III
FILOSOFIA COMO ANTECIPAÇÃO
CONJECTURAL DA CIÊNCIA
Where
there is philosophy, there will be Science.
[Onde a filosofia está, lá estará a ciência]
Robert Nozick
Gostaria agora de dar início à busca descritivista dos critérios empregados
para identificar o discurso e o pensamento filosóficos. Minha proposta é que, mesmo
que não possamos encontrar um objeto próprio da investigação filosófica e nada
de metodologicamente relevante que lhe seja exclusivo, ainda assim seremos capazes
de encontrar algo peculiar à filosofia, desde que voltemos a atenção aos elementos
constitutivos de sua forma.
1. O CARÁTER INEVITAVELMENTE CONJECTURAL
DA INDAGAÇÃO FILOSÓFICA
Mesmo que o metafilósofo descritivista não encontre um traço distintivo
da filosofia nos aspectos materiais de sua investigação, ele poderá sempre encontrar
um traço formal marcante e comum a toda indagação filosófica, qual seja, seu caráter
conjectural:
A filosofia é, por essência, um empreendimento conjectural ou especulativo,
no sentido de que filósofos não são capazes de produzir um acordo consensual
suficiente sobre suas ideias, doutrinas e mesmo sobre seus valores e concepções
mais fundamentais.
Não existe filosofia cujos resultados sejam considerados definitivos e indiscutíveis,
como ocorre em domínios científicos, como, digamos, a biologia molecular. Como
em algum lugar escreveu Russell, enfatizando esse fato: “Ciência é o que sabemos;
filosofia é o que não sabemos... Ciência é o que podemos provar que é
verdadeiro; filosofia é o que não podemos provar que é falso.”
A razão
do caráter inevitavelmente conjectural da filosofia não é difícil de identificar.
Para alcançarmos um acordo consensual sobre os resultados de nossos questionamentos,
precisamos, ao menos, compartilhar certos pressupostos fundamentadores, certas
assunções gerais. No entanto, a filosofia carece de um mínimo de compartilhamento
de pressupostos dessa espécie em quase todos os passos de sua investigação. Particularmente
importante nesse aspecto é a ausência de pressupostos fundamentadores compartilhados
capazes de produzir acordo consensual sobre o que podemos chamar de:
(A) Evidências justificadoras: pressupostos gerais que tornam possível a
formulação de problemas comuns e a seleção de dados relevantes (os data).
(Filósofos nunca concordam sobre quais são data fundamentadores de seus
argumentos ou seu grau de relevância, nem mesmo sobre as questões relevantes, que
para alguns são cruciais e para outros sequer fazem sentido.)
E também sobre
(B)
Procedimentos
justificadores: suficiente acordo
prévio acerca de critérios e procedimentos de avaliação da verdade ou se seu
valor de modo a possibilitar soluções compartilhadas. (Argumentos convincentes
para alguns podem parecer implausíveis e irrelevantes a outros.)
Sem o compartilhamento de assunções dos tipos (A) e (B) (que não existe na
filosofia, embora existam nas ciências particulares), parece impossível esperar
algo como um acordo sobre resultados.
Para ilustrar, retomemos a doutrina platônica das
ideias. Essa teoria foi sugerida como solução para o problema da generalidade, tendo
sido construída sob o pressuposto de que algo deve ser imutável para se tornar
objeto legítimo do conhecimento. Ora, como Heráclito já havia tornado claro que
o mundo sensível se encontra em constante transformação, o objeto próprio do conhecimento
só poderia ser aquilo que Platão denominou ideias ou formas: entidades
eternas e imutáveis, existindo fora do tempo e do espaço, em um mundo puramente
inteligível. Como consequência, torna-se possível, por exemplo, predicar a beleza
de uma grande diversidade de coisas visíveis, na medida em que exemplificam a
ideia abstrata do belo.
