da psicologia e da ciência social, onde não há mais um momento histórico de ruptura epistêmica claramente identificável.

     Assim, a constituição mais gradual das ciências humanas tem a ver com a hierarquia das ciências. Trata-se de uma complexidade e diversidade muito maiores dos fenômenos a serem investigados, nos quais as variáveis intervenientes tendem a crescer exponencialmente. Soma-se a isso o fato de que os procedimentos avaliativos nesses campos exigem um conhecimento de base muito mais amplo, frequentemente fornecido pelo desenvolvimento das ciências mais básicas e de suas aplicações.

      Não obstante, a maior razão da dificuldade de tornar as ciências humanas inteiramente científicas encontra-se em seu elemento irredutivelmente interpretativo (o Verstehen, a empatia, a imaginação social) que depende de um exame reflexivo constante, que desempenha papel central na psicologia e nas ciências sociais. Esse elemento interpretativo envolve aspectos não acessíveis à observação interpessoal direta e, por isso, não pode ser tão facilmente tratado de forma objetiva – embora também não deva ser considerado, como pretenderam behavioristas como J. B. Watson, em psicologia, e positivistas sociais como Émile Durkheim, desesperadamente subjetivo, pois afinal, o que é ontologicamente subjetivo não precisa ser por causa disso também epistemicamente subjetivo.[9]

     Em síntese, as ciências humanas, para se desenvolverem plenamente, dependem tanto da maturação das ciências básicas quanto do avanço das possibilidades de aplicação técnica dessas últimas. Podemos nos perguntar, por exemplo, o quão mais científica a psicologia poderá se apresentar no futuro, à medida que ela for integrada a bases neurocientíficas mais desenvolvidas. Mais do que isso, elas dependem de um incremento nas possibilidades epistêmicas do elemento de compreensão empática dos seres humanos, tanto no nível individual quanto no social.

      Há uma razão pela qual as ciências consideradas no esquema que faço derivar de Comte merecem ser chamadas de “básicas”. As demais ciências empíricas disponíveis são, em geral, subdivisões especializadas dessas ciências fundamentais — como a linguística e a economia, que se inserem no campo das ciências sociais — ou resultam da combinação de seus princípios, aplicados localmente a regiões ou objetos específicos. Exemplos deste segundo tipo incluem a História, que recorre, entre outros, à psicologia e à sociologia para compreender as transformações temporais nas sociedades humanas; a Etnologia, que aplica conceitos psicológicos e sociológicos ao estudo de grupos étnicos culturalmente distintos; a Geologia, que utiliza fundamentos da física e da química para investigar a estrutura e a dinâmica da Terra; a Neurofisiologia, que se vale da bioquímica e da biofísica para explorar o funcionamento cerebral. Há também ciências “abertas”, cuja evolução depende de acontecimentos futuros, como a própria história e a economia. Embora a economia política tenha produzido escolas com contribuições significativas desde sua fundação por Adam Smith, ela permanece marcada pela incerteza, dada a complexidade e constante transformação de seu objeto de estudo. Outras ciências se destacam pela natureza intrinsecamente complexa, como a neurociência, que investiga o cérebro a partir de múltiplas disciplinas. O número de subdivisões e combinações locais parece virtualmente ilimitado. No entanto, nosso objetivo aqui não é propor uma classificação exaustiva e precisa das ciências, mas sim delinear um esboço conceitual mínimo que nos permita investigar as relações entre filosofia e ciência.

     É importante destacar que a emergência das ciências básicas sempre substituiu a especulação puramente filosófica nos domínios a que se referem. A consolidação da física como ciência experimental, por exemplo, pôs fim ao reino da física aristotélica especulativa, ao menos naquilo que não se confundia com sua metafísica, que ainda hoje não foi superada por nenhuma ciência. Um destino semelhante teve a doutrina dos quatro elementos, proposta por Empédocles no século V a.C. e adotada por Aristóteles. Ela prevaleceu no pensamento ocidental por mais de dois mil anos, só tendo sido seriamente questionada no século XVII por Robert Boyle. O mesmo ocorreu com o vitalismo, a doutrina segundo a qual os fenômenos vitais seriam controlados por impulsos imateriais, distintos das forças físicas, após o desenvolvimento da biologia molecular. Note-se que uma reformulação filosófica do vitalismo foi defendida, ainda no século XX, por Henri Bergson, por meio de sua teoria do élan vital.

     Neste e nos capítulos seguintes, adotarei a classificação comtiana modificada das ciências básicas, por considerá-la, em linhas gerais, o verdadeiro tronco da árvore genealógica das ciências. Não preciso fazer mais aqui do que estabelecer esse alicerce mínimo, que nos ajude a compreender a relação entre filosofia e ciência.

 

 

4.     ALGUNS EXEMPLOS DE INSIGHTS

FILOSÓFICOS PROTOCIENTÍFICOS

 

Nesta seção, examinarei alguns exemplos em que ideias filosóficas anteciparam conceitos posteriormente desenvolvidos pela ciência, nos campos da matemática, da física, da química, da biologia e da psicologia.

   Esses exemplos podem nos confundir, como veremos mais adiante, pois se referem apenas a antecipações do tronco de ciências básicas bem conhecidas. Não abrangem as ciências derivadas, menos conhecidas ou mesmo as ainda desconhecidas, que podem ser muito diversas. Isso pode levar à falsa impressão de que as nossas indagações filosóficas atuais deveriam se relacionar às ciências futuras do mesmo modo que porções da filosofia de um passado mais ou menos remoto têm sido relacionadas às nossas ciências empíricas básicas. Essa é uma sugestão que pode bem ser responsável pela insistência em um cientificismo positivista teimoso, muito presente, que tende a reduzir a filosofia da ciência a sua relação com as ciências mais bem fundamentadas, como a física, e que é obstrutivo ao próprio desenvolvimento das ciências. (Para essa tendência, o próprio Comte tinha termos como ‘usurpação’, ‘hipertrofia’ e ‘anexação’.) Se formos precavidos ao considerar esse ponto, os exemplos que se seguirão não deixarão de ser instrutivos.

     Meus primeiros exemplos dizem respeito à lógica e à matemática. Como vimos no capítulo anterior, Parmênides, com sua doutrina segundo a qual “o ser necessariamente é, enquanto o não-ser não pode ser”[10] estaria antecipando as três chamadas “leis do pensamento”, a saber: (i) o princípio da identidade, segundo o qual “o ser é”, formalmente “A = A, ou “A → A”, já considerado por Platão; (ii) o princípio da não-contradição, que na formulação de Aristóteles afirma que “é impossível que a mesma coisa ao mesmo tempo pertença e não pertença a uma mesma coisa segundo o mesmo aspecto”[11], representado formalmente como “~(A & ~A)”; e (iii) o princípio do terço excluído, segundo o qual “se uma coisa pertence a uma mesma coisa ela não pode ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto não pertencer a ela”, formalmente: “~A v ~A”.[12]

     Vejamos agora um exemplo de antecipação da matemática. Ele pode ser encontrado na resposta de Aristóteles ao famoso paradoxo do movimento de Zenão de Eleia, segundo o qual Aquiles não é capaz de alcançar uma tartaruga em uma corrida, caso esta tivesse uma vantagem inicial. Isto porque sempre que Aquiles atingisse o ponto onde a tartaruga estivera, ela já teria avançado um pouco mais.

      Aristóteles respondeu observando que o tempo necessário para Aquiles percorrer cada intervalo espacial é inversamente proporcional ao tamanho desse intervalo. Como esses intervalos se tornam progressivamente menores, o tempo necessário para atravessá-los também diminui indefinidamente em proporção. Assim, embora haja infinitos pontos a serem alcançados, o tempo total para alcançá-los é finito, de modo que Aquiles logo ultrapassa a tartaruga.[13] Essa resposta antecipa de forma notável a noção de limite, que só seria formalizada muitos séculos depois com o desenvolvimento do cálculo infinitesimal por Leibniz e Newton.

     Considerando agora exemplos empíricos, temos a ideia defendida por Anaximandro (647-610 a.C.), segundo a qual a Terra não é sustentada por nada, permanecendo suspensa por estar igualmente distante de todas as coisas, o que tornaria impossível para ela mover-se simultaneamente em direções opostas.[14]

     Karl Popper sustentou que essa foi uma das ideias mais ousadas de toda a história do pensamento humano, pois tornou possíveis as teorias de Aristarco, Copérnico e outros. Afinal, conceber a Terra como livremente disposta no meio do espaço, e afirmar que “ela permanece sem movimento por causa da equidistância e do equilíbrio” é, em alguma medida, antecipar a ideia de forças gravitacionais, imateriais e invisíveis, que seriam formalizadas por Newton muitos séculos depois.[15]

     Embora antecipadora da física, a hipótese de Anaximandro não poderia ser considerada científica, já que, na época em que foi formulada, não havia  qualquer procedimento de avaliação da verdade que pudesse conduzir a um consenso. Por contraste, as ideias de Copérnico e Newton foram capazes de ser submetidas a testes e validações, obtendo consenso com precisão matemática quanto à sua verdade, uma condição de cientificidade que já era possível em suas respectivas épocas.

     Um exemplo por demais conhecido de antecipação é também a teoria atomista de Demócrito e Leucipo (século V a.C.), segundo a qual pedaços visíveis de matéria são compostos por átomos invisíveis e fisicamente indivisíveis, que possuem inúmeras formas distintas. Essa teoria é uma antecipação especulativa do que poderíamos chamar de estrutura conceitual de uma teoria atômica da matéria, ainda que não de seu conteúdo específico. Também a teoria dos quatro elementos, terra, água, ar e fogo, proposta pela primeira vez por Empédocles, antecipava, de forma muito ilusória em termos de estrutura conceitual, a tabela periódica de Mendeleev, com a sua ordenação dos elementos químicos fundamentais.

     No campo da cosmologia, os pré-socráticos ofereceram antecipações tanto da teoria contemporânea do Big Bang quanto da hipótese do universo pulsátil. A antecipação da teoria do Big Bang teria sido sugerida, segundo Sir Anthony Kenny, por Anaxágoras. Contento-me aqui em apresentar uma tradução fiel da exposição feita por Kenny:

 

Todas as coisas estavam juntas, infinitas em número, infinitas em pequenez; pois o pequeno também era infinito. Como todas as coisas estavam juntas, nenhuma era reconhecível em razão de sua pequenez.” (...) Essa pedrinha primeva começou a girar, jogando para fora o éter e o ar circundantes, formando dessa maneira as estrelas e o sol e a lua... Mas a separação nunca foi completa, permanecendo, ainda hoje, em cada coisa uma porção de tudo o mais. (...) A expansão do universo continua até hoje e continuará no futuro. Talvez tenha gerado outros mundos, além do nosso, com animais, pessoas, cidades e produtos da terra, exatamente como acontece conosco, e também com sol e lua, exatamente como em nosso caso.[16]

 

Anaxágoras (~450 a.C.) não só foi o primeiro a sugerir uma teoria do Big Bang, mas também o primeiro a propor a existência de outros planetas no universo, habitados por civilizações tão desenvolvidas quanto a nossa!

   Quanto à teoria do universo pulsátil, ela foi antecipada por Empédocles (~450 a.C.), que concebia o universo como movido por duas forças alternantes: o amor (Φιλία) e a discórdia (Νεῖκος). Quando o amor prevalece, o universo se funde em uma unidade; quando domina a força da discórdia, o universo se fragmenta em uma multiplicidade, num eterno ciclo de união e separação.

     Quanto à versão contemporânea do universo pulsátil ou oscilante, sua possibilidade foi matematicamente sugerida por Richard Tolman. Segundo essa hipótese, depois da expansão causada pelo Big Bang, haveria um ponto em que a gravidade venceria a força expansiva, levando o universo a se contrair em um colapso conhecido como Big Crunch. A partir daí, o processo se reiniciaria ciclicamente até que, com o aumento constante e inevitável da entropia, ele chegasse à sua morte final.[17]

     Outro exemplo notável de antecipação da ciência é a primeira hipótese em direção ao evolucionismo biológico, sugerida por Anaximandro. Ele afirmava que a vida teve origem na água, que criaturas vivas podem ser espontaneamente geradas da umidade e que os seres humanos evoluíram de espécies inferiores, posto que, nos primeiros anos, teriam morrido se fossem tão indefesos como são hoje ao nascer.[18] É verdade que as ideias de Anaximandro (sec. VI a.C.), quando tomadas em um sentido estrito, estavam equivocadas, pois ele acreditava em geração espontânea e que os seres humanos tivessem sido inicialmente gestados no interior de peixes, emergindo completamente formados, em vez de se desenvolverem gradualmente.

   Empédocles, contudo, foi além. Ele acreditava que os seres vivos nasceram da combinação dos elementos, especificamente duas partes de água, duas de terra e quatro de fogo. Com isso, formaram-se partes de animais. Algumas monstruosidades surgiram, como bois com cabeças humanas e, por sua vez, cabeças humanas em bois, além de criaturas andrógenas, frágeis e estéreis. Somente os mais aptos sobreviveram, dando origem aos presentes animais e seres humanos. Charles Darwin saudou Empédocles como a primeira pessoa a antever a evolução natural.[19]

    Alguém poderia aqui objetar que sentenças como “A terra está suspensa no espaço vazio” e “O homem desenvolveu-se a partir de formas inferiores de vida”, que podem ser extraídas da obra de filósofos pré-socráticos, são hoje verdades científicas. Teriam sido, então, verdades filosóficas que se tornaram científicas? Em certo sentido, sim. As ideias que essas sentenças expressam passaram a ser consideradas científicas para nós. Não obstante, isso não implica que elas não fossem filosóficas para outros homens em outros tempos, pois só se tornam obviedades quando vinculadas ao contexto atual de sua enunciação, ou seja, pelo menos após Copérnico e Darwin.

   Justamente porque estamos examinando ideias de pensadores do passado, é essencial considerá-las no contexto em que surgiram. No interior deles, dada a ausência de reforços evidenciais, elas só poderiam ser endereçadas de forma especulativa. Assim, o predicado ‘...é filosófico’ só adquire um sentido apropriado quando relacionado ao contexto histórico em que a ideação filosófica nasceu. Como situamos essas sentenças no contexto da obra de filósofos pré-socráticos, quando praticamente não havia suporte evidencial, somos levados a considerá-las especulações filosóficas. Do contrário, estaríamos obrigados a tratá-las como generalizações científicas, o que seria anacrônico.

     O último exemplo é relacionado à psicologia – um campo de investigação que ainda não se encontra bem consolidado como ciência. Trata-se aqui da doutrina platônica da tripartição da alma ou psiquê (ψυχή).[20] De acordo com essa doutrina, a alma é formada por três partes distintas:

 

(1) A primeira parte é a mais primitiva, formada por seus apetites corporais, desejos e necessidades.

(2)  A segunda parte é a do elemento animoso, formada por impulsos emocionais tais como coragem, raiva, ambição, orgulho, amizade, honra, lealdade, etc.

(3)  A terceira parte da alma é formada pela razão, que atua como um princípio inibitório que comanda as demais.

 

No diálogo Fedro, Platão comparou a razão com o condutor de uma biga alada à qual está atrelado um par de cavalos, um deles, bom, que representa o elemento animoso e que se esforça para se alçar ao reino das ideias; o outro mau, simbolizando os apetites inferiores e tenta trazer a biga de volta ao mundo terreno, dando muito trabalho ao seu condutor.[21]

     Ora, a doutrina platônica da tripartição da alma acabou por ser, em boa medida, corroborada pela neurociência. Segundo o renomado neurofisiologista Paul McLean, autor da teoria do cérebro triúno, nosso cérebro é composto por três computadores interrelacionados e evolucionariamente originados: o arquiencéfalo, o mesencéfalo e o neoencéfalo. O arquiencéfalo (cérebro reptiliano) corresponde ao bulbo raquidiano e aos gânglios basais. É responsável pelas disposições instintivas do organismo, como a respiração, os batimentos cardíacos, a fome e o desejo sexual... O mesencéfalo abriga o que ele chamou de sistema límbico, responsável pela memória emocional, pelo humor e pelas motivações. Há, por fim, o neoencéfalo, que constitui o córtex cerebral, que ocupa no ser humano cerca de 78% da massa encefálica e que é responsável pelo pensamento racional, pela linguagem, pela tomada de decisões e consciência.

      A teoria do cérebro triúno guarda notável semelhança com a concepção platônica da alma, composta por desejo (arquiencéfalo), emoção (mesencéfalo) e razão (neoencéfalo).[22]

     Sob a perspectiva da psicologia, a teoria platônica da tripartição da mente também pode ser considerada precursora da teoria estrutural da mente proposta por Sigmund Freud.[23] Segundo essa última, a mente também se divide em três instâncias:

 

1)    o Id (Es), inteiramente inconsciente, representa os impulsos instintivos e as pulsões básicas.

2)    o Superego (über-Ich), geralmente inconsciente, corresponde à figura paterna introjetada e atua como instância moral, exigindo a realização de ideais.

3)     o Ego (Ich), em grande parte inconsciente, está diretamente ligado à percepção, à vontade consciente e ao controle motor.

 

A dinâmica entre essas instâncias, segundo Freud, deve-se ao Ego, que busca equilibrar as exigências do Superego com os impulsos do Id.