Contudo,
a doutrina também acarreta sérias dificuldades. Uma delas é a seguinte: como pode
uma única ideia abstrata relacionar-se com os muitos indivíduos concretos a que
se aplica? Para resolver esse problema, Platão apelou às metáforas da participação
(μέθεξις) e da cópia (μίμησις), dificilmente resgatáveis. Assim, pela
metáfora da participação, ele foi forçado a defender que muitas coisas podem
participar de uma mesma ideia, sem, porém, dividi-la em partes, o que parece inconsistente.
A metáfora da cópia parece ter sucesso até notarmos que não é concebível que uma
ideia puramente inteligível (ou abstrata) possa ser copiada pelas coisas
do mundo visível (ou sensível).
A
própria noção platônica de ideia enfrenta dificuldades. Críticos da doutrina podem
sentir-se tentados a considerar o conceito platônico de ideia intrinsecamente
incoerente, sobretudo por depender de metáforas irresgatáveis. São essas
objeções justificadas? Parece que sim. Fui a Atualmente são poucos os filósofos
platonistas, embora eles existam (Frege fez no artigo O Pensamento (Der
Gedanke) a mais talvez mais refinada defesa contemporânea do platonismo.) Além
disso, não temos uma alternativa que todos aceitem. Tudo o que podemos dizer é
que hoje, o platonismo parece a muitos uma alternativa pouco plausível.
A situação
de dúvida não é tão ruim, mas ela se torna desesperadora se exigirmos que o período
em que a doutrina filosófica foi desenvolvida seja parte da equação: no tempo de
Platão, não havia sequer a possibilidade de concluir que sua doutrina fosse pouco
plausível. É compreensível que Aristóteles tenha se encontrado em papos de
aranha ao tentar refutar a existência de universais separados da substância em
sua Metafísica.[1]
A incerteza
é, de fato, esperada, visto que a filosofia se dedica à construção de teorias
fundamentadas sobre bases incertas. Essa é uma conclusão falibilista um tanto deprimente,
que muitos filósofos tradicionais procuraram negar, mas que filósofos contemporâneos
já há um bom tempo aprenderam a aceitar como inevitável. De fato, não há exceção.
Mesmo a filosofia terapêutica tentada pelo último Wittgenstein, que pretendia ser
puramente descritiva, logo acabou por mostrar-se incapaz de produzir acordo consensual:
onde ele via um remédio, outros viam um placebo ou mesmo um veneno.
Essa
impossibilidade de acordo consensual também constitui o mais marcante termo de contraste
entre filosofia e ciência. Pois diversamente da filosofia, em tudo o que chamamos
de ‘ciências’ – tanto empíricas quanto formais – há sempre um grau suficiente de
concordância prévia quanto a:
(A) Evidências justificacionais, ou seja, pressupostos gerais, que tornam
possível a formulação de problemas comuns e a seleção de dados relevantes
(dados sensíveis/axiomas), bem como
(B) Procedimentos justificadores, ou seja, suficiente acordo prévio acerca
de critérios e procedimentos de avaliação da verdade ou do valor almejado a
possibilitar soluções compartilhadas (verificações/provas).
Esses acordos prévios, por sua vez, possibilitam a concordância ulterior
acerca dos resultados, tanto no que diz respeito à verificação ou refutação em ciências
empíricas quanto à demonstração de teoremas em ciências formais. É precisamente
por terem sido capazes de estabelecer tais pressupostos comuns que os cientistas,
ao contrário dos filósofos, conseguem alcançar acordos acerca dos resultados de
suas investigações e nutrir a expectativa de um desenvolvimento progressivo.
Atentar
para a natureza conjectural do esforço filosófico permite-nos esclarecer duas de
suas características formais: o caráter tipicamente argumentativo e
inevitavelmente aporético de seu discurso, com poucas e questionáveis exceções.