     As teorias de Platão e de Freud guardam apenas correspondências parciais. O Id freudiano corresponde, em grande medida, aos apetites corporais descritos por Platão, mas também abarca elementos volitivos, como a raiva, que o filósofo atribuiu ao elemento animoso da alma. O Superego, por sua vez, guarda certa semelhança com o próprio elemento inibitório em Platão, o bom cavalo da alegoria da biga alada. Já o Ego parece corresponder ao princípio racional platônico, ao condutor da carruagem, encarregado de equilibrar as demandas opostas do Id e do Superego. Freud (assim como Nietzsche) consideraria Platão um escapista que, inconscientemente, diminuía a importância da dimensão hedonista do psiquismo humano. Como ele declarou em uma entrevista, a vida do homem comum se resume a dois grandes motores: “sexo e dinheiro”. Freud considerava Marx uma pessoa psicologicamente ingênua e sua visão da natureza humana era tão sombria quanto a de um quadro de Hieronymus Bosch.

     Ao confrontarmos essas teorias, deparamo-nos com uma dificuldade semelhante àquela enfrentada ao comparar teorias filosóficas. A psicanálise freudiana, embora seja um trabalho de gênio, apresenta falhas evidentes e não satisfaz plenamente os critérios da investigação científica — sobretudo se esta exigir consenso entre especialistas quanto aos seus resultados. De fato, seus praticantes, por mais qualificados que fossem, jamais alcançaram tal acordo, o que contribuiu para a fragmentação da psicanálise em diversas escolas concorrentes, cada uma guiada por seus próprios “mentores intelectuais”. Ainda assim, enquanto a proposta de Platão se baseava essencialmente em sua experiência pessoal e em observações gerais sobre o comportamento humano, a teoria freudiana derivou suas conclusões de um método sistemático de associações livres, aplicado a inúmeros pacientes. Além disso, introduziu um elemento teórico particularmente importante — o inconsciente — que foi investigado de forma menos metafórica e muito mais detalhada. Sua teoria estrutural da mente, nesse contexto, busca oferecer uma compreensão mais abrangente — e parece, de fato, fazê-lo. Embora incerta e passível de questionamentos, ela propõe um quadro conceitual mais adequado para a avaliação, ao menos com base nas categorias da psicologia contemporânea.

     Seria possível identificar, ao longo deste percurso, uma evolução evidente? Infelizmente, não. Nem tudo o que Platão escreveu sobre a tripartição da alma foi assimilado pela psicanálise — e ainda menos pela teoria do cérebro triúno. Tome-se, por exemplo, a associação que Platão estabeleceu entre as três partes da alma e as quatro virtudes cardinais da Hélade: à parte racional corresponde a sabedoria; à parte volitiva, à coragem; e, à parte apetitiva, quando submetida ao controle da vontade, a temperança. Por fim, é da harmonia entre essas três dimensões da alma, integradas em um todo, que emerge a virtude da justiça. Nada disso pode ser encontrado em Freud.

     Quero concluir esta seção distinguindo entre boas e más antecipações. A maioria dos exemplos considerados pode ser vista como boas antecipações: as ideias de Anaximandro sobre a forma e a localização da Terra, a ideia de Empédocles sobre a seleção biológica… mostram, de modo obviamente muito rudimentar, a direção a ser seguida pela ciência. E a teoria platônica da tripartição da alma antecipa a estrutura de teorias científicas ou próximas à ciência.

     Contudo, há esforços especulativos que podem ser vistos como más antecipações, no sentido de terem apontado para caminhos equivocados. A teoria dos quatro elementos, proposta por Empédocles, foi um exemplo claro. Foram necessários mais de dois mil anos até que Robert Boyle, no século XVII, demonstrasse sua inconsistência. Outro caso notório foi, no século XVIII, a hipótese do flogisto, que postulava a existência de um elemento liberado pelo fogo e responsável por ele. Essa ideia era completamente equivocada e retardou o desenvolvimento da química por quase um século. O exemplo mais emblemático de má antecipação, contudo, foi o da física apriorista de Aristóteles.[24] Aceita pela Igreja como dogma, ela retardou significativamente o desenvolvimento da física experimental ao longo da Idade Média, até que os experimentos de Galileu a tornaram insustentável.

 

 

5.     FISSÃO

 

Antony Kenny, ao refletir sobre o modo como o pensamento filosófico dá lugar à ciência, observou que esse processo ocorre por meio de uma espécie de parturição, que ele denominou “fissão”[25]. Para ilustrar esse conceito, Kenny recorreu a um exemplo relacionado a um dos problemas centrais da filosofia do século XVII: a questão das ideias inatas.

     Inicialmente, o problema era formulado da seguinte maneira: quais de nossas ideias são inatas e quais são adquiridas? Após Kant, essa questão — originalmente confusa — dividiu-se em duas outras: de um lado, a investigação sobre os papéis da herança e do ambiente na formação de nossas ideias; de outro, a indagação sobre quanto de nosso conhecimento pode ser considerado realmente a priori. Segundo Kenny, a primeira questão foi transferida para o domínio da psicologia, enquanto a segunda, voltada à justificação do conhecimento, permaneceu no campo filosófico. Posteriormente, a questão remanescente sobre o conhecimento a priori sofreu uma nova divisão, gerando tanto problemas filosóficos quanto não filosóficos. Entre os desdobramentos, surgiu a distinção entre proposições analíticas e sintéticas. Para Kenny, a noção de analiticidade encontrou uma formulação precisa nos trabalhos de Frege e Russell, por meio da lógica matemática. Já a pergunta “A aritmética é analítica?” recebeu uma resposta matemática rigorosa no teorema da incompletude de Kurt Gödel. Apesar desses avanços, questões residuais sobre a natureza e a justificação da verdade matemática permaneceram em aberto, constituindo os últimos focos de disputa filosófica. O seguinte esquema resume essa versão do processo segundo Kenny:

 

                               problema filosófico das

                                       idéias inatas

 

                                             fissão

 

 


questão psicológica sobre o         problema filosófico de se saber o  

papel da  hereditariedade  e         quanto de nosso conhecimento  é

do meio ambiente na consti-        a priori

tuição de nossas idéias

 

                                                            fissão

 

 


                      questões lógico-matemá-      questões filosóficas  rema-

                      ticas sobre a definição e        nescentes sobre a natureza

                      extensão da aprioridade        e extensão do conhecimen-

                      em matemática                      to a priori em geral

 

Não importa se você está de pleno acordo com o exemplo. O que importa é que o modelo de desenvolvimento aqui sugerido faz sentido. Ele é aquele em que os amplos e confusos problemas filosóficos iniciais acabam por se dividir em partes. Umas se condensam em questões científicas, passíveis de respostas consensuais, enquanto outras permanecem filosóficas. E o mesmo processo tende a repetir-se com as questões filosóficas remanescentes, talvez até seu desaparecimento completo, se este for o caso.

     Quando consideramos o processo de fissão, o ponto mais importante a ressaltar é que a perda de parte da filosofia para a ciência produz mudanças que podem afetar toda a organização do campo remanescente da indagação filosófica. Como o exemplo ilustra, após a fissão, a parte do problema que permanece filosófica precisa ser reformulada, o que deve gerar novas conjecturas. Mas as mudanças não permanecem circunscritas. Outros problemas relacionados, que pertencem ao mesmo domínio de investigação filosófica, podem precisar ser acomodados ao novo cenário, junto às suas respostas especulativas. Esse ajuste ocorre por meio de uma reformulação mais ou menos profunda dos problemas e de suas respostas, bem como de uma relocação de suas posições, ou seja, de suas relações relativamente aos demais problemas e respostas no interior da filosofia.

      Esse último ponto pode ser elucidado por meio de um exemplo: a reformulação kantiana do problema filosófico remanescente das ideias inatas, expressa em sua doutrina sobre o conhecimento e os conceitos a priori,[26] acabou por produzir reformulações subsequentes de questões acerca dos conceitos de mundo, alma e Deus. Ao menos em sua filosofia teórica, Kant deixou de conceber esses conceitos como designando objetos reais, passando a tratá-los como ideias da razão: conceitos diretivos que poderíamos parafrasear como sendo do tipo “como se” (‘als ob’, na metáfora de Hans Vaihinger). Tais ideias, geradas pela própria estrutura da razão, são a priori, mas elas não têm por função representar objetos, e sim orientar nossos processos inferenciais “como se” tais objetos pudessem ser designados.

   Assim, devemos proceder intelectualmente como se o mundo externo fosse uma totalidade causal fechada, de maneira a continuar perseguindo nosso conhecimento das cadeias causais; devemos proceder como se houvesse um objeto permanente simples (a alma), de maneira a poder perseguir um entendimento unificado de nossos fenômenos psíquicos; e devemos proceder como se existisse um criador inteligente (Deus) de toda a natureza – externa e interna – a ser entendida como um sistema inteligível, de maneira a poder aprofundar nosso conhecimento da totalidade natural. Como consequência dessa reformulação dos conceitos de natureza, alma e Deus como ideias a priori diretivas, seguiu-se a relocação de suas funções no interior do sistema conceitual de sua filosofia. Nesse novo contexto, o conceito de Deus, por exemplo, já não precisava nem podia mais ser visto como sendo o de uma entidade existente, a realizar as mesmas funções que, digamos, o todo-poderoso Deus veraz tinha na filosofia “pré-crítica” de Descartes ou o papel que Kant fez ele voltar a ter em sua Crítica da razão prática como instância real justificadora da moralidade.[27]

 

 

6.     O NÚCLEO RESISTENTE DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS

RESIDUAIS: DUAS HIPÓTESES

 

Como resultado dos processos descritos, a filosofia tradicional tem se contraído em um conjunto resiliente de questionamentos. Esses questionamentos certamente incluem os das filosofias das ciências básicas, investigações de segunda ordem que tomam essas ciências como objetos. Como essas filosofias dependem do desenvolvimento dessas ciências, tendem a se desenvolver posteriormente a elas. Consequentemente, não é desarrazoado supor que, com o tempo, essas filosofias venham a alcançar um consenso como metaciência.

     Contudo, o centro de gravidade histórico dos questionamentos filosóficos, aquele cujo “status epistêmico” mais nos cabe investigar, reside nas disciplinas tradicionais mais centrais, importantes e difíceis da filosofia, a saber: a metafísica, a epistemologia e a ética. Esses domínios centrais têm, até o momento, resistido à conversão em ciência, sendo importante perceber a sua peculiaridade. Eles não se encontram no mesmo nível teórico das ciências básicas, tampouco das filosofias das ciências.

     O que mais chama a atenção em disciplinas como a metafísica e a epistemologia é sua extraordinária abrangência. No caso da metafísica, são abordados problemas últimos, como os de propriedades, substância, existência, número, causalidade, espaço e tempo, identidade, parte e todo… que dizem respeito ao mundo de modo mais geral, envolvendo muitos, senão todos os objetos da experiência, tanto externos quanto internos, atravessando, pois, os objetos de investigação de todas as ciências básicas. Afinal, os objetos da física, da química, da biologia, da psicologia, da sociologia, entre outros, também possuem propriedades, estão no espaço e no tempo, seguem leis causais, são ditos existentes, são enumeráveis, etc., o que torna esses itens objetos da metafísica.

     No caso da epistemologia, a abrangência também é notável, pois suas questões não dizem respeito a essa ou aquela forma específica de conhecimento, como ocorre com as filosofias das ciências, mas ao conhecimento em geral, incluindo o senso comum que chamo de modesto[28], por exemplo, meu conhecimento de que agora estou sentado e que é noite.

     Considerando a dificuldade e a relevância desses domínios de investigação, a questão sobre qual é a natureza da filosofia poderia, nesse ponto, ser substituída por outra não menos importante: qual é a natureza própria das disciplinas centrais da filosofia?

     A questão mais séria relativa à ideia de filosofia como antecipação da ciência não diz respeito ao fato indiscutível da ciência ter se estabelecido a partir da filosofia, mas à extensão dessa derivação. É possível que o conjunto remanescente de questionamentos filosóficos, ou ao menos parte dele, pertença essencialmente à filosofia, resistindo a sua transformação em ciência. Ou será que tudo o que é centralmente filosófico pode, em princípio, vir a se tornar ciência?

     Filósofos divergem acerca disso. Alguns, como Keith Lehrer, propuseram a hipótese progressista de que a filosofia é “apenas o nome coletivo do pote de problemas ainda intocado pela ciência”.[29] Para ele, o fato de que algumas questões filosóficas precisem aguardar mais de dois milênios para encontrar uma resposta científica não implica que essa resposta jamais seja encontrada.

     Outros, porém, mantêm-se mais reservados. Antony Kenny, por exemplo, defendeu, em seu livro sobre a filosofia da mente em Tomás de Aquino, uma hipótese conservadora: mesmo que a filosofia tenha, em seu passado, entregue à ciência partes de si mesma, essas partes não eram genuinamente filosóficas. Só os problemas filosóficos remanescentes e centrais são genuinamente filosóficos. Para Kenny, eles incluem a epistemologia, a metafísica, a ética e a teoria do significado. Esses problemas permanecerão filosóficos para sempre.[30]

     Tentando justificar essa afirmação, Kenny, influenciado pela ideia wittgensteiniana de representação panorâmica, sugeriu que a filosofia, diversamente das ciências particulares, trata de nosso conhecimento como um todo, objetivando organizar o que sabemos de maneira a nos prover-nos de uma sinopse, ou seja, de uma visão de nosso próprio conhecimento em sua totalidade. Essa finalidade confere à filosofia uma espécie de abrangência que não se encontra em nenhuma ciência particular. Essa abrangência, argumentou Kenny, é a razão pela qual a filosofia da mente em Aquino permanece de muitos modos relevante:

 

A filosofia é tão abrangente em seu objeto de investigação, tão ampla em seu campo de operação, que a elaboração de uma sinopse filosófica sistemática do conhecimento humano é tão difícil que só um gênio pode fazê-la. Tão vasta é a filosofia que somente uma mente completamente excepcional pode ver as consequências, mesmo dos mais simples argumentos e conclusões filosóficas.[31]

 

A abrangência exige aqui a figura do “gênio” filosófico, algo difícil de classificar e propício à mistificação. Trata-se, ao que parece, do uso reflexivo e continuado de um talento que une rigor lógico a uma sensibilidade quase artística, um talento mais relacionado à boa integração das faculdades do que a alguma habilidade isolada, dado que a filosofia não possui uma área específica. Para pessoas como Kenny e Wittgenstein, os resultados desse tipo de pensamento dependem sobretudo de um trabalho prolongado e ruminante, geralmente inconsciente, que é o de selecionar de forma crítica, entre muitas ideias ruins, aquelas poucas que são boas, em sua articulação com domínios mais amplos do saber. Trata-se de um processo longo, independente e geralmente inconsciente.

     Nietzsche explicou a assim chamada “inspiração” do gênio como resultado de um acúmulo inconsciente de ideias que, subitamente, encontram um meio de se se conectar, como se as comportas de uma represa intelectual fossem abertas.[32] Foi exatamente isso que aconteceu com Einstein em uma tarde de 1905, quando, em uma conversa com um amigo, ele percebeu que o tempo não precisaria ser tradado como “absoluto, fluindo uniformemente e independentemente de qualquer coisa externa”, como propunha Newton.[33]

    Obviamente, condições externas e internas minimamente propícias precisam estar presentes para que essas epifanias aconteçam. Me recordo de um comercial em que se via uma foto de Einstein com a pergunta: “O que ele tinha que nós não temos? Resposta: o programa!” E vale lembrar que com seu programa ele não fez mais nenhuma grande descoberta nos últimos quarenta anos de sua vida.

     No que se segue, irei argumentar a favor da primeira e mais progressista hipótese, embora não da maneira como você possa estar supondo.

 

 

7.     NOSSA IDÉIA GERAL DE CIÊNCIA

 

Meu argumento, sugerindo que talvez todas as questões filosóficas mais centrais, no final, sejam absorvidas pela ciência, não é de um tipo construtivo; não tentarei demonstrar esse ponto, nem creio que tal demonstração seja possível. Mas pretendo mostrar que a tese progressista, de que muitas problemáticas centrais da filosofia podem acabar sendo absorvidas pela ciência pode ser demonstrada plausível, na medida em que as razões aduzidas por filósofos pra rejeitá-la podem ser removidas.

     Há duas razões profundas pelas quais muitos filósofos vieram a rejeitar a ideia de que as áreas centrais da filosofia são antecipadoras da ciência.[34] A primeira é que, ao pensarem em ciência, eles têm em mente sobretudo as ciências experimentais da natureza já bem estabelecidas. Consideram, nesse contexto, não apenas as limitações metodológicas de ciências como a física, mas também seu caráter empírico mais direto. Aceitar a tese progressista sobre a natureza da filosofia parece comprometer-nos com uma concepção empobrecedora e redutiva do núcleo dos problemas filosóficos remanescentes, uma concepção que parece roubar da filosofia grande parte de sua abrangência e relevância, ao nivelar seus problemas com os das ciências naturais. Concordar com a hipótese progressista parece, então, deixar-nos sem nada, exceto alguma forma pedestre de cientificismo, intrinsecamente estreito e inimigo da abrangência e da abstração às quais mais pertence o genuíno filosofar.

     A outra razão para desconsiderar a hipótese progressista reside na adoção implícita de concepções da natureza da ciência que marcaram profundamente o século XX, como o positivismo lógico vienense e a sua influência cultural. Filósofos da ciência só foram capazes de construir teorias interessantes e detalhadas na medida em que tomavam como referência as ciências mais desenvolvidas. No entanto, como nem todos os domínios científicos se encontram em estágios avançados, e alguns sequer emergiram, tornou-se comum que esses filósofos elegessem as ciências naturais, especialmente a física, como modelos exemplares.

     Esse procedimento pode ser frutífero quando aplicado a essas ciências consolidadas, consideradas em si mesmas. Não obstante, quando os resultados são interpretados como representativos da ciência em geral, ou como produtores de um critério geral para a demarcação do que pertence à ciência, válido para todos os futuros candidatos, a consequência é uma concepção estreita e limitadora dos limites da ciência. Isso se evidencia até mesmo em domínios de uma ciência natural básica como a biologia, como o evidencia o critério popperiano de cientificidade, baseado na falseabilidade de nossas teorias através de experimentos decisivos. Esse critério pode se aplicar de forma razoável à física, sua ciência modelo, como no exemplo da medição da deflexão da luz das estrelas pela curvatura do espaço-tempo, observada em casos de eclipse solar, um experimento crucial para provar a teoria da relatividade geral – um exemplo sempre lembrado por Popper. No entanto, quando aplicado a outras áreas da ciência, esse mesmo critério se revela excessivamente exclusivo. Ele não se aplica a teorias psicológicas e socio-históricas. Ele exclui até mesmo a teoria biológica da evolução – uma teoria biológica cuja cientificidade ninguém hoje ousaria negar. Afinal, que tipo de experimento seria capaz de falsificar uma teoria que explica uma miríade de processos que se estenderam ao longo de milhões de anos no passado? E, mesmo que se consiga testá-la indiretamente, o insucesso em passar por um teste semelhante dificilmente seria interpretado como uma refutação decisiva.[35]

      Por razões como essas, penso que Popper estava certo quando afirmou que a sua metodologia não era descritiva do que as pessoas (incluindo os cientistas) reconhecem como pertencente à ciência, mas antes uma proposta: uma sugestão racionalmente fundamentada, embora, ao que tudo indica, demasiado estreita e artificial, sobre o tipo de investigação que merece ser chamada de ciência.[36]

     A consequência da adoção de semelhante modelo de cientificidade pelo filósofo é que ele já não pode mais admitir que a filosofia funcione como antecipação da ciência. Afinal, é evidente que os núcleos centrais da investigação filosófica, por sua própria natureza, jamais se tornarão capazes de acomodar as exigências impostas por modelos desta espécie.

     Contudo, penso que as duas razões recém-mencionadas para desmentir uma generalização da hipótese progressista, não se aplicam ao nosso caso. Pois ao sustentar que a filosofia desempenha uma função antecipadora da ciência, não somos obrigados a restringir o uso da palavra ‘ciência’ a algo semelhante às ciências particulares já estabelecidas. Tampouco somos compelidos a aceitar o que os herdeiros do positivismo lógico nos contaram sobre como a ciência deveria ser.

     Na verdade, o que mais naturalmente nos vem à mente quando contrastamos filosofia com ciência parece residir na oposição entre o pensamento conjectural – próprio da filosofia, no qual não há possibilidade de acordo sobre os resultados – e um empreendimento não-conjectural – característico da ciência, onde é possível alcançar acordo sobre a verdade ou falsidade dos resultados, permitindo assim o progresso. Ademais, a ideia da ciência como um empreendimento não-conjectural produtor da verdade concorda muito bem com o que nós – cientistas e pessoas cultas, naturalmente queremos dizer com a palavra ‘ciência’.

   De fato, ao julgar se uma teoria pertence ou não ao domínio da ciência, não perguntamos, em primeiro lugar, se ela pode ser submetida à confirmação ou à desconfirmação empírica (embora esse aspecto, como veremos, também tenha sua relevância). O que primeiramente perguntamos é se a comunidade científica é capaz, em princípio, de alcançar um acordo interpessoal sobre o que considera a verdade ou a falsidade de seus resultados, mesmo que tal acordo possa muitas vezes não resultar de alguma forma de verificação (ou resistência à falsificação) por testes empíricos. A possibilidade de obter resultados consensuais entre os cientistas é um critério mais geral e decisivo, em contraste com os métodos pelos quais tais acordos podem ser efetivamente alcançados.

     A ideia de que o empreendimento científico possa ser definido tendo como base a sua capacidade de gerar consenso me pareceu por demais plausível para ter passado despercebida. Afinal, ideias originais em filosofia geralmente ou são falsas ou já foram alguma vez pensadas. Assim, ao consultar a literatura, acabei por encontrar a defesa de um ponto de vista similar por parte de John Ziman, um físico e sociólogo da ciência. Já na década de 1960, Ziman destacou a centralidade dessa ideia ao sustentar que o princípio unificador da ciência, em todos os seus aspectos, repousa “no reconhecimento de que o conhecimento científico deve ser público e consensualizável”.[37] Como ele escreveu:

 

O objetivo da ciência não é apenas adquirir informação, nem enunciar postulados indiscutíveis; sua meta é alcançar um consenso de opinião racional que abranja o mais vasto campo possível...[38]

 

Essa ideia pode ser compreendida como o critério identificatório mais geral de ciência, qual seja, o conhecimento público consensualizável. Um tipo de conhecimento público que é, ao menos em princípio, passível de obter consenso quanto aos seus resultados entre os pares, o que não ocorre, de fato, com a pseudociência nem com a filosofia.

     Uma vantagem de se admitir tal critério seria que ele nos liberta do compromisso estrito com modelos específicos de cientificidade diretamente derivados de alguma ciência básica bem consolidada ou de qualquer ciência já existente. Ao adotar um conceito aberto da natureza da ciência como contraponto à conjectura filosófica, evitamos o risco de interpretá-la sob a ótica do cientificismo positivista.

     No que se segue, aprofundarei a concepção geral da ciência esboçada preliminarmente por Ziman. Diversamente de filósofos como Karl Popper, Imre Lakatos e outros, que se dedicaram ao problema da demarcação entre ciência e não-ciência, não apresentarei uma proposta normativa: minha abordagem será inteiramente descritivista. Pretendo resgatar a generalidade do sentido técnico, acadêmico e culto da palavra ‘ciência’, ao tornar explícitos os principais critérios pelos quais indivíduos cientificamente educados a reconhecem. Trata-se, portanto, de um procedimento paralelo ao adotado pelo descritivista em metafilosofia (cap. I).

     Com efeito, se o enfoque descritivista nos leva à ideia de que a filosofia é uma protociência no sentido de não ser capaz de gerar consenso, então, por questão de paridade, a “ciência” da qual a filosofia seria “proto-” deve ser igualmente tratada dentro de uma abordagem descritivista. Essa abordagem está em consonância com a premissa de que a filosofia, por oposição, constitui uma investigação incapaz, em princípio, de alcançar consenso autêntico quanto aos resultados no tempo em que são produzidos.

     De fato, não só os domínios centrais da filosofia, como a metafísica, a epistemologia e a ética, têm historicamente se mostrado muito aquém da possibilidade de alcançar consenso. Também áreas periféricas, como, digamos, a filosofia da medicina, da computação, do cinema e do esporte. Essas, aliás, são chamadas de filosóficas precisamente pela ausência de consenso entre suas facções.

    O que se deixa sugerir é que uma explicação descritivista da ciência constitui o modo mais coerente de imaginar o contraste entre filosofia e ciência sob uma abordagem metafilosófica que seja ela própria descritivista. Somente após termos explorado essa maneira de conceber a ciência com maior profundidade é que poderemos avaliar se a concepção da filosofia como antecipação da ciência possui algo de restritivo.

 

 

8. POR UMA CONCEPÇÃO NÃO-RESTRITIVA

DE CIÊNCIA

 

Meu objetivo aqui não será desenvolver uma caracterização descritivista completa da ciência, baseada na análise dos critérios de demarcação realmente usados pelos cientistas, mas sim tornar acessíveis seus fundamentos. A intenção é explicitar – no propósito de contrastar ciência e filosofia – uma concepção da natureza da ciência que podemos chamar de consensual-objetivista-progressivista. Segundo essa concepção, o princípio unificador de toda a ciência é que ela consiste em uma investigação avaliadora de verdades objetivas, possibilitando o progresso por meio da obtenção de acordos consensuais autênticos entre os membros da comunidade científica sobre os resultados dessas avaliações. Para explicar essa ideia em profundidade e explorar suas implicações, podemos identificar três condições de cientificidade, a saber:

 

(i)                PROGRESSIVIDADE,

(ii)             CONSENSUALIZABILIDADE, e

(iii)          OBJETIVIDADE,

 

de modo que, como veremos, a condição (i) pressupõe (ii), que pressupõe (iii). Essas condições são tão abrangentes que podem ser consideradas aplicáveis a todas as ciências, tanto empíricas quanto formais.

    Quanto à condição (i), de progressividade, ela estabelece que, em seu período de desenvolvimento, uma ciência deva se comportar como um empreendimento progressivo. Isso significa que suas teorias, uma vez propostas, devam se demonstrar capazes de ser refinadas ou substituídas por outras de maior poder explicativo, ou mesmo reforçadas por novas ideias e teorias que, de algum modo, incrementem o poder explicativo do conjunto. Ademais, essa condição implica que, no processo de sua constituição, uma ciência deve ser acumuladora de conhecimento, no sentido de permitir à comunidade de ideias reconhecer a verdade de um número crescente de proposições. Essa condição de progressividade pode ser enunciada como:

 

C1: A ciência é um empreendimento epistêmico capaz de revelar-se potencialmente progressivo e acumulador de conhecimento.

 

A condição aplica-se primordialmente à totalidade da ciência, concebida como um conjunto estruturado e interconectado de ciências particulares – teóricas ou aplicadas, empíricas (naturais e humanas) ou formais (lógicas e matemáticas) – as quais são formadas por subáreas e feixes de teorias mais ou menos inter-relacionadas.

     A condição (ii) é central. Trata-se da consensualizabilidade possível percebida por Ziman. É preciso notar que a condição C1 pressupõe a satisfação de C2. Esta, por sua vez, é prevalente e se aplica primariamente a teorias, a hipóteses e sistemas de hipóteses que aspiram à cientificidade por serem ao menos em princípio, susceptíveis de comprovação consensual. De modo derivado, essa condição também se aplica aos corpos individualizáveis de conhecimento científico. A condição de consensualizabilidade pode ser aqui enunciada da seguinte forma:

 

C2: A ciência é um empreendimento epistêmico por meio do qual, ao menos em princípio, é possível chegar a um acordo consensual legítimo sobre a verdade ou falsidade de suas teorias; um acordo a ser racionalmente alcançado pela comunidade crítica de ideias que as propõe.

 

Para um entendimento adequado da condição S2 é necessária uma análise apropriada do conceito de comunidade crítica de ideias que ela introduz. Esse conceito nos permite estabelecer quem está legitimamente intitulado a avaliar ideias supostamente científicas e de que modo essa avaliação é possível. Há razões para a introdução desse conceito, uma vez que a ciência é inevitavelmente um empreendimento corporativo e a pesquisa científica uma atividade social.

     Se há pessoas que não acreditam que a teoria da evolução natural tem recebido confirmação suficiente, isso não invalida a crença de que pode haver um consenso científico sobre a verdade dessa teoria, dado que esse consenso efetivamente existe. Da mesma forma, se um governo totalitário decide rotular de ciência alguma ideologia espúria, impondo um consenso obrigatório na comunidade científica (como ocorreu na União Soviética com a genética de Lysenko), não concluiremos disso que essa ideologia seja, de fato, científica. Tampouco acreditamos que uma comunidade de ideias que fundamenta suas verdades na autoridade de escrituras sagradas ou nas visões de adivinhos esteja operando como uma comunidade científica. Ainda que haja entre seus membros um acordo, este será considerado aleatório e não racionalmente fundamentado.

     O conceito de comunidade crítica de ideias é fundamental para justificar tais conclusões, pois, sem essa possibilidade, a condição de consensualizabilidade do empreendimento científico estaria inevitavelmente comprometida. A exigência de que o consenso seja estabelecido por uma comunidade crítica de ideias deve servir para assegurar a legitimidade ou autenticidade do consenso, uma vez que consensos espúrios também são possíveis fora do âmbito científico, por exemplo, entre astrólogos ávidos por aprovação. Tais condições foram aproximadas por sociólogos da ciência, como R. K. Merton, e, principalmente, pelo filósofo Jürgen Habermas. Quero antes considerá-las.

     Para Merton[39] a ciência não existe sem colaboração social. Por isso, ela deve atender a quatro princípios fundamentais que compõem seu ethos. A ciência deve ser: (1) universalista no sentido de ser apanágio de todos os que possam contribuir para o seu desenvolvimento: “raça, nacionalidade, religião, classe e qualidades pessoais são irrelevantes. Objetividade exclui qualquer forma de particularismo.”[40]  A ciência deve ser (2) comunista, no sentido de ser propriedade comum da sociedade, com seus resultados não devendo ficar restritos a indivíduos ou grupos. Ela deve ser (3) desinteressada no sentido de ser buscada por pessoas que queiram contribuir para o bem comum e não para ganhos pessoais, além de haver (4) ceticismo organizado no sentido de que todas as alegações científicas devem ser criticamente examinadas de maneira neutra, sob o preço de limitar o escopo da atividade científica. As condições, estabelecidas por Merton objetivavam somente inventariar o ethos social da ciência. Ainda assim, como veremos, não deixam de contribuir para justificar a legitimidade do consenso científico.

     Uma análise que visava explicitamente conferir legitimidade ao consenso foi a proposta por Jürgen Habermas em sua teoria consensual da verdade.[41] Sua sugestão foi a de que a decisão sobre o que conta como verdade deve repousar em uma discussão (Diskurs) conduzida sob o pressuposto de uma situação ideal de fala (ideale Sprachsituation). Eu adiciono aqui as condições de Habermas às condições anteriores, sem me importar com redundâncias:

 

(5) Acesso irrestrito ao discurso: Todos os participantes devem ter o direito de participar do diálogo. Ninguém pode ser excluído arbitrariamente.

(6) Igualdade de oportunidades de expressão: Todos devem ter a mesma chance de apresentar afirmações, fazer perguntas, levantar objeções e expressar necessidades ou desejos.

(7) Liberdade de expressão: os participantes devem poder se manifestar sem coerção externa, ou seja, sem receio de punições, manipulações, pressões sociais ou artifícios retóricos.

(8) Veracidade: os interlocutores devem ser sinceros em suas intenções, guiados por propósitos veritativos, isto é, por intenções que buscam a verdade. Mentiras ou manipulações comprometem a validade do discurso.

(9) Compreensibilidade: a linguagem utilizada deve ser clara e compreensível para todos os envolvidos.

(10) Justificabilidade racional: as afirmações feitas devem poder ser justificadas racionalmente, permanecendo sempre abertas à crítica.

 

 Em síntese, para ele o que deve prevalecer é a “força sem esforço do melhor argumento” e não o argumento de autoridade. Embora esse conjunto de condições possa não ser suficiente para garantir a verdade, ele é necessário: a verdade só pode resultar de um consenso obtido por meio de um discurso livre de coerções, no qual os participantes buscam o entendimento mútuo com base na força do melhor argumento, e não por imposição de poder.

     A teoria de Habermas não foi concebida para testar os requisitos da ciência, mas para avaliar a pretensão de verdade em geral. No entanto, ao nos restringirmos ao âmbito científico, podemos ainda invocar mais duas condições:

 

(11) de competência: todos os participantes devem ser igualmente bem treinados e informados sobre os temas que se propõem discutir.

(12) de transparência: todos os participantes devem ter o direito de receber toda a informação disponível.

 

O que chamei de comunidade crítica de ideias nada mais é do que uma sociedade de ideias que satisfaz todas essas 12 condições em grau suficiente. Digo “em grau suficiente” porque, quando considerarmos a prática concreta da ciência, observamos que ela sempre falha em satisfazê-las integralmente. Ainda assim, se essas condições não forem satisfeitas em grau suficiente, é certo que a ciência, enquanto empreendimento corporativo, se tornará profundamente falha, quando não impossível.

    Nossa questão é: seriam essas onze condições (todas elas bastante razoáveis), suficientes para garantir a legitimidade do consenso científico? Considere a pseudociência dialética praticada por Trofim Lysenko na Rússia de Stalin. Lysenko era um charlatão que rejeitava a genética clássica e defendia a aquisição da herança genética pelas plantas, além de métodos inúteis, como o de tratar as sementes com frio para forçar o crescimento. Stalin acreditava cegamente em Lysenko e seu governo perseguia quem ousasse discordar. Os resultados foram fracassos, sempre justificados por fatores estranhos à sua pseudociência.