Filósofos estão sempre postulando ou sugerindo princípios incertos e buscando validá-los
por meio da demonstração de suas implicações. Tal procedimento depende do
caráter intrinsecamente conjectural da indagação filosófica, posto que, pelo próprio
fato de trabalharem com conjecturas, operam por meio de uma constante
comparação crítica entre as consequências argumentativas das assunções que
consideram corretas, aliada à avaliação crítica dos argumentos empregados para alcançá-las,
em uma tarefa que parece não ter fim. É a natureza conjectural que fundamenta a
praxis distintivamente argumentativa, dialógica e aporética da filosofia.
Poderia
a filosofia ser definida apenas por seu caráter conjectural e especulativo? Não
sem qualificações, posto que nem todas as conjecturas são filosóficas. Podemos,
por exemplo, formular hipóteses sobre as condições climáticas da Terra nos próximos
cem anos, o que não constitui uma investigação filosófica. Uma razão pela qual essa
conjectura não é filosófica é a ausência de um ponto teorético: ela não passa de
uma projeção plausível de eventos empíricos sujeitos a variações. Em
matemática, a conjectura de Goldbach, segundo a qual todo número par maior que
2 é igual à soma de dois números primos, também não é filosófica, ao que parece
porque acreditamos que, como muitas outras conjecturas matemáticas, ela pelo menos
possa ser provada. Mas em filosofia não sabemos sequer se nossas
conjecturas podem ser demonstradas verdadeiras, afinal, podem recair na
categoria dos assim chamados pseudoproblemas.
Contudo, ainda que baseada em teorias, a projeção conjectural não é, por
si só, o que filosoficamente as sustenta. A conjectura teórica de Noam Chomsky
sobre a existência de uma gramática universal inata presente em todos os seres humanos,
embora tenha inspirado inúmeras pesquisas, não pode ser facilmente demonstrada,
mas não chega a ser filosófica. No entanto, ela não chega a ser filosófica não
só por seu caráter muito específico, mas também porque os caminhos de avaliação
experimental podem ser reconhecidos e se encontram hoje, aos poucos, sendo
aproximados. Do mesmo modo, teorias especulativas comuns à física contemporânea,
como a teoria das cordas, embora testáveis em princípio, estão longe de sê-lo
na prática. Tais teorias conservam, diríamos, um traço especulativo ou “filosófico”,
mas são consideradas científicas na medida em que os físicos não as consideram tão
especulativas a ponto de parecer absurdo imaginar um meio de fazê-las passar pelo
tribunal da experiência. Vê-se, portanto, que a diferença entre a especulação
científica e filosófica, por depender do grau de possibilidade de comprovação consensual,
não precisa ser abrupta.
Como conclusão, parece que podemos
qualificar como filosóficos todos os esforços de investigação que, em sua época,
são tidos como definitivamente conjecturais – isto é, proposições que, no momento
em que são formuladas, quanto aos seus resultados, não dispõem de nenhum meio
concebível de avaliação. Esse pode ser considerado o critério mais geral para distinguir
o que pertence à filosofia ou não. Ainda assim, trata-se de um critério muito
pouco elucidativo quanto à natureza da filosofia em suas áreas centrais e
historicamente mais relevantes.
UMA PROTOCIÊNCIA
Uma resposta mais profunda à pergunta: “Por que a filosofia é uma forma conjectural
de investigação?” poderia ser formulada a partir da aceitação da tese de que,
em muitos casos, ela pode ser considerada uma protociência, ou seja, um
empreendimento conjectural que antecipa o empreendimento
científico. Sob essa perspectiva, a persistente atualidade de muitas formulações
filosóficas residiria nas verdades científicas que nelas, de algum modo, se prefiguram.