     Nós diríamos que, na Rússia de Stalin, não existiam as condições para um consenso autêntico, pois estavam ausentes as condições (5) de acesso irrestrito ao discurso, (6) de igualdade de oportunidades de expressão, (7) de liberdade de expressão (principalmente) e (8) de veracidade, conforme propostas por Habermas. Também as condições mais gerais de Merton não foram, em parte, atendidas. Faltava a satisfação das condições (2) de universalismo, (3) de desinteresse e (4) de criticismo organizado. E mesmo a condição (11), de suficiente competência de parte dos participantes, não era, obviamente, satisfeita, como consequência da ausência de satisfação das demais condições.

      Algo muito semelhante ocorreu com a “física ariana” promovida pelo totalitarismo nazifascista, que rejeitava as contribuições de cientistas judeus como Einstein e Niels Bohr. Seus defensores buscavam substituir a “física judaica” pela “física ariana”, rejeitando a teoria da relatividade e a física quântica. Aqui faltou principalmente a satisfação da condição (1) de Merton, o universalismo, uma vez que excluía a colaboração dos cientistas da “raça” judaica.

     Que dizer, por comparação, de práticas como a leitura de cartas, de bolas de cristal, ou da astrologia? Também elas dificilmente satisfazem várias das condições acima. É praticamente impossível que satisfaçam a condição (4) de criticismo organizado e a condição (10) de abertura à crítica. Isso é fácil de demonstrar. Consideremos apenas a astrologia. Do ponto de vista da física, a astrologia é absurda. Carl Sagan notou que a força da gravidade da barriga do obstetra sobre o bebê no momento do parto é maior do que a da Lua nesse mesmo instante. No plano metodológico, Carl Popper destacou um artifício recorrente na astrologia: o recurso à vaguidade. Se as previsões forem suficientemente vagas, mesmo que pareçam falhar, tornam-se passíveis de reinterpretação pelo astrólogo, o que as torna irrefutáveis.[42]

     James Randi, o mágico profissional que se propôs a desmascarar as fraudes da pseudociência e que ofereceu o prêmio de um milhão de dólares a quem provasse a existência de forças ocultas paranormais e coisas do gênero, nunca conseguiu conceder o prêmio a nenhum dos candidatos. Segundo Randi, embora algumas pessoas fossem realmente charlatões, a maioria delas acreditava honestamente em seus poderes paranormais. Em um experimento conhecido, Randi apresentou a uma classe de alunos uma folha de papel para cada um, na qual, com base no dia e hora de seu nascimento, fazia previsões astrológicas. A grande maioria dos alunos considerou as previsões acertadas. Mas logo após, ele pediu que trocassem as folhas pelas dos colegas de trás e… surpresa! Todas as previsões eram as mesmas.[43] A experiência não só revela a inutilidade da astrologia, mas também a força da sugestão e do autoengano na mente humana.

     Parece, pois, que juntando as 12 condições até agora consideradas, tornamo-nos capazes de estabelecer uma distinção suficientemente sólida entre consenso legítimo e ilegítimo.

     Como já foi notado, é importante enfatizar que essas condições formam uma constelação ideal que nunca chega a ser completamente satisfeita por nenhuma comunidade científica. Contudo, elas precisam ser preenchidas ao menos em medida suficiente, dado que nenhuma comunidade científica pode alcançar confiabilidade sem que elas sejam minimamente satisfeitas.

     De fato, ao aceitarmos uma descoberta científica como verdadeira (por exemplo, um avanço na medicina), todos nós precisamos pressupor que tais critérios estão sendo suficientemente satisfeitos: que os cientistas são honestos, que não estão sendo pressionados a manipular dados, entre outros aspectos. Daí a importância da replicação experimental por parte de outros laboratórios. Foi o que ocorreu no caso da ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado com sucesso a partir de uma célula adulta. Inicialmente, outros laboratórios não conseguiam repetir o difícil experimento de clonagem. Foram necessários dois anos para que esse problema prático fosse inteiramente resolvido.

     Além disso, o cientista envolvido em pesquisa deve conduzir seu trabalho sob a constante suposição de que, em algum momento, seus resultados serão avaliados por uma comunidade crítica de ideias, capaz de aplicar critérios que assegurem sua legitimidade consensual. Essa suposição deve orientar uma avaliação pessoal contínua do que está sendo produzido, mesmo que tal avaliação não se concretize, como aconteceu com Gregor Mendel, ou talvez nunca se concretize, dado que o resultado de uma boa pesquisa pode se perder como uma flor que nasce no deserto e nunca chega a ser vista. Assim concebida, a condição C2 – de acordo consensual legítimo quanto aos resultados – torna-se a exigência central para que possamos aceitar uma teoria como pertencente ao domínio da ciência.

     O acordo sobre a verdade ou falsidade das teorias em uma comunidade crítica de ideias requer ainda uma terceira condição de cientificidade, que trará alguma alegria aos filósofos da ciência mais tradicionais. Como já notei, o acordo consensual sobre a verdade entre os membros de uma comunidade de ideias só é possível se houver um acordo prévio quanto às assunções relativas aos critérios e métodos de avaliação da verdade. Dessa forma, a possibilidade de satisfação da condição C2 pressupõe a satisfação de C3, uma exigência material que a comunidade crítica deve atender para ser considerada científica. Trata-se do que chamo de condição de objetividade, que pode ser formulada da seguinte maneira:

 

C3: A comunidade crítica de ideias responsável pela investigação científica deve se encontrar fundamentada em um acordo consensual prévio sobre o que conta como pressupostos fundamentadores e metodologias que servem à avaliação interpessoal das teorias nela desenvolvidas. O alcance de um consenso legítimo sobre esses pressupostos confere objetividade ao discurso científico.

 

O acordo sobre a verdade ou falsidade de teorias exige, portanto, um acordo prévio consensual acerca dos pressupostos fundamentadores que conferem objetividade ao discurso científico. Sem ambicionar um esclarecimento exaustivo e entendendo por domínio epistêmico o conjunto daquilo que pode ser tomado como objeto em uma área do conhecimento científico, proponho a seguinte lista de pressupostos que, conquanto se demonstrem aplicáveis, se tornam fundamentadores da objetividade científica em um domínio epistêmico qualquer:

 

(i)               Pressupostos sobre o que pode ser contado como dados elementares (empíricos ou formais), constitutivos do domínio epistêmico ao qual a teoria pertence (no caso dos “dados formais” penso em axiomas);

(ii)             Pressupostos sobre o que conta como procedimento de avaliação da verdade de uma teoria em seu domínio epistêmico, incluindo o poder explicativo e a capacidade de previsão (o que deve implicar algum tipo de correspondência com os fenômenos que a teoria se propõe a explicar, prova no caso formal).

(iii)          Pressupostos sobre o que pode ser reconhecido como questões adequadamente formuladas dentro desse domínio (a teoria deve responder a questões significativas, relevantes etc.);

(iv)           Pressupostos sobre o que pode ser aceito como uma teoria adequadamente construída no domínio epistêmico (tanto em sua consistência interna quanto em sua coerência com o sistema de crenças que o constitui);

 

Esses pressupostos devem ser concebidos como abrangendo um espectro de amplitude máxima.

     A admissão desses fundamentos de objetividade permite estabelecer uma ponte entre duas concepções de ciência: por um lado, a ciência como um conhecimento passível de consenso público legítimo, obtido por uma comunidade crítica de ideias; por outro, a concepção tradicional do método científico nas ciências empíricas, entendido como indutivo-dedutivo ou hipotético-dedutivo.

     Essa conexão se revela na coincidência entre as condições da aplicação desses métodos científicos e os pressupostos de objetividade nas ciências empíricas. Vejamos: o pressuposto (i) está associado à questão da generalidade, ao poder explicativo das teorias científicas; o pressuposto (ii), à justificação, à explicação, à capacidade de predição das teorias científicas; o pressuposto (iii), à questão da simplicidade e clareza das questões formuladas; o pressuposto (iv), à coerência e ao bom entrincheiramento das teorias.

     São tais associações inevitáveis? Poderia haver um acordo consensual legítimo, sem que condições de objetividade como essas estivessem sendo satisfeitas, digamos, pela comunidade supostamente crítica dos astrólogos, dos videntes de bolas de cristal e dos leitores de folhas de chá? Penso que não. É indispensável que os pressupostos fundamentadores constitutivos da condição de objetividade sejam satisfeitos para que uma comunidade crítica obtenha consensos legítimos. É necessário, por exemplo, que a teoria tenha capacidade de previsão (ou de prova) confirmada, o que está abrangido pela condição (ii).

     Mas dirá o cético: o que garante que tenha de ser assim? A resposta é que essa questão apenas parece ser problemática, pois o cético espera uma solução a priori – uma garantia lógica ou necessária – que, de fato, não existe. Trata-se aqui de uma questão empírica e experiencial. Sabemos, por experiência, que o consenso legítimo só é capaz de se formar quando as condições de objetividade são satisfeitas.

     A necessidade de admitir condições de objetividade e de que estas se demonstrem aplicáveis é uma verdade experiencial incontornável, que comunidades críticas de ideias têm sido forçadas a aprender para sua própria constituição. Os seres humanos simplesmente constataram, talvez a contragosto, que o consenso legítimo só pode ser alcançado quando tais condições são satisfeitas. O fato de a aceitação das condições de objetividade não decorrer de uma exigência a priori explica a tentação que sentimos de prescindir do esforço que ela demanda.  Uma definição de ciência que não reconheça essas condições experienciais de objetividade – que variarão de um domínio da ciência a outro, da astrofísica à história social – estará fadada ao dogmatismo.

     O que acabo de apresentar pode ser denominado uma definição progressivista-consensualista-objetivista do empreendimento científico em geral. Assim compreendidas, as condições de progressividade, consensualidade e objetividade constituem um critério descritivista suficientemente confiável para a distinção entre ciência (seja empírica ou mesmo formal) e não-ciência, bem como para o que não pode ser considerado científico, independentemente de sua natureza. Diante disso, passemos agora a examinar o que ocorre ao compararmos essa definição geral de ciência com nossa caracterização do empreendimento filosófico.

 

 

9.     POR QUE CONCEBER A FILOSOFIA COMO UM

EMPREENDIMENTO PROTOCIENTÍFICO?

 

 O ponto a ser destacado é que a concepção consensualista de ciência recém-exposta coloca esta última em contraste direto com a filosofia. Diversamente da ciência, a filosofia não é progressivista, nem consensualista, nem objetivista. Ainda assim, ambas compartilham uma característica comum: a existência de uma comunidade crítica de ideias, ainda que isso demande qualificações.

      Tanto em filosofia quanto em ciência, uma certa comunidade crítica de ideias deve ser pressuposta, mesmo que, por vezes, de modo contrafactual. Um filósofo como Nietzsche escreveu por dez anos em isolamento, tendo em mente, de modo contrafactual, uma futura comunidade de ideias capaz de avaliar o que ele escrevia.

     Uma das condições seria a de que os filósofos tenham competência para suas atividades (11). Como essa competência não é a mesma que a dos cientistas, algumas considerações precisam ser feitas acerca dela. Uma de suas condições pode ser a familiaridade com o desenvolvimento da ciência, ao menos em seus princípios, em sua relação com a área da filosofia investigada, na medida em que esta existe. Não se pode admitir filosofia que contrarie verdades científicas bem estabelecidas. Afora isso, a competência filosófica reside no domínio de uma tradição de discussão crítica. Esse domínio pode ser restrito: Hume, por exemplo, praticamente se encontrava restrito à tradição inglesa, na qual se inseria, pois sabia pouco da tradição grega. Wittgenstein conhecia apenas o que aprendeu ao lado de Russell e o que ouviu em Viena e em Cambridge, reagindo criticamente.[44] O ideal, porém, é que o domínio da tradição seja o mais amplo possível, ao menos no que importa ao domínio ou subdomínio considerado, como ocorreu com Aristóteles e Kant.[45] Desde Platão, fazer filosofia é alinhar-se, mesmo que criticamente, a uma tradição.

     Uma característica da comunidade crítica de ideias na filosofia acadêmica é que, mesmo não sendo capaz de acessar diretamente a verdade científica, é, pelo menos, capaz de identificar aquilo que a tradição tornou improvável ou claramente falso, pois, a longo prazo, a exclusão das ideias mais implausíveis é uma das poucas coisas de que a comunidade filosófica pode se vangloriar. Além disso, filósofos supostamente buscam a verdade e se dispõem (mesmo que aos resmungos) a submeter suas teorias filosóficas ao livre escrutínio crítico de outros pensadores igualmente ou mais competentes, de modo a tentar satisfazer um mínimo das condições de objetividade (a)-(d) constitutivas de uma comunidade crítica de ideias. Finalmente, espera-se que a comunidade filosófica satisfaça minimamente as 12 condições de legitimidade consensual listadas acima, mesmo que seja incapaz de alcançar consenso sobre coisa alguma.

     Como já se percebeu, a comunidade crítica de ideias pode, em ciência, e certamente também, em alguma medida, em filosofia, sofrer limitações, distorções e patologias. Um exemplo clássico em filosofia foi o da coação religiosa na filosofia medieval: a condição (7) de liberdade não era satisfeita em tudo o que, de algum modo, pudesse conflitar com os dogmas religiosos. Atualmente, a filosofia anglófona enfrenta certas limitações, como o escolasticismo, o cientificismo, o hermetismo, a fragmentação e a hiperespecialização. Aspectos denunciados por Susan Haack como sintomas de uma comunidade acadêmica disfuncional.

   O cientificismo pode se manifestar tanto como um formalismo excessivo[46] quanto como um empirismo objetivista excessivo.[47] Ele está intimamente ligado à fragmentação e à hiperespecialização em filosofia, pois, para mimetizar, filosoficamente, um domínio científico, precisamos hipostasiá-lo, excluindo tudo o que possa colocá-lo em questão. Em um mundo em que o conhecimento se avoluma muito além de nossa capacidade de assimilação, especializar-se torna-se uma matéria de sobrevivência intelectual – dividir para conquistar, e nisso, o reducionismo torna-se a palavra de ordem. Contudo, essa disfuncionalidade arrisca-se a turvar as condições de consenso legítimo de (1) a (12), mais apropriadas à prática filosófica.[48]

     Importa notar que, embora se trate de uma comunidade crítica de ideias limitada, fundada em uma tradição de conhecedores da matéria e das áreas adjacentes, as reflexões dos filósofos não têm sido capazes de satisfazer nenhuma das três condições de cientificidade aqui consideradas: faltam progresso linear, consenso e objetividade. Isso nos permite caracterizar a filosofia de modo puramente negativo, como um empreendimento veritativo realizado sob o suposto de uma comunidade crítica de ideias na qual tais condições não chegam a ser satisfeitas. As condições negativas incluem, primeiro:

 

       NC1: A filosofia falha em satisfazer a condição de progressividade C1,

                pois não é um empreendimento progressivo capaz de acumular

                conhecimento de maneira linear.

 

 

Timothy Williamson defendeu, com razão, uma visão incremental da filosofia, segundo a qual ela progride por meio do aumento do rigor argumentativo, do refinamento gradual e da acumulação de insights.[49] Isso é bastante óbvio. Mas há algo mais. Para além disso, são perceptíveis pequenos progressos substanciais, na medida em que ideias outrora consideradas plausíveis se tornam hoje pouco palatáveis ou arcaicas, o oposto podendo ocorrer com ideias que já foram vistas como desinteressantes ou implausíveis. O Timeu, obra teológico-especulativa escrita na velhice de Platão, foi a mais influente na Antiguidade e na Idade Média, por razões óbvias. Após a Renascença, porém, a República passou a ser redescoberta como o diálogo mais importante, devido à argumentação racional e dialética sobre as doutrinas centrais do sistema platônico.

     Outro exemplo diz respeito à chamada revolução copernicana de Kant. Ao formulá-la, ele acreditava que a geometria euclidiana e as leis da física newtoniana eram verdades absolutas. Com base nisso, acreditou que ao recorrer aos juízos sintéticos a priori que as constituíam, tornávamo-nos legisladores do universo – ou seja, a estrutura da realidade se conformava às condições de nossa intuição sensível e entendimento, como que por milagre divino. Menos de um século depois, essa visão começou a se desfazer. Novas geometrias, como a hiperbólica e a elíptica, foram desenvolvidas, desafiando a exclusividade da geometria euclidiana. Pior do que isso: em 1915, Einstein reformulou a ideia de gravitação com sua teoria da relatividade geral, demonstrando que, na proximidade de corpos massivos o espaço-tempo obedece a uma geometria riemanniana elíptica – e não à euclidiana. Nem as leis de Newton nem a geometria euclidiana eram capazes de dar conta do mundo real com suficiente precisão. Com isso, muito do ímpeto da revolução copernicana perdeu força: já não somos os legisladores do universo, mas intérpretes de uma realidade capaz de exceder as molduras naturais de nosso entendimento.