Que boa
parte da filosofia tenha sido historicamente uma antecipação da ciência não
é nenhuma tese especulativa, mas um enunciado de fato. Entre os gregos, quando
todas as ciências empíricas básicas ainda estavam em vias de serem formadas, o termo
‘filosofia’ (φιλοσοφία) era aplicado indistintamente a todo o domínio da investigação
humana. Somente muito mais tarde, com a emergência daquelas ciências, a aplicação
dessa palavra tornou-se gradualmente mais restrita, embora mantendo um núcleo central
resistente. Ao ceder parcelas de seus domínios à ciência, a tradição filosófica
tem se revelado como o berço, melhor dizendo, o útero (Kenny) do qual as
ciências básicas nasceram,[2]
ou ainda, seu “guardador de lugar”. Essa constatação do papel da filosofia como
antecipação da ciência foi sintetizada de maneira impressiva em uma bem conhecida
metáfora de J. L. Austin:
A filosofia
é o sol inicial central, seminal e tumultuoso, que, de tempos em tempos, perde
uma porção de si mesmo, que se torna ciência, um planeta frio e bem regulado, progredindo
constantemente em direção a um estado final distante. Isso aconteceu longo tempo
atrás, com o nascimento da matemática, e outra vez com o nascimento da física; somente
no último século nós testemunhamos o mesmo processo outra vez, lento e, naquele
tempo, quase imperceptível, no nascimento da ciência da lógica matemática, através
do trabalho conjunto de filósofos e matemáticos.[3]
Austin demonstrou essa tese na
prática ao dedicar os últimos dez anos de sua vida ao desenvolvimento de sua gramática
das relações comunicativas, a teoria dos atos de fala, hoje mais estudada nos
cursos de linguística do que nos de filosofia.[4]
Com efeito,
na medida em que a filosofia é concebida como uma indagação especulativa elaborada
sobre um material de pensamento que, ao menos potencialmente, pode encontrar
lugar na ciência, temos uma razão mais profunda para compreender sua natureza conjectural,
argumentativa e aporética. Se a filosofia é aquilo que pode ser feito antes que
qualquer investigação científica se torne possível, torna-se mais compreensível
que as mais diversas hipóteses possam ser formuladas, que múltiplas linhas de pensamento
possam ser desenvolvidas em sua justificação, e que a disputa sobre a hipótese
correta e o argumento mais convincente perdure indefinidamente.
Como até
mesmo Wittgenstein (inesperadamente) observou: “Pode-se também chamar de ‘filosofia’
o que é possível antes de todas as descobertas e invenções.”[5]
Esse estado de coisas só se encerra quando
o caminho da investigação científica é definitivamente encontrado, ou seja, quando
os estudiosos alcançam um grau suficiente de consenso sobre os pressupostos fundamentais
que sustentam um determinado campo de pesquisa. Esse consenso estabelece uma delimitação
clara sobre o que são os dados relevantes, quais questões devem ser admitidas e
quais procedimentos são válidos para aferir suas respostas.
Quando esse acordo prévio é suficientemente amplo
para permitir a produção concebível de resultados consensuais, os estudiosos
deixam de chamar seu objeto de pesquisa de “filosófico” e simplesmente o redefinem
como objeto da ciência. (Daí o dito popular segundo o qual a tragédia do filósofo
é que, sempre que ele alcança uma verdade definitiva, ele a perde para o cientista.)
3. ORIGENS E DIVISÕES DA CIÊNCIA
Antes de discutirmos em detalhes as possibilidades de derivação da ciência
a partir da filosofia, é aconselhável dizer algo sobre a classificação e a emergência
das ciências mais fundamentais.
As ciências
são certamente de duas espécies: formais e empíricas. Essas duas espécies
sempre mantiveram, em alguma medida, uma relação de interdependência ao longo de
seus desenvolvimentos. As ciências formais fundamentais são a lógica e a matemática,
cujos princípios remontam à Antiguidade. A aritmética elementar e a geometria
se desvincularam da filosofia já entre os gregos, quando seus respectivos objetos
– o número, no caso da aritmética, e o ponto e as formas geométricas, no caso
da geometria – passaram a ser considerados de maneira independente dos problemas
práticos que originalmente deveriam resolver. Uma forma muito limitada da lógica
também surgiu precocemente com a silogística aristotélica.
Poderíamos,
sem dúvida, falar de uma protológica e de uma protomatemática filosóficas. O
poema de Parmênides, por exemplo, oferece uma formulação metafísica implícita das
leis lógicas da identidade, da não-contradição e até mesmo do terceiro excluído,
ao afirmar que o ser é e que o não-ser não pode ser. Platão, por sua
vez, já dispunha de uma teoria rudimentar da predicação. Os filósofos pitagóricos,
impressionados pelas realizações da matemática abstrata, acreditavam que os números
fossem a arché (ἀρχή), o princípio causal sustentador de toda a realidade,
tomando, à sua maneira, o formal pelo empírico.[6]
Contudo, a verdadeira questão, ainda hoje filosófica, acerca da natureza ontológica
dos números, permanecia, naquela época, ainda envolta na mais completa escuridão.
Retomando
a discussão sobre as ciências empíricas, adotarei aqui uma versão corrigida e atualizada
da classificação das ciências empíricas básicas proposta por Auguste Comte.
Essa classificação ainda se mostra bastante razoável se for adequadamente reinterpretada,
pois é capaz de nos proporcionar um rationale para a compreensão da
ordem de aparecimento dessas ciências como o tronco historicamente demonstrado
da árvore do conhecimento, a qual, em seus galhos, se torna muitíssimo variegada.
O princípio classificatório divisado
por Comte estabelece que as ciências básicas se organizam segundo uma dupla
ordem:
(a)
Da maior
para a menor generalidade no escopo dos fenômenos investigados.
(b)
Da menor à
maior complexidade desses fenômenos, na medida em que a exatidão de uma ciência
é inversamente proporcional à complexidade dos objetos que ela estuda.
Ao modificar e atualizar a classificação original, podemos distinguir
cinco ciências empíricas básicas: física, química, biologia, psicologia
e sociologia.[7] O
seguinte esquema sumariza essa classificação:
PARTICULARIDADE COMPLEXIDADE
5. sociologia
ciências
4. psicologia
humanas
(a) (b)
3.
biologia ciências
2. química
naturais
1.
física
(ciências
formais: lógica e matemática)
GENERALIDADE SIMPLICIDADE
De (1) a (5) temos as ciências empíricas básicas, organizadas em uma
hierarquia em que cada uma pressupõe a anterior. A física, que é dependente do desenvolvimento
das matemáticas, ocupa a base dessa estrutura. Ela é justamente considerada a ciência
empírica fundamental, pois abrange, em seu escopo, toda a realidade
empírica, sem exceção: átomos, partículas subatômicas e forças elementares permeiam
o universo inteiro. Em seus princípios, é também a mais simples, o que justifica
seu mais extenso âmbito de aplicação. A química, por sua vez, tem um escopo mais
restrito, voltado aos fenômenos decorrentes da combinação de elementos atômicos.
Ela se divide em duas grandes áreas: a química inorgânica, voltada a compostos
não baseados em carbono, e a química orgânica, constituída por compostos de
carbono, geralmente muito mais complexos. Com um escopo ainda mais restrito, a
biologia dedica-se ao estudo dos seres vivos, vegetais e animais, cuja constituição
é bioquímica. A psicologia restringe-se a uma pequena parcela dos seres vivos:
aqueles que possuem fenômenos mentais dos quais emerge a consciência. Finalmente,
a sociologia ou física social possui escopo ainda mais limitado, voltando-se exclusivamente
ao estudo das sociedades humanas em suas formas estática e dinâmica.
A progressiva perda de generalidade dos fenômenos
investigados corresponde a um aumento na complexidade dos princípios envolvidos.
Isso ocorre porque os fenômenos mais complexos só podem emergir em contextos
mais específicos e delimitados, como os das ciências superiores.