     Esse movimento de avanço, mais por estreitamento de possibilidades, não é de modo algum linear, como ocorre, por exemplo, na biologia. Ele tem sido quase imperceptível, composto por progressos e retrocessos parciais. Trata-se de um arrastado acúmulo de hipóteses – algumas pontualmente corretas – sem que saibamos ao certo quais estão de fato certas ou em que medida. Em geral, o melhor que a filosofia, enquanto filosofia, tem conseguido, tem sido afastar hipóteses demasiado implausíveis, uma vez que quando se torna objeto de certeza, ela deixa de ser filosofia. Como certa vez notou Bertrand Russell, filósofos são como os “Pais Peregrinos”, que iam sempre mais para o Oeste, fugindo da civilização, aqui entendida como a ciência, que, ao despontar, põe fim ao labor filosófico ao submeter a imaginação à razão. Diversamente do cientista, o filósofo busca preservar para si um espaço para o exercício livre da imaginação.

     Em filosofia, o que se acumula de positivo é um conteúdo hipotético no sentido de que nossas conjecturas filosóficas podem ser tornadas mais complexas, aumentando em número e mesmo em plausibilidade. Ela acumula um número cada vez maior de verdades possíveis, o que tende a tornar as malhas da rede de possibilidades especulativas em seus diferentes domínios sempre mais estreitas.

     O caráter acumulador de hipóteses, mas não necessariamente de conhecimento, comum à filosofia, é facilmente perceptível ao compararmos diferentes teorias filosóficas do passado. Considere, por exemplo, os sistemas de Kant e de Hegel. Kant foi um idealista transcendental e um realista empírico, com preocupações essencialmente epistemológicas sobre nossa estrutura cognitiva e seus limites. Hegel, por sua vez, foi um idealista absoluto, interessado numa filosofia do processo, centrada na evolução histórica da humanidade e das culturas morais, estéticas e religiosas. Cada sistema parece iluminar diferentes esferas especulativas; cada um deve conter alguma verdade, e, juntos, devem conter mais verdades do que isoladamente.

     O problema é que não estamos em posição de dizer com suficiente certeza onde essas verdades se encontram, em que medida, tampouco excluir dúvidas céticas sobre elas, e, menos ainda, comparar os sistemas de modo conclusivo. Se tentarmos comparar, por exemplo, a filosofia de Demócrito com a de Parmênides, ou a de Spinoza com a de Leibniz, encontrar-nos-emos próximos ao domínio da incomensurabilidade.

     As razões da incomensurabilidade são facilmente explicáveis: um primeiro filósofo parte do grupo de premissas (A) para chegar a (M) um outro filósofo inicia do grupo de premissas (B) para chegar a (N). Mas ninguém tem como comparar nem os valores de (A) e (B), nem os valores dos procedimentos para obter os resultados (M) e (N). Ao menos até o final do século XIX, essa descrição é perfeitamente apropriada.

     A filosofia se distingue da ciência por não ser capaz de satisfazer as condições C1, C2 e C3. A condição C1, de ser um empreendimento progressivo, não tem sido satisfeita pela filosofia porque ela não satisfaz a sua pré-condição, que é a de consensualidade. Daí que com relação a C2, para a filosofia vale:

 

      NC2:  A filosofia falha em satisfazer a condição de consensualidade

                C2, uma vez que nenhum acordo sobre a verdade ou falsidade

                de suas hipóteses pode ser alcançado dentro de sua comunidade

                crítica de ideias.

   

E isso acontece porque, de um modo ou de outro, a condição de objetividade não chega a ser minimamente satisfeita:

 

     NC3   A filosofia falha em satisfazer as condições de objetividade C3,

               posto que o filósofo não é capaz, diante da comunidade crítica

               de ideias,  de estabelecer pressupostos fundamentadores sobre

               os quais haja consenso.

 

Com efeito, o filósofo não é capaz de satisfazer os quatro pressupostos fundamentadores da objetividade. Ele não é capaz de:

 

(i)               alcançar aceitação geral quanto ao que pode ser contado como dados elementares nos domínios epistêmicos da filosofia;

(ii)             assegurar a outros filósofos que as suas questões não são basicamente enganosas ou meros pseudoproblemas;

(iii)          obter consenso sobre a adequação de suas teorias (coerência interna e externa);

(iv)           desenvolver procedimentos de avaliação da verdade, isto é, argumentos aceitáveis por todos os especialistas, que demonstrem que a sua teoria está em conformidade com o que ela pretende explicar, seja qual for a sua natureza.

 

Como em termos de satisfação, C1 depende de C2, C2 de C3 e C3 dos pressupostos (i)-(iv), fica claro que, em última instância, a filosofia não se configura como ciência, pois não é capaz de satisfazer, de forma suficiente, as condições de objetividade exigidas. No caso da antecipação das ciências, isso significa que a filosofia, em seu tempo, não foi intrinsecamente capaz de satisfazer às condições impostas pelos métodos científicos. Afinal, são as condições de progressividade, consensualidade e objetividade, que expandem o horizonte científico para muito além do que antes parecia possível.

    Concluímos, pois, que essas três condições — progressividade, consensualidade e objetividade — são as que correspondem exemplarmente aos critérios que empregamos intuitivamente ao distinguir o que pertence ao domínio da ciência daquilo que permanece restrito ao campo da filosofia. O primeiro as satisfaz; o segundo não.

 

 

     10. ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DO QUE FOI PROPOSTO

 

Ao tratarmos a filosofia como um empreendimento antecipador da ciência, a adoção da concepção geral da ciência recém-exposta conduz a alguns desdobramentos interessantes.

     Primeiramente, como os critérios propostos para definir o que pode ser considerado ciência deixam em aberto os modos concretos pelos quais uma investigação pode vir a ser considerada científica, a identidade mesma da investigação que haverá de nascer da atividade filosófica permanece em aberto. Em outras palavras, os critérios sugeridos não antecipam o perfil específico de nenhum campo científico ainda por surgir. E, mais importante, não exigem que as futuras ciências – aquelas destinadas a ocupar o espaço hoje dominado pela filosofia – guardem qualquer semelhança com as ciências já bem estabelecidas. Isso, por si só, já impõe uma barreira às maiores aspirações do reducionismo cientificista.

     Podem terminar caindo sob essa concepção ampliada de ciência, mesmo teorias especulativas de grande alcance – como a lei dos três estágios de Comte, a tese de Max Weber sobre o desencantamento do mundo e suas consequências, a metapsicanálise freudiana, a tese da dessublimação repressiva de Herbert Marcuse... Para isso, bastaria que fossem reforçadas e até mesmo corrigidas por outras descobertas, constitutivas de um pano de fundo de informações e métodos que as tornassem capazes de alcançar acordo consensual em uma comunidade crítica de ideias.

     É nesse ponto que vale considerar o conceito de consiliência (com = juntos, siliens = salto: “salto conjunto”). Esse conceito foi criado por William Whewell em 1840 para indicar a convergência de induções provenientes de diversas classes de fatos. Esse conceito foi revivido no século XX por E. O. Wilson, que o entendeu como a síntese dos fatos e das teorias de diferentes disciplinas, visando à formação de um entendimento unificado da realidade[50]. Em seu livro, Wilson mostra como diferentes domínios da ciência, natural e humana, se encontram conectados de modo a se reforçarem mutuamente. Finalmente, o conceito de consiliência foi aplicado à filosofia por Susan Haack. De acordo com ela:

 

O que eu quero dizer é que existe um mundo real, um “universo pluralista”, para tomar de empréstimo a frase de James, e que todas as verdades sobre esse mundo complexo e variado, de algum modo, se combinam.[51]

 

O pressuposto da unidade da realidade funciona aqui como um ideal normativo: se admitimos que a realidade é unificada, então as teorias científicas devem ser capazes de se complementar e reforçar mutuamente em sua relação com a verdade. Um exemplo mais proeminente, dentre muitos outros, é o da genética molecular. Ela corrobora os achados da genética mendeliana, que, por sua vez, corroboram e são corroborados pela teoria da evolução natural, a qual, por sua vez, é corroborada por dados paleontológicos e geológicos.

     A inovação de Haack consistiu em aplicar a ideia de consiliência às teorias filosóficas. Se diferentes subáreas da filosofia possuem elementos de verdade e se interligam, então, pelo princípio da consiliência, esses elementos devem se reforçar mutuamente. Aplicando a ideia de consiliência à suposição de que a filosofia é protociência, isso significa que ideias pertencentes a áreas de conhecimento complementares a um certo domínio da filosofia, sejam elas filosóficas ou não, devem ser capazes de reforçar as ideias verdadeiras pertencentes a esse mesmo domínio e, por contraste, enfraquecer as ideias falsas.

     Essa assunção nos leva a uma conclusão provocadora: a sobreposição de verdades vindas de múltiplas direções é capaz de apertar os nós da teia do conhecimento, de modo a aproximar gradualmente resultados inter-relacionados da especulação filosófica de um consenso legítimo sobre sua verdade, ou seja, da ciência, entendida aqui como saber consensualizável e objetivo. Se aceitarmos essa ideia, então muito do pensamento filosófico, especulativo ou não, pode, em princípio, tornar-se científico, na medida em que puder ser reconstruído, depurado e desenvolvido de modo a permitir um acordo consensual legítimo realizável sobre o que nele com razão se pretende verdadeiro, sem ter de ser para isso fragmentado ou forçadamente reduzido ao que ele não é.

     Mesmo uma concepção filosófica da natureza da filosofia, como a que está sendo desenvolvida no presente livro, poderia deixar de ser meramente filosófica para se tornar científica caso, ao ser aplicada a si mesma, se revele capaz de alcançar consenso legítimo quanto aos seus resultados. Suponha-se, por exemplo, que a concepção de filosofia como, em grande parte, uma protociência antecipadora da ciência, em conformidade com a concepção progressivista-consensualista-objetivista aqui esboçada, resista às críticas e possa ser desenvolvida de forma mais adequada e completa. Suponha, ainda, que, no futuro, essa concepção venha a ser confirmada pela emergência de novos campos científicos que substituam gradualmente nossas atuais conjecturas. Uma consequência disso será que uma comunidade crítica de ideias acabará por aceitar a verdade da ideia de que (i) a característica mais geral da filosofia é a de não ser passível de obter consenso legítimo e objetivo quanto aos seus resultados; e (ii) ao menos em seus centros de gravidade mais tradicionais, ela se configura como uma protociência no sentido de ser capaz de se transformar em um campo susceptível de acordos consensuais autênticos, tornando-se, assim, cientificamente inobjetável. A ideia de que a filosofia é protociência terá, nesse caso, satisfeito a condição geral de cientificidade que ela própria estabeleceu.

     Como já foi notado, uma consequência relevante de nossa concepção de ciência, no que tange à filosofia, é que ela justifica alternativas a peripécias cientificistas regressivas. Em muitos casos não precisamos eliminar a abrangência de nossas visões filosóficas ao admiti-las como substituíveis por uma diversidade de teorias científicas. Algo diverso disso também pode ser esperado. Ao refletir sobre a interdependência dos problemas filosóficos mais centrais da filosofia (como os da metafísica, da epistemologia, da filosofia da mente, da teoria da ação, da ética...) recordo a observação de um filósofo, possivelmente Wittgenstein, segundo o qual a dificuldade da filosofia reside no fato de que seus problemas são tão interligados que um problema só poderá ser inteiramente resolvido quando todos os outros também o forem. Embora essa observação seja exagerada, ela revela uma maneira pela qual nossos problemas filosóficos centrais podem dar lugar à ciência: não por meio da construção de teorias diretamente demonstráveis pelos fatos empíricos que pretendem explicar, mas por meio da consiliência, ou seja, por meio do suporte que teorias são capazes de oferecer umas às outras, pela sua cooperação explicativa, pelo melhor entrincheiramento do que elas possuem de verdadeiro e, finalmente, por sua concordância, por mais indireta que seja, com os fatos.

     Há, finalmente, algumas conclusões a extrair da constatação de que, em muito da investigação filosófica, o suporte interteorético advindo da consiliência é capaz de prevalecer como meio de avaliação da verdade.

     A primeira conclusão é que há poucas razões para abandonar a crença otimista de que, mesmo em domínios aparentemente refratários da tradição filosófica, cedo ou tarde seremos capazes de encontrar um caminho para um acordo consensual legítimo, mesmo que seja por meio de completas reconstruções, transformações e rejeições, ou ainda por desfazer problemas por meio de uma crítica (“terapia”) da linguagem. A existência de apenas cinco ciências básicas parece reforçar essa expectativa. Por outro lado, há casos como as filosofias do processo – entre elas, a filosofia política – cuja verdade, dependendo de uma história humana imprevisível, contraria a possibilidade de alcançar um estágio de consenso generalizado.

     A segunda conclusão é que, à luz do princípio da consiliência, não há razão para se esperar que os problemas centrais da filosofia se dispersem em uma multidão de mini-teorias sem qualquer expectativa de consenso. Ao contrário, espera-se que eles sejam respondidos por teorias mais ou menos abrangentes e interconectadas entre si através da consiliência. Nesse cenário, apenas a forma conjectural dos problemas tenderá a desaparecer e não tanto a sua abrangência.

     Uma terceira conclusão, indicada pela interdependência reforçadora da pretensão de verdade das teorias, é que não podemos desqualificar tentativas filosóficas em áreas como epistemologia, metafísica e ética, apenas por analogia com o que aconteceu com muitas conjecturas filosóficas antecipadoras de ciências como a física, a química ou a biologia, as quais se mostraram simplesmente demasiado rudimentares ou errôneas, conservando apenas um valor histórico residual.

     Nas ciências naturais, a começar pela física, ocorreram rupturas epistêmicas profundas, separando a emergência desses corpos científicos da indagação filosófica pré-científica que a antecedeu, geralmente falsa e não consensualizável. Consideremos, por exemplo, o que está acontecendo com o conceito aristotélico de substância material, que é constituída de matéria e de um princípio definidor que ele chama de forma. Essa chave explicativa foi explorada de forma eficaz na investigação hilomorfista da construção de objetos materiais por Kathrin Koslicki[52], com base em uma discussão implicitamente dependente da consiliência, o que a aproxima da verdade. Isso indica ser plausível supor que a transição dos domínios centrais da filosofia para a ciência ocorra de forma mais gradual, uma vez que envolve aperfeiçoamentos e correções de ideias inter-relacionadas, sem o salto abrupto para o inteiramente novo.

     Isso implica que a especulação filosófica em seus domínios centrais, como, digamos, a teoria da substância em Aristóteles, sua ética, o cogito cartesiano, a teoria relacional do espaço em Leibniz, a teoria das qualidades primárias e secundárias em Locke, a teoria dos conceitos em Kant… pode, como sempre se suspeitou, permanecer ainda de grande relevância para os tempos atuais.

     Ainda que não saibamos exatamente como avaliar tais verdades, é plausível que elas se acumulem ao longo do tempo, até que consensos suficientemente robustos permitam corrigir erros, excluir confusões e promover, de forma mais urbana e discreta, aprimoramentos convincentes. Reconhecer esse fenômeno é importante para compreender o valor das disciplinas filosóficas fundamentais em sua dimensão histórica, frequentemente negligenciadas pelo cientificismo positivista.

 

 

     11. FILOSOFIA ANALÍTICA: DA DECADÊNCIA AO DESASTRE

 

Diversos autores têm apontado para o declínio da filosofia analítica anglófona, uma vertente que conquistou o mundo nas últimas quatro décadas, suplantando as filosofias continentais, alemã e francesa.[53] Os sintomas desse declínio podem ser descritos como escolasticismo,[54] cientificismo,[55] hermetismo,[56] fragmentação,[57] hiperespecialização[58] e superficialização.[59]

     A pecha de escolasticismo é a estagnação. Pressupostos teóricos provenientes do passado são aceitos dogmaticamente, enquanto os debates se concentram em distinções abstratas e técnicas, voltadas à criação de complexidades artificiais que nunca ousam desafiar a assim-chamada “sabedoria herdada”. Faltam inovações disruptivas. O último filósofo ainda vivo de que me lembro ter produzido inovações disruptivas é Jürgen Habermas.

     Mas o escolasticismo é um efeito, não a causa. A raiz do problema está no cientificismo. Vivemos em uma sociedade em que a ciência e, ainda mais, a técnica ocupam um espaço cada vez maior. As pessoas creem na ciência como os antigos criam nos deuses. O problema surge quando a mentalidade cientificista transborda para a filosofia. Embora a filosofia possa – e deva – valer-se dos avanços científicos, ela não pode ser absorvida pela ciência atual sem se desfigurar, precisamente pela alteridade de seu potencial científico. Wittgenstein, ainda na década de 1930, após conviver com os positivistas lógicos (físicos, lógicos, economistas...), que buscavam transformar a filosofia diretamente em ciência, tal como a conheciam, resumiu sua crítica ao cientismo nas seguintes palavras:

 

Filósofos constantemente veem o método da ciência diante de seus olhos e são irresistivelmente tentados a fazer e responder questões do mesmo modo que a ciência faz. Essa tendência é a fonte real da metafísica.[60]

 

A tentativa de valorizar a filosofia, fundamentando suas ideias por meio de recursos emprestados de novos domínios técnico-científicos, sejam eles formais ou empíricos, revela uma postura tipicamente reducionista. Nesse processo, a filosofia resultante tende a excluir tudo o que lhe é incompatível, como se não tivesse relevância. Essa insularidade, esse “por entre parênteses”, que abstrai a verdade do contraditório, permite à teoria cientificista tornar-se autônoma, autorreferente em suas avaliações, desvinculada de sua relação com o restante do saber e, dessa maneira, com o próprio saber.