Cabe ainda destacar que as
ciências humanas e sociais se distinguem das ciências naturais por incorporarem
um elemento interpretativo em psicologia geralmente denominado empatia
e, em sociologia, a compreensão (o Verstehen de Weber) ou a imaginação
sociológica (C. W. Mills). Ou seja: para compreendermos os fenômenos
psicológicos e sociais, é necessário recorrermos a nossas próprias mentes como espelhos
do que desejamos compreender, colocando-nos no lugar de outras pessoas ou das
pessoas em grupos de outras pessoas, para saber como se sentem ou reagem diante
dessa ou daquela situação. Claro que a adição do elemento interpretativo torna muito
mais difícil e complexa a obtenção de resultados consensuais nessas ciências, o
que não significa torná-los impossíveis, dado que ele também pode ser esclarecido.
As relações entre generalidade e complexidade também
ajudam a compreender a ordem de nossa apreensão cognitiva das ciências básicas,
bem como a própria sequência de seu desenvolvimento histórico. De fato, para aprender
física, não é, em princípio, necessário qualquer conhecimento prévio de química.
Já a química, por sua vez, pressupõe certo entendimento de seus fundamentos físicos.
Também, para entender melhor a vida, precisaremos conhecer a química orgânica,
pois é por meio dela que se estruturam os pilares da genética e da biologia molecular.
Também o aprendizado de psicologia pressupõe suficiente entendimento de biologia.
Por fim, a compreensão da sociologia requer algum conhecimento de psicologia, incluindo
seu elemento interpretativo, e tende, em certa medida, a pressupor as ciências anteriores.
Essas pressuposições nos
ajudam a compreender por que o desenvolvimento das ciências básicas de menor
escopo e maior complexidade depende, de modo geral, do progresso das
ciências mais gerais e mais simples. Essa dependência não se limita aos fundamentos
teóricos, mas também abrange os avanços tecnológicos e instrumentais das ciências
mais gerais. Como poderia, por exemplo, a biologia desenvolver-se sem a invenção
do microscópio, cuja construção depende dos princípios da óptica, que, por sua
vez, derivam diretamente da física? Assim, o progresso das ciências superiores
está condicionado não apenas ao conhecimento acumulado nas ciências anteriores,
mas também às suas aplicações práticas, que viabilizam novas formas de
investigação e compreensão.
Essas considerações ajudam a entender a ordem do nascimento das ciências
básicas. A primeira delas a emergir foi a física, no Renascimento. Embora já houvesse
rudimentos dessa ciência na antiguidade – como a descoberta da densidade específica
por Arquimedes – foi somente após Galileu que a física experimental se consolidou
como um corpo unificado de ideias científicas. A química, por sua vez, só
emergiu como ciência entre os séculos XVIII e XIX. A psicologia desenvolveu-se gradualmente
como psicologia experimental a partir da virada do século XX, embora sua
legitimidade como ciência ainda seja debatida, especialmente sob a perspectiva
da “psicologia profunda”, como pretendeu a psicanálise freudiana. A sociologia
só se estruturou como um corpo teórico complexo, com pretensões científicas, a partir
das contribuições de Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim. Tanto a psicologia
quanto a sociologia se desvincularam da filosofia apenas parcialmente, em um processo
gradual, escalonado e conflituoso.
Essas dependências ajudam a explicar
por que o processo de afirmação da psicologia e da sociologia como ciências tem
sido muito mais lento, laborioso e escalonado. Observamos um salto, um
verdadeiro ponto de inflexão que prefiro chamar de ruptura epistêmica entre
ciência e o que se fazia antes de seu surgimento[8],
com o nascimento da física como um corpo de conhecimento científico com Galileu
e Newton nos séculos XVII; com o nascimento da química com Lavoisier, Cavendish
e outros no final do século XVIII, e mesmo com a muito mais escalonada organização
da biologia como um corpo de conhecimento