    Como já notei (cap. I), o reducionismo pode ser produtivo, como o foi, por exemplo, no pensamento de Kripke. Mas há limites: uma vez feita a exclusão, torna-se muito fácil prosseguir, subdividindo o domínio teórico em novas subespecialidades cuja plausibilidade só pode ser questionada externamente – isto é, a partir do que já foi excluído. Abre-se, assim, um terreno fértil para a fragmentação. Sem consiliência, cada campo teórico cientificista-reducionista passa a evoluir isoladamente, sem diálogo com os outros na medida em que não se deixam mais suportar uns aos outros sob o suposto da consiliência.

     O resultado é a hiperespecialização: o desenvolvimento de subteorias cada vez mais distantes de qualquer resultado plausível, que se tornam contraproducentes por serem construções sem relevância e incapazes de nos conduzir a algum lugar. Como Susan Haack resumiu:

 

A hiperespecialização impede o progresso em vez de possibilitá-lo, pois significa que tempo e energia são inevitavelmente desperdiçados em um nicho de problemas que não irão sobreviver às teorias de meia-boca que lhes deram origem.[61]

 

Para explicar como a hiperespecialização filosófica se desenvolve, Haack cunhou a expressão “especialização prematura” para designar a forma mais prejudicial de cientificismo fragmentador do campo do conhecimento. Como ela notou, a especialização é bem-vinda nas ciências, cujos fundamentos sólidos permitem avanços cumulativos. Já na filosofia, a especialização prematura ocorre porque seus fundamentos, embora dogmaticamente aceitos por seus praticantes, carecem de solidez. O resultado é que as “hipóteses curiosas” que esses filósofos inventam não conduzem a lugar algum, além de ocupar seus adeptos por um bom número de anos, os quais ela ironicamente descreve como cliques autopromotoras (“panelinhas, nichos, cartéis e feudos”), cartéis de citação entre pares e produtores de literatura de nicho, só acessíveis aos seus cúmplices... Ao final, escreveu ela, o tédio se instala e a “hipótese curiosa” é substituída por uma nova conjectura igualmente estéril,[62] sem que qualquer problema fique resolvido.

     Pior ainda é quando essas mini-teorias persistem, subdividem-se por fissão e se multiplicam indefinidamente, gerando uma proliferação de mini-mini-teorias. Um exemplo emblemático é a teoria metalinguística da referência de nomes próprios na filosofia da linguagem. Segundo essa proposta, formulada há décadas, um nome próprio se refere por meio de uma descrição do tipo “o portador de N”, sendo N o próprio nome. Trata-se de uma ideia claramente insuficiente, pois não distingue um nome próprio dos demais: todos são feitos para designar um possível portador. Tudo o que alguém aprende ao ouvir que o portador do nome ‘Aristóteles’ é aquele a quem o nome ‘Aristóteles’ se refere é que o nome serve para designar um particular. Mas isso não esclarece em nada como usamos esse nome para se referir a Aristóteles.

     Apesar disso, proliferam ainda hoje dezenas de variações teóricas derivadas desse palpite inicial – implausível e reducionista – sustentando uma discussão especializada que só não soa fútil aos especialistas que nela investiram anos de dedicação. Fenômenos semelhantes podem ser encontrados no interior de outros domínios da filosofia, como a metafísica, a epistemologia e a filosofia da mente, entre outros.

     O problema com esses procedimentos é que eles não são tão inócuos quanto parecem, posto que eles além de não serem mais do que exercícios intelectuais que permitem a filósofos acadêmicos discutir, escrever e publicar, muito facilmente bloqueiam o surgimento de inovações disruptivas capazes de reconfigurar todo o campo de investigação ao refazer os fundamentos, uma vez que tais inovações seriam destrutivas para toda uma indústria de questiúnculas filosóficas.[63]

     Antes de prosseguir, preciso fazer um pequeno aparte para lembrar que estou me restringindo à discussão de inovações disruptivas. Inovações não-disruptivas costumam ser bem acolhidas, pois são facilmente avaliáveis e não ameaçam o trabalho dos especialistas nem a hierarquia intelectual. Por isso, ainda é possível encontrar excelentes estudos históricos e investigações pontuais que constam, por exemplo, na Stanford Encyclopedia of Philosophy.

     Voltando ao que estava dizendo, embora se possa admitir que esses procedimentos sirvam para “sustentar a conversação” (“keep the conversation going”, no dizer de Richard Rorty), possuindo ao menos um valor motivacional, na prática eles têm funcionado cada vez mais como obstáculos, e não como estímulos, à produção de desenvolvimentos internos verdadeiramente disruptivos, os únicos realmente indispensáveis.

    Tenho uma experiência pessoal que ilustra bem esse ponto. Refiro-me ao meu livro How do Proper Names Really Work?, um trabalho que considero inevitavelmente disruptivo, publicado em 2023. Trata-se do resultado final de uma investigação que começou por volta de 2007 e da qual resultaram várias outras publicações.[64] Creio ser ele um exemplo concreto de como toda uma crescente plêiade de hipóteses e teorias resultantes de especialização precoce em teoria da referência pode ser desmantelada por meio de uma cuidadosa reconfiguração dos fundamentos teóricos tidos pela mainstream como intocáveis, incluindo, aí, o legado de figuras sacralizadas como Saul Kripke. Curiosamente, a teoria complexa que emergiu dessa investigação nada tem a ver com a forma fragmentária, por vezes altamente formal e abstrata, à qual estamos habituados. Tampouco se encaixa em moldes conhecidos, aproximando-se, porém, da ciência, não por mimetismo metodológico cientificista, mas pela densidade explicativa, pela coerência interna e pela ausência de artifícios reducionistas.

     É impossível explicar essa teoria aqui em qualquer detalhe, mas posso dar uma vaga ideia. Ela se fundamenta em esquemas de regras para a identificação de nomes próprios, que substituem os antigos feixes de descrição e mostram-se extremamente flexíveis na sua aplicação. Quando devidamente associados a nomes próprios, esses esquemas são preenchidos por descrições definidas que os transformam em designadores rígidos, o que acaba por dissolver o contraste, fundamental para Kripke, entre nomes próprios como designadores rígidos (que se referem ao mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual ele exista, como ‘Aristóteles’) e descrições definidas como designadores acidentais ou flácidos (que se referem a diferentes objetos em diferentes mundos possíveis, como ‘o marido de Pithias’[65]). Por exemplo: o nome ‘Aristóteles’ (ou equivalente) passa a ser resumido pela seguinte descrição definida complexa que serve como expressão de sua regra de identificação:

 

a pessoa que satisfaz (i) suficientemente e (ii) mais do que qualquer outro candidato, (iii) a sua condição localizadora de ter nascido em Stagira em 384 a.C., filho do médico da corte, viajado para Atenas aos 17 anos, tendo estudado junto a Platão pelos próximos 20 anos, etc. e/ou sua condição caracterizadora de ter escrito o opus aristotélico, etc.”

 

Essa regra-descrição (aqui muito resumida) é suficientemente flexível para identificar Aristóteles em qualquer mundo possível em que ele possa ser definidamente dado como existente, o que torna o nome ‘Aristóteles’ um designador rígido. Já as descrições definidas são designadores acidentais apenas enquanto associadas à regra de identificação do nome próprio. Isso explica por que descrições definidas que não podem ser associadas a nenhum nome próprio tornam-se designadores rígidos. Por exemplo: “A raflésia descoberta pelo Dr. Joseph Arnold em 20 de maio de 1818” é uma descrição definida que não se associa a nenhum nome próprio, aplicando-se, por isso, à mesma flor em qualquer mundo possível no qual ela exista, o que torna essa descrição rígida.

     Outras descrições, como ‘o tutor de Aristóteles’ e ‘o fundador do Liceu’, são meramente auxiliares – em geral úteis apenas para que os falantes, que em geral não sabem o suficiente sobre Aristóteles, consigam inserir corretamente o nome no discurso e, nesse sentido estendido, “referir-se” a ele.

     O que distingue essa teoria em termos de cientificidade é sua operacionalidade: se a regra de identificação de um nome próprio for implementada como programa em um computador, juntamente com os dados relativos às condições de aplicação por ela possivelmente requeridas, posso apostar que o sistema será capaz de reconhecer o portador do nome. Isso seria impraticável para as teorias anteriores, dependentes de fundamentos ainda precários, oriundos de um dos dois campos opostos, liderados, respectivamente, por John Searle (internalismo descritivista, com viés empirista) e Saul Kripke (externalismo causal-histórico, com viés formalista).

     Por fim, a diferença em relação às teorias de orientação formal, como a de Kripke e a minha, pode ser comparada àquela que existe entre o computador digital, que opera com elementos discretos, e o computador analógico, que trabalha com quantidades contínuas. Nosso cérebro é um computador analógico – e assim também deve ser uma teoria da referência, introduzindo elementos de indeterminação inevitáveis ao ato referencial.

     Uma curiosidade: até onde sei, o livro de 2023 não recebeu qualquer atenção dos especialistas na área, que são quase todos externalistas. Suponho que por não ter vindo de cima para baixo em uma hierarquia que, há muito, se tornou infértil... O editor da De Gruyter, Christopher Schields, me escreveu que a Notre Dame Philosophical Review (o mais influente jornal de reviews que existe), norte-americana, praticamente não faz reviews da alemã De Gruyter. Reclamei por carta ao editor do jornal, enviando-lhe o original. Ele se desculpou, me prometeu enviar o livro à comissão editorial... Naturalmente, fiquei a ver navios... sentindo-me como o personagem de Kafka em “O Castelo”, o que não me acontece raramente. Corporativismo? Manutenção do status quo da mainstream anglo-americana formalista com injunções políticas? O fato é que as comunidades filosóficas são exclusivistas. Fico pensando no efeito cultural repressivo da originalidade em países culturalmente colonizados como o Brasil, que só fazem importar o que vem de fora. Mas isso não importa. O fato é que com isso a sociedade crítica de ideias filosóficas anglófona, como outras, não satisfaz certas condições de legitimidade consensual para além de suas fronteiras. Afora isso, o caso exemplifica, indiretamente, um efeito do que Haack denunciou. A filosofia fragmentária, feita de palpites teóricos que se acumulam e se multiplicam em discussões cada vez mais escolásticas, acaba por se tornar uma barreira à avaliação e aceitação de teorias filosóficas robustas e realmente mais próximas da ciência.

     Contra a conclusão de que a filosofia analítica se encontra em estado de estagnação, um estudante me objetou que há novidades, como a lógica do grounding, o knowledge-first e o enativismo, que seriam, afinal, aquisições significativas! Trata-se, porém, de mais uma ilusão que nos faz recordar o dizer de Wittgenstein de que uma época pequena tende a enxergar o mundo a partir de sua própria, minúscula perspectiva. Mas vejamos…

     É verdade que a lógica do grounding oferece instrumentos mais precisos para a compreensão de uma ideia já presente em Aristóteles. Embora relevante para a lógica, sua aplicação filosófica está longe de ser disruptiva.

    O Knowledge-First remonta ao livro de Williamson sobre conhecimento[66], cuja tese fundamental é que o conhecimento não é analisável. Trata-se, em meu juízo, de uma confusão elefantina. Não se pode negar que Williamson é sofisticado; ou reinventa lugares comuns (como no caso de seu argumento da antiluminosidade) ou se apoia em confusões já bem estabelecidas, que turvam a verdadeira noção de conhecimento.

     Uma delas é o externalismo epistêmico, que, se bem considerado, acaba por nos conduzir de volta a alguma forma mais refinada de internalismo. Considere, por exemplo, o confiabilismo, a interessante ideia de que o conhecimento é o resultado de processos cognitivos que se mostraram confiáveis. Ele permite a uma terceira pessoa B saber que A sabe que p por ter seguido um caminho cognitivo confiável, do qual A esqueceu ou mesmo nunca chegou a adquirir consciência. Mas B sabe que A sabe que p porque B conhece esse caminho confiável que lhe serve de justificação interna para saber que A sabe que p. Mais além, A não pode saber que p, a menos que tenha tido acesso, mesmo que inconsciente, ao caminho confiável, que, como tal, lhe serve também como justificação em última análise interna.

     Considere, para exemplificar, o caso dos sexadores de pintos: pessoas que sabem o sexo dos pintos recém-nascidos apenas por manipulá-los. Muitos deles sequer sabem por que acertam o sexo dos pintos, mas o procedimento se demonstrou confiável em quase 100% dos casos. Temos aqui mais um exemplo de procedimento que se justifica externamente por ser confiável. Mas, bem considerados, os sexadores de pintos possuem uma boa justificação para dizerem que sabem o sexo provável do pinto. Ela é simples: o procedimento sempre se demonstrou confiável. Mas essa justificação é, obviamente, interna, mesmo que derivada da experiência de uma regularidade externa.

     Do fato de que as raízes do conhecimento são externas, não se segue que o conhecimento, enquanto tal, deva possuir qualquer componente externo, não mental. Essa é uma falácia genética que vale ainda mais para o externalismo semântico.[67] A outra falácia é o célebre e, em meu juízo, já bem respondido argumento de Gettier.

     Quanto ao argumento de Gettier, ele parece refutar a tradicional definição tripartite de conhecimento como crença verdadeira justificada ao apresentar casos nos quais justificações razoáveis não tornam a crença verdadeira. A resposta não é difícil. Basta uma leitura atenta do primeiro capítulo do livro Pyrrhonian Reflexions on Knowledge and Justification, de Robert Fogelin, complementada pelo artigo do autor do presente livro, que aprofunda e contextualiza as ideias com maior rigor.[68] Ali se encontra a verdadeira solução do problema de Gettier, que emerge de uma reformulação dialógica mais complexa e refinada da velha definição tripartite. O ponto é que a justificação oferecida por um falante A para seu conhecimento de p precisa ser aceita como suficiente para tornar a proposição verdadeira por parte de um avaliador B, que possui informação mais completa no momento de sua avaliação (o avaliador B pode ser o próprio A em um momento posterior).[69]

     Quanto ao enativismo, no que tem de verdadeiro, ele já existia muito antes, quando Jean Piaget investigou o estágio sensório-motor (1936), sem precisar, como fazem os enativistas contemporâneos, rejeitar o papel da representação simbólica, mas admitindo-a como fundamental.

     Considere agora o seguinte argumento da mente estendida[70], geralmente aceito pelos enativistas que acreditam que a mente não se restringe ao que acontece dentro do cérebro. Considere o exemplo: A pessoa A se recorda da data de um concerto. A pessoa B, que não tem boa memória, anota a mesma data em seu caderninho. Com base nessa informação, ambos, A e B, assistem ao concerto. A conclusão do teorista da mente estendida é (1): o que está no caderno de B constitui parte de sua crença, da mesma forma que a lembrança de A! O corolário do teorista da mente estendida é (2), derivado de (1): o caderninho com a data é uma parte da mente de B, só que localizada fora do corpo de B!

     O problema é que reconhecer que a mente é capaz de se utilizar de recursos externos – da calculadora à inteligência artificial – capazes de auxiliá-la e até aumentar exponencialmente suas possibilidades, o que é evidente, não é o mesmo que afirmar que esses recursos externos fazem parte da mente. A impressão de um “achado” decorre aqui de um abuso da linguagem: uma projeção antropomórfica primitiva, que remete aos tempos do homem paleolítico, que acreditava que as plantas continham espíritos. Só que ceder a semelhante tentação, em nossa época, é uma atitude intelectualmente infantil.

     Nada disso me força a discordar da mensagem de Haack, em sua essência. O atual sistema acadêmico de filosofia, segmentada[71] e de meia-boca, longe de tornar as pessoas mais críticas, as limita e entorpece.

     O diagnóstico final é de decadência ou, como Haack prefere, de um verdadeiro “desastre intelectual” cujas raízes estão no desaparecimento da inovação filosófica profunda nas universidades detentoras da hegemonia na produção científico-cultural.  Ainda assim, permanece legítima a esperança de que a filosofia – por sua própria natureza, quase inevitavelmente disruptiva – renasça como a fênix de suas cinzas. (Lembrando que, para que isso aconteça, é preciso que a fênix seja antes consumida pelo próprio fogo.)

     Haack identificou bem as causas próximas dessa decadência – as causas remotas, creio eu, são de outra ordem. Ela notou que, antes da Segunda Guerra Mundial, sobrava espaço para publicações nas revistas filosóficas. Imperava uma ética segundo a qual só se publicava quando se tinha algo importante a dizer. A ideologia do publish or perish, hoje multiplicada pela Internet, alterou radicalmente esse cenário, praticamente paralisando a possibilidade do inesperado, que ultrapassa a avaliação quase automatizada de editores limitados pela sua própria hiperespecialização (que editor hoje aceitaria uma obra no estilo do Tractatus Logico-Philosophicus? Não temos mais um Gilbert Ryle como editor de Mind). Junto a isso, Haack notou sintomas de corrupção intelectual, como a publicação de “artigos salame” (escritos por múltiplos autores) e de incentivos perversos, que podem, em nosso caso, ser exemplificados pelas ridículas “olimpíadas de filosofia”. Ela também notou que a universidade americana atual é cada vez mais gerida por CEOs, que precisam mostrar resultados e forçar a todos o engajamento com a pesquisa. Com isso, a filosofia passou a ser tratada como se fosse uma ciência em progresso, pior ainda, como se fosse uma investigação técnica em constante desenvolvimento: todos precisam ser filósofos e produzir inovações.

     Contudo, onde todos precisam ser filósofos, ninguém pode ser filósofo. A filosofia, em seu sentido mais elevado, exige compromisso intelectual, tempo para o ócio criativo, cultura ampla e diversificada, longa aquisição de conhecimento em projetos que podem exigir muitos anos de reflexão, além de, creio eu, um certo talento. Um sistema que exige produtividade constante em projetos compartilhados torna esse ideal inviável. O resultado é uma persiflage minimalista do verdadeiro labor filosófico – o que todos podem fazer sem grande preparo.

     É como se todos os que estudam música fossem obrigados a compor, ou como se todos os que estudam pintura devessem ser pintores. Isso é possível, em ponto pequeno. Mas Beethoven e Michelangelo foram não só pessoas particularmente dotadas (em potencial deve haver muitas!), mas sobretudo conscientemente e inteiramente comprometidas com um ideal de grandeza e perfeição estéticas[72], sustentado por um meio propício ao seu florescimento, o que, em alguma medida, vale também para Platão e Aristóteles, Kant e Hegel, e para qualquer filósofo contemporâneo que aspire à filosofia como expressão de uma cultura superior.

     Talvez valha aqui lembrar o que aconteceu com a filosofia, e mesmo com a ciência austríaca e alemã após a Segunda Guerra Mundial. Embora Paris fosse o centro das artes na primeira metade do século XX, Viena era o centro da ciência e da cultura em geral, particularmente a Universidade de Viena. Com o advento do nazismo, os seus melhores cientistas, em grande parte judeus, tiveram de emigrar. Freud, vienense, refugiou-se da Inglaterra; Karl Popper, na Nova Zelândia; os participantes do Círculo de Viena, em sua maioria, nos Estados Unidos... Kurt Gödel, o gênio matemático que formulou os teoremas da incompletude, embora não fosse judeu, era próximo de intelectuais judeus e foi atacado em 1939 por jovens nazistas no centro de Viena. Sua esposa, Adele, o salvou corajosamente com o auxílio de um guarda-chuva, e creio que também foi graças a ela que ele acabou conseguindo pousar a tempo em Princeton, onde se juntou a Albert Einstein. A Universidade de Viena foi assim esvaziada de seus talentos.

      O mais curioso, porém, é o que aconteceu depois da guerra. Após a guerra, nenhum deles foi convidado a retornar a Viena. Os que os substituíram, por um misto de vaidade, inveja e medo de expor a própria mediocridade, não desejavam voltar a viver à sombra de pessoas muito mais talentosas. Os poucos que ousaram regressar, como o grande físico Erwin Schrödinger, foram mal recebidos pela comunidade acadêmica. O resultado foi devastador: tendo perdido suas cabeças, a Universidade de Viena nunca mais conseguiu recuperar o nível anterior. Algo semelhante também aconteceu com as universidades de língua alemã. Também é curioso o fato de que os dois melhores filósofos alemães da segunda metade do século XX, eu diria, Habermas e Tugendhat, nasceram e passaram suas infâncias antes da guerra, um período em que o clima cultural ainda era profundamente diverso.

     O que esses exemplos revelam é que a cultura que forja os seres humanos é algo frágil, difícil de surgir e ainda mais difícil de preservar. Se a estrutura hierárquica da universidade não se renovar de maneira criativa, ela deixará de ser uma fonte viva de inovação cultural. E se isso vale para as ciências[73], vale ainda mais para uma atividade tão suspeita como a da filosofia, que serve ao aprimoramento do intelecto crítico e facilmente precisa tomar para si o papel de questionar o inquestionável.

     Como a crítica à filosofia atual é um tema delicado que não se enquadra no objetivo do presente texto, não desejo me alongar sobre ele. Lembro apenas do breve estudo de Harry Frankfurt sobre o fenômeno por ele denominado bullshit, definido como a produção de construções intelectuais por vezes extraordinariamente complexas e sofisticadas, mas sem qualquer compromisso com a verdade. Trata-se, segundo ele, de um efeito colateral da ampliação do acesso à cultura, que gerou um contingente cada vez maior de pessoas que, embora cultas, não têm nada de relevante a dizer.[74]

     Obviamente, não estou querendo dizer que o impasse atual da filosofia analítica anglofônica (praticamente a única que restou) decorra de má-fé ou da leviandade de fabricantes de bullshit, ainda que muitos de seus produtos se aproximem muito disso. A explicação é mais profunda. É mais justo pensar que um grupo social desvirtuado por um sistema conduz à inconsciência desse mesmo desvirtuamento por parte dos indivíduos que a ele pertencem, o que pode levá-los a produzir trabalhos improfícuos sem a menor consciência do fato. Freud fez um estudo sobre o fenômeno da crença religiosa, que ele considerava uma neurose de repetição coletiva, notando que, ao ser compartilhada por muitos, a neurose coletiva se fortalece.[75] Considere, por exemplo, a prioridade que a comunidade filosófica contemporânea atribui à complexidade em relação à plausibilidade. Mesmo Kant já havia notado que essa prioridade é falsa, mas ninguém parece perceber. Além disso, trata-se de uma história de decadência iniciada nos bairros mais nobres da cidadela filosófica, uma vez que a decadência começa sempre de cima. Mas aqui temos outro problema: o que é a decadência da cultura filosófica?

     Um caso de decadência cultural foi inigualavelmente descrito por Edward Gibbon, em sua história do declínio e queda do Império Romano:

 

A autoridade de Platão e Aristóteles, de Zenão e Epicuro, reinava ainda nas escolas; e seus sistemas, transmitidos com cega deferência de uma geração de discípulos a outra, frustravam qualquer tentativa generosa de exercer os poderes ou ampliar os limites da mente humana. Os primores dos poetas e oradores, em vez de se inflamarem por si mesmos, inspiravam apenas frias e servis imitações… O nome de “poeta” fora quase esquecido; aquele de “orador” foi usurpado pelos sofistas. Uma nuvem de críticos, compiladores e comentadores obscurecia a face do saber, e, em breve, seguiu-se ao declínio do gênio a corrupção do gosto.[76]

 

A decadência da filosofia analítica tem ocorrido de forma algo diversa do que foi descrito na passagem acima, embora com as mesmas consequências. Eis como posso resumi-la.

     No início, havia os filósofos de primeira linha, os fundadores da filosofia analítica: Frege e Wittgenstein, os dois únicos gênios no topo, seguidos por Russell – pessoas suficientemente inteligentes para poder dialogar com Leibniz. Eles pertenciam a um mundo à parte, ainda extremamente hierárquico e elitista (no melhor e, certamente, também no pior sentido). Um mundo marcado pelo abismo sociocultural que levou às Guerras Mundiais e cujas contradições forneceram o fermento necessário aos grandes feitos culturais da primeira metade do século XX.

     Depois, vieram os filósofos de segunda linha, gente como os positivistas do Círculo de Viena, como Rudolf Carnap e, entre os ingleses, A. J. Ayer, que fizeram muito no sentido de desvirtuar a sabedoria herdada dos primeiros. A crítica mais medonha foi a rejeição do princípio da verificação proposto por Wittgenstein, que eles não souberam compreender, mas que legaram aos tempos atuais como parte da “sabedoria herdada”.

     Então vieram os filósofos analíticos americanos, com intenções mais pragmáticas. Eles decidiram viver de desafios à lá Hume, ainda que muito inferiores. Gente como W. V. O. Quine, seguida por Saul Kripke e Hilary Putnam, todos eles também filósofos de segunda linha, ao menos pelo simples fato de que seu brilhantismo intelectual era empanado pela limitação do comprometimento com o que faziam. Esses filósofos desenvolveram estratégias inteligentes e imaginativas para afrontar a sabedoria herdada dos já desaparecidos filósofos de primeira linha, propondo suas próprias teorias formalmente inspiradas, reducionistas e em grande parte equivocadas – a marca patognomônica do erro consistia aqui no caráter profundamente anti-intuitivo de seus desafios – razão pela qual ninguém mais quis ouvir falar da “terapia linguística” de Wittgenstein ou de uma “meramente lexicográfica” filosofia da linguagem ordinária. Não digo, pois, que não eram brilhantes. Mesmo John Searle e Ernst Tugendhat – isolados defensores das velhas ideias – não estavam preparados para refutá-las eficazmente.

     Com a aceitação dessas objeções, uma nova “sabedoria herdada” se instalou. Refiro-me, por exemplo, à rejeição do verificacionismo, às teses da indeterminação da tradução e da inescrutabilidade da referência, à rejeição da distinção analítico-sintética, a invenções como as do necessário a posteriori e do contingente a priori, à função referencial da cadeia causal-histórica externa, à eliminação da definição tripartite do conhecimento com base no problema de Gettier, ao externalismo semântico e epistêmico, sem falar em coisas ainda bem piores como, digamos, o dialeteísmo.[77] Ao lançar esses desafios sem mais encontrarem quem fosse capaz de devidamente criticá-los, esses filósofos retiram os fundamentos sobre os quais se poderia erguer qualquer reflexão mais aprofundada – perdeu-se a força integradora gerada pela consiliência –, abrindo um imenso espaço para a especulação infundada, superficial e desenfreada, cada vez mais distante de qualquer coisa que pudesse ser chamada de plausível.

     O resultado, agora, com os filósofos de terceira, quarta e até de qualquer linha despontando em multidões, é que qualquer invenção, por mais rasa que seja, será prontamente aceita, desde que siga os padrões estabelecidos pela mais recente “sabedoria herdada” e se encaixe em algum nicho de “hipóteses curiosas”. Afinal, da mesma forma como não se pode produzir nada de útil sobre bases falsas, delas também tudo pode se seguir. Com isso, a filosofia tornou-se, enfim, “democrática”: um jogo fácil e acessível a um número cada vez maior de praticantes, inconscientes e descompromissados.

     O que se percebe, por sobre essa desatenta coletivização de “hipóteses curiosas” – frágeis e equivocadas – é um jogo vazio e fútil, cuja irrelevância passa despercebida internamente, mas será prontamente percebida de fora por qualquer observador minimamente lúcido. Aqueles que preservam a integridade intelectual e possuem discernimento suficiente para não se deixarem enganar, manterão distância. Assim, o que restará na linha de frente criativa serão seres impérvios em sua desconexão com a realidade, dotados de imaginação e capacidade computacional, um atributo que não deve ser confundido com a inteligência, aqui entendida como a “capacidade de apreensão da verdade”.[78]

     Chegamos agora às causas mais distantes do declínio. Se o processo continuar, o que poderá restar, não só em filosofia, é o que Max Weber vislumbrou como o possível desfecho do desencantamento do mundo (Entsauberung der Welt): um avanço contínuo da racionalização, burocratização e dessacralização da vida humana, que tem a ver com a cultura de massa resultante do chamado capitalismo tardio,[79] que agora conquista espaço no mundo acadêmico. Weber via esse destino como sendo o do último homem da “noite polar da mais gélida escuridão”[80], que ele definiu como: “Especialista sem espírito, sensualista sem coração, uma nulidade que ainda assim imagina ter conquistado um nível de humanidade nunca antes alcançado.”[81] Em filosofia, essas realizações intelectuais poderão muito bem culminar em um enxame de microfilosofias a turvar a face do saber.

     Deve o futuro de nossa filosofia terminar em uma Alta Idade Média, como terminou a decadência romana descrita por Gibbon? Não necessariamente! Afinal, Weber também acreditava na possibilidade de autorregeneração da cultura como chave para a abertura da jaula de ferro da racionalização/burocratização imposta pelo desencantamento do mundo no interior da sociedade capitalista, por meio de “um grande renascimento de velhas ideias e ideais”.[82] Como consequência, a presente falta de inovações disruptivas na filosofia não precisa ser vista como destino.

     Na segunda parte do seu artigo, Susan Haack propôs o caminho alternativo, que, na verdade, eu mesmo venho tentando seguir. Ela destacou a importância de um tratamento abrangente dos problemas e de um procedimento por aproximações sucessivas. Em vez de dividir para conquistar, conquistar para não precisar dividir. Como Wittgenstein certa vez observou para si mesmo:

 

Não se envolva em problemas parciais, mas sempre alce voo para onde há visão livre do todo, do grande único problema, mesmo que essa visão ainda não seja clara.[83]

 

Afora isso, há algo que a hiperespecialização contemporânea tornou quase impossível, mas que, para a produção de inovações disruptivas, é essencial: o desenvolvimento de uma cultura filosófica sólida, o que significa, no mínimo, conhecer em profundidade os principais clássicos como parte da formação intelectual, além da aquisição de uma cultura humanista e científica abrangente em seus fundamentos. Platão sugeriu, em sua República, que as pessoas começassem estudando matemática e outras matérias, acumulando até mesmo a experiência prática da vida real, de modo que só após os cinquenta alguém poderia se tornar o rei-filósofo. A filosofia vinha depois.

     Uma razão frequentemente considerada para as dificuldades contemporâneas da filosofia é o fato de que o aumento exponencial do nosso conhecimento tenha tornado esse movimento impossível. Ou talvez não! Afinal, o que tem progredido exponencialmente não é tanto a ciência quanto a tecnologia. E quem sabe se uma crise social suficientemente séria para ser saudável, aliada à IA e a outros progressos tecnológicos, não salvará a alta cultura de seu opróbrio? Afinal, como Hegel, por força de ter vivido uma época de grandes conflitos políticos e religiosos, bem percebeu: “A necessidade da filosofia só pode nascer em épocas de crise, quando o poder de unificação desaparece da vida dos homens e as oposições, perdendo a sua viva semelhança e a reação recíproca, se tornam independentes.”[84]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Considere o seguinte parágrafo da Metafísica: “E quando consideramos o todo, tal e tal forma realizada nessas carnes e nesses ossos, de modo que esse é Cálias ou Sócrates, eles são diferentes em virtude de sua matéria (pois ela é diversa em indivíduos diversos), mas são o mesmo na forma; pois a forma é indivisível.Metafísica 1034a 5-8 (meus itálicos). Ora, se a forma é indivisível, ela precisa poder participar de uma diversidade de substâncias. Para uma exposição das recaídas platônicas de Aristóteles, ver W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, vol. V. cap. XIII. Ver também A. E. Taylor, Aristotle.

[2] A. Kenny, Aquinas on Mind, cap. 1, p. 4.

[3] J. L. Austin, Philosophical Papers, p. 232.

[4] O livro intitulado How to do Things with Words foi publicado postumamente em 1962.

[5] Philosophische Untersuchungen, I, sec. 126.

[6] Como eles queriam explicar tudo pela matemática, eles constituem um exemplo de reducionismo na antiguidade.

[7] Ver Auguste Comte, Cours de Philosophie Positive, Oevres, vol. I. Não sigo a sua classificação em detalhes, posto que ele cometeu ao menos dois erros evidentes: a inclusão da astronomia (uma ciência aplicada) entre as ciências que chamo de básicas e a exclusão da psicologia, que ainda era praticamente inexistente como ciência em seu tempo. Os princípios de classificação, porém, permanecem válidos.

 

[8] Uso a expressão ‘ruptura epistêmica’ pela falta de outra, uma vez que ela é geralmente entendida como ocorrendo dentro, e não no início, de uma ciência.

[9] J. R. Searle notou que é um erro acreditar que, porque objetos da experiência interna têm um modo de existência ontologicamente subjetivo, eles também devem ser epistemicamente subjetivos, impedindo seu acesso pela ciência. Exemplos: dor, prazer, experiências visuais, crenças, intenções... são fenômenos ontologicamente subjetivos, mas epistemicamente objetivos. Ver seu Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World, pp. 43-45.

 

[10] Fragmento 2, Diels-Kranz 28 B2.

[11] Aristóteles, Metafísica 1005b 19 ss.

[12] Note-se que a formalização dos princípios apenas convida à confusão.

[13]  Aristóteles, Física, livro VI, 2.

[14] G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schofield, The Presocratic Philosophers, pp. 133-134.

Ver discussão em W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, vol. I, p. 103.

[15] Karl Popper, “Back to the Pre-Socratics”, em seu livro, Conjectures and Refutations, p. 138.

 

[16] Anthony Kenny, A New History of Western Philosophy, vol. I, p. 25.

[17] O primeiro a desenvolver essa hipótese, hoje em descrédito entre os cosmólogos, foi R. C. Tolman em seu clássico Relativity, Thermodynamics, and Cosmology, sec. 174, p. 439 (1934). A sugestão de Tolman é hoje questionada, tendo surgido outras ainda mais ambiciosas e igualmente hipotéticas como a do Big-Bang causado pelo choque entre membranas tridimensionais.

[18] G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schonfield (eds.), The Presocratic Philosophers, pp. 140-142.

[19] Ver Anthony Kenny, A New History of Western Philosophy, vol. I, pp. 22-23. Para a saudação de Charles Darwin, Kenny remete o leitor ao apêndice da sexta edição de The Origin of Species.

[20] Platão, República, IV, 446a ss.

[21] Platão, Phaedrus 246a ss.

[22] Paul D. McLean: The History of Neuroscience in Autobiography, vol. II, cap. 20.

[23] S. Freud, The Ego and the Id.

[24]  Ou seja, naquilo que em sua Física não era metafísica e também em Dos Céus.

[25] Aquinas on Mind, pp. 4-5.

[26] Conhecimento a priori é, para Kant, aquele que é independente da experiência sensível, além de necessário e universal. Kritik der Reinen Vernunft, Einführung. B 1-3.

[27] Como é sabido, a existência de Deus, da Alma e da liberdade foi para Kant, postulada pela razão prática, ainda que não pudesse sê-lo pela razão pura. Para ele a moralidade dependia da aceitação desses postulados. (Ver a segunda parte da Crítica da Razão Prática.) Sobre essa mudança Russell notou sarcasticamente que, embora Kant tenha sido acordado de seu sono dogmático por David Hume, ele logo descobriu um sonífero que lhe permitisse dormir outra vez, acrescentando que a maioria das pessoas nunca consegue se libertar das verdades auridas no ventre materno. Cf Bertrand Russell: A History of Western Philosophy.

[28] Trata-se aqui de uma referência, não ao senso comum ambicioso que se contradiz com a ciência (como “O sol gira em torno da terra” ou “o tempo é sempre o mesmo para qualquer observador”), mas ao senso comum do dia-a-dia, que é pressuposto até mesmo para que possamos fazer ciência, como “meu corpo existe”, “Há outros seres humanos” ou “A terra existe há muito tempo”. Ele é contínuo à ciência, que seria impossível se rejeitássemos seus pressupostos. D. M. Armstrong o chamou de senso comum mooreano, em referência ao artigo de G. E. Moore, “A Defense of Common Sense.” Ver Claudio Costa, Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy, cap. II. Ver também “The Long Arm of Common Sense”, de Susan Haack.

[29] Keith Lehrer, Theory of Knowledge, p. 7. Ver também William James, Some Problems of Philosophy, p. 23.

[30] Aquinas on Mind. (Routledge 1994), p. 5.

[31] Aquinas on Mind, p. 9. Concordo com a motivação de Kenny, mas não com a sua conclusão. Meu objetivo é mostrar que acreditar que a tese progressista põe em perigo a abrangência da filosofia é confundir a natureza das respostas científicas (i.é, respostas consensualmente alcançáveis) eventualmente destinadas a substituir os problemas centrais da filosofia – que são questões cuja natureza última desconhecemos – com os empreendimentos das ciências particulares já existentes, como a física, cuja natureza já conhecemos.

[32]  Friedrich Nietzsche expôs insights desmistificadores acerca dessa questão em Humano, demasiado humano, cap. IV, sec. 165.

[33] Walter Isaacson, Einstein, His Life and Universe, p. 122.

[34] See J. Passmore, “Philosophy”, in Paul Edwards, The Encyclopedia of Philosophy, vol. VI, pp. 219-20.

 

[35] Ver K. R. Popper, Conjectures and Refutations, pp. 339-340. O exemplo padrão de falsificação decisiva empregado por Popper foi a deflexão da luz das estrelas observada durante o eclipse de 1919. Ironicamente, precisamente esse teste seria mais tarde considerado demasiado inconfiável para adquirir caráter probatório (Cf. Martin Gardner, Relativity Explained, Appendix, pp. 96-7).

[36] See K. R. Popper, The Logic of Scientific Inquiry, cap. II.

 

[37] “What is Science?”, p. 42 (meus itálicos). A ciência, como um corpus de conhecimento, como o que os cientistas fazem e como uma instituição, escreveu Ziman, “não pode ser tratada separadamente, mais que um sólido pode ser reconstruído de sua projeção sobre diferentes planos cartesianos” (ibid. p. 42).

[38] John Ziman, Conhecimento Público, p. 24

[39]The Sociology of Science, cap. 13, p. 267 ss.

[40] The sociology of science, p. 270.

[41] Ver Jürgen Habermas, “Wahrheitstheorien”. Por adotar essa ideia e por chamar minha caracterização da ciência de “consensualista”, não estou, de modo algum, sugerindo que a o conhecimento científico resulte de alguma espécie de decisão consensual arbitrária. Nossa experiência coletiva tem mostrado que apenas porque fatos – concebidos como independentes de nós mesmos – podem ser verificados por nossas proposições, é que se torna possível alcançar acordo interpessoal sobre o valor-de-verdade dessas proposições no interior de uma comunidade crítica de ideias.

 

[42] Ver “Science, Conjectures, and Refutations”, in Popper: Conjectures and Refutations.

[43] Ver video no Youtube: “James Randy on Astrology.”

[44] Wittgenstein lia muito pouco. Mas tinha muito bons ouvidos críticos, reagindo ao que ouvia nas palestras em Viena e Cambridge ao comparar os voos filosóficos dos outros com suas poucas chaves críticas baseadas na linguagem natural.

[45]  Há exceções explicáveis, como a de Nietzsche. A mais curiosa foi talvez a de Wittgenstein, que quase não conhecia filosofia, mas tinha excelentes ouvidos e praticamente dirigia as exposições semanais em Cambridge, onde se reunia o melhor da filosofia analítica. Com um pé na universidade e outro no mundo da vida, que ele experienciou em profundidade, ele percebia facilmente quando os filósofos acadêmicos transgrediam os limites da linguagem natural e a importância disso, daí ter inventado sua “filosofia terapêutica”.

[46] De acordo com Kevin Mulligan, Peter Simons, e B. Smith, em “What is Wrong with Contemporary Philosophy?”, muitos filósofos contemporâneos preferem o formalismo abstrato a ter de se engajar com a confusa e complexa natureza do mundo real.

[47] Cf. a sugestão de um behaviorismo das emoções em Dylan Evans, Emotions: The Science of Sentiments.

[48] Ver Susan Haack “The Fragmentation of Philosophy: The Road to its Reintegration.”

[49] “Afterword: Must do Better”, in The Philosophy of Philosophy, pp. 249-280.

[50] Consilience: The Unity of Knowledge (1998).

[51] Susan Haack: “The Fragmentation of Philosophy: The Road to its Reintegration”, in The Fragmentation of Philosophy, p. 15. Em seu uso do conceito de consiliência, Haack foi influenciada pelo trabalho do biólogo Edward Wilson.

[52] Form, Matter, Substance.

[53] A filosofia continental, ou o que restou dela, também não voa alto. Considere o caso de expoentes atuais dela, como Slavoj Žižek, Markus Gabriel e Quentin Meillassoux. O primeiro, influenciado por Hegel, Marx e Jacques Lacan, tem promovido uma crítica social imaginativa e relevante. No entanto, sua abordagem teórica torna-se “lacaniana” no sentido de permanecer enredada em imbróglios conceituais expressivos, sem conseguir superá-los. (Como já se observou, ele é suficientemente inteligente para formular boas críticas, mas não o bastante para construir uma teoria consistente.) Markus Gabriel, por sua vez, recorre a uma vasta gama de textos históricos e contemporâneos que remasteriza de modo a produzir “pseudo-thaumas” — efeitos de maravilhamento — em um público juvenil, mais impressionável do que exigente. Meillassoux, por fim, elabora fantasias intelectuais elegantes, que, no fundo, continuam a tradição pós-modernista. Suas complicadas provocações me parecem, se bem examinadas, superficiais, muito distantes da originalidade profunda de Hume, filósofo no qual a escora. A originalidade só é verdadeiramente explosiva quando combinada à relevância.

[54] Jenny Teichman, “Don’t be Cruel or Reasonable”, in Polemical Papers, p. 134. D. W. Hamlyn: Uma história da filosofia ocidental, p. 398. (O original em inglês foi publicado em 1987.)

[55] Susan Haack, “Scientistic Philosophy: No; Scientific Philosophy: Yes.”

[56] Susan Haack. “Fragmentation of Philosophy: The Road to Reintegration”, in Reintegrating Philosophy, cap. 1, p. 9.

[57] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy: The Road to Reintegration”, in Reintegration of Philosophy, cap. 1, 1.3. Ver também “Kevin Mulligan, Peter Simons, and Barry Smith, “What is Wrong with Contemporary Philosophy”. Uma defesa da fragmentação como inevitável foi apresentada por Scott Soames em The Analytic Tradition in Philosophy, vol. 3, Appendix.

[58] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy: The Road to Reintegration”.

[59] Como notou Jenny Teichman, vão acabar tendo de discutir quantos filósofos são capazes de se sentar sobre a ponta de uma agulha. “Don’t be Cruel or Reasonable”, p. 134.

[60] Blue book, p. 18.

[61] Susan Haack, “The Fragmentation of Philosophy; the Road to its Reintegration, p. 20.

[62] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy: The Road to Reintegration”, p. 21. É curioso notar que metafilósofos pertencentes ao atual mainstream, como Timothy Williamson (2022), ou os autores de An Introduction to Metaphilosophy (2013), não citam os muito bem pesquisados textos metafilosóficos polêmicos de Susan Haack.

[63] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy: The Road to Reintegration”, in Reintegration of Philosophy, pp. 5-14.

[64] A primeira delas saiu na revista Ratio em 2011, com o título “A Meta-descriptivist Theory of Proper Names”. Aos poucos, a teoria foi sendo refinada, com erros sendo corrigidos. Uma exposição resumida e atualizada será publicada na Internet sob o título de “Cognitivismo semântico: por uma nova teoria da referência”.

     É curioso e importante notar como consegui publicar quatro artigos na revista internacional Ratio. Quando escrevi o primeiro, intitulado “I am Thinking”, em 1999, eu estava em um bom endereço, Berkeley, e, como sabia que o editor, John Cottingham, era especialista em Descartes, sabia que ele o leria e o compreenderia. O artigo foi bem aceito, mas, tendo o editor percebido que eu, no meio tempo, já havia voltado para Natal, ele resolveu me testar, fazendo uma pergunta específica sobre um texto escrito em latim que parecia contrariar o que eu dizia. Eu tratei de obter o texto e respondê-lo em uma nota do artigo, que, afinal, foi publicado (2001). O segundo artigo foi enviado em 2004, foi uma versão mais refinada do compatibilismo clássico. Cottingham já me conhecia e me respondeu entusiasmado, dizendo que ele e Galen Strawson (um excelente conhecedor do problema), haviam achado o artigo excelente. Como ele sabia que eu me encontrava em Oxford, me convidou para jantar com ele no Saint Johns College. Queria conhecer-me. Entre outras coisas, contei-lhe o caso de uma aluna minha que, depois da aula, veio me perguntar se é verdade que Aristóteles estava errado, e que os sentimentos se encontram no cérebro e não no coração. Ao nos despedirmos, percebi nos seus olhos o receio de que eu lhe pedisse uma boia de salvação! O artigo foi publicado na primeira página da revista (2006). Os outros dois artigos (2010 e 2011) foram publicados mais pela confiança, uma vez que nem Cottingham nem seus avaliadores devem ter percebido muito das suas implicações. Se os artigos tivessem sido enviados em outra ordem, teriam ido direto para a lixeira, ou teriam caído nas mãos do último avaliador, que, devido ao seu entendimento limitado, ou mesmo ao receio de cometer um erro, os teria rejeitado. O caso demonstra as dificuldades de ser autor periférico. Elas são quase tão grandes quanto as de quem se encontra exposto à máquina moedora de cérebros que se encontra em seu centro. Para um bem humorado artigo sobre a saga que é “fazer currículo” publicando em revistas internacionais, ver Michael Huemer, “Publishing Philosophy”. De minha parte, concordo com Wittgenstein, que achava mais proveitoso ler revistas de quadrinhos do que perder tempo lendo Mind.

[65] Há mundos possíveis nos quais outra pessoa se casou com Pithias, mas não pode haver mundo possível no qual Aristóteles não é o referente de ‘Aristóteles’.

[66] Knowledge and Its Limits.

[67]  Nada contra o confiabilismo se ele for entendido como a posse de informações que tornem uma justificação interna possível, em orimeira ou Terceira pessoa. Mas não é aqui o lugar para discutir tais questões.

[68] Eu percebi a solução logo que estudei o problema. Mas a considerei óbvia demais para não ter sido percebida antes, de modo que fui investigar as respostas ao problema até encontrar o livro de Fogelin com o melhor desenvolvimento da solução. O que me restou foi refinar e formalizar sua solução. Depois disso enviei meu artigo publicado na Ratio ao professor Fogelin, que me respondeu dizendo que minha versão fortalecia (“strengthened”) suas ideias. Ver o capítulo V de meu livro Lines of Thought.

[69] Tentando resumir, em minha versão a definição tradicional tripartite “aSp = p & aCp & aJCp” passa a ser, para o avaliador da pretensão de conhecimento de a, “aSpt = [J & (J ~>P)] & aCP & [aJp & J /in {J1, J2...Jn}]” onde cada J (justificação) é considerado pelo avaliador B, no momento t de sua avaliação, como condição suficiente (‘~>’) para satisfazer a condição de verdade de p.

[70] Adapto esse argumento de A. Clark e D. Chalmers. “The extended Mind”. O que se esquece de notar é o abismo intransponível entre o biológico-natural e os pobres artefatos eletrônicos artificiais por nós produzidos.

[71] Como já foi notado por Kevin Mulligan, Peter Simons e Barry Smith, os principais segmentos da filosofia são: filosofia analítica, filosofia continental e história da filosofia. O problema é que eles não se comunicam, o que é limitador para o trabalho filosófico inovador, que deveria se nutrir do que existe de melhor em cada um desses segmentos. Ver, desses autores, “What is Wrong With Contemporary Philosophy?”

[72] Nietzsche observou que o gênio pode ser “medíocre”, lembrando a imensa dificuldade que Beethoven tinha para compor, que exigia dele refazer as estrofes inúmeras vezes até que se tornassem incomparáveis. Ver Humano, demasiado humano, Cap. IV.

[73] Não são poucas as críticas à ausência de desenvolvimentos disruptivos na física teórica fundamental no mundo da técnica nos últimos 60 anos.

[74] Harry Frankfurt: On Bullshit. Curiosamente, esse também não é um livro citado pelos atuais metafilósofos.

[75] Ver o ensaio de Sigmund Freud intitulado “Die Zukunft einer Illusion” (O futuro de uma ilusão). Na verdade, qualquer movimento de massa está sujeito a essa espécie de cegueira coletiva. Como Hannah Arendt notou, Adolph Eichmann, um cidadão não muito inteligente, não conseguia sentir-se culpado por ter organizado e supervisionado o envio dos judeus para os campos de extermínio. Pessoalmente, não tinha nada contra eles. Em sua opinião, tudo o que fez foi, como bom funcionário do Estado, cumprir zelosamente as ordens que lhe eram dadas…

[76] The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, cap. 2 (On genius).

[77] Sei disso por tê-las, em parte, refutado. Minha refutação do antiverificacionismo baseia-se no verificacionismo proposto por Wittgenstein, que foi desfigurado pelo Círculo de Viena, que criou um boneco de palha só para, com razão, depois rejeitá-lo. Ver meu livro Philosophical Semantics, cap. VI. A defesa de uma versão modificada da definição tradicional de conhecimento, capaz de destruir o problema de Gettier sem deixar restos, encontra-se em Lines of Thought, cap. V, e a crítica a Kripke, junto à crítica ao necessário a posteriori, adicionada ao desenvolvimento de uma teoria da referência muito mais consistente, encontra-se em How do Proper Names Really Work? Quanto ao externalismo semântico de Hilary Putnam, creio tê-lo demolido no capítulo 8 de Cognitivismo semântico: filosofia da linguagem sob nova chave. (O próprio Putnam, mais tarde, confessou a Searle que não acreditava mais na ideia.) Quanto ao dialeteísmo, estava tudo errado e não tive paciência para refutá-lo por escrito.

[78] Nesse sentido originário, não se trata de habilidades a serem medidas pelos testes de QI.

[79] O capitalismo incontrolado é destrutivo e, supõe-se, também destrutivo do próprio potencial crítico da cultura. Daí a necessidade de um Estado que passe a controlá-lo, de modo que ele possa atender, de forma equitativa e sem distorções, às necessidades de todos. Hoje, com as democracias ocidentais dominadas pelo metacapitalismo, parece que a maior esperança vem do Oriente. Cf. Joseph Schumpeter, Capitalism, Socialism, and Democracy.

[80] Max Weber. Political Writings, xvi. O desencantamento do mundo foi uma das grandes ideias de Weber: o mundo era originalmente visto como repleto de magia e dominado por instituições religiosas. Ele foi sendo aos poucos demagificado, especialmente com o desenvolvimento do capitalismo, o que fez essas instituições foram perdendo seu papel dominante. Contudo, há algo que tende a se perder nesse processo, que só se concretiza através de uma burocratização/racionalização/dessacralização da vida humana. A tese de que nossa sociedade capitalista-tecnológica é aversa à alta cultura porque torna o ser humano menos produtivo foi particularmente explorada por Herbert Marcuse em One-Dimensional Man: Studies in the Advanced Capitalist Society. Ver também Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialectic of Enlightenment.

[81] Max Weber: The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. Trad. port. A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 236.

[82] Max Weber: A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 236.

[83] Personal notebooks, 1931.

[84] Introdução da Fenomenologia do espírito. 

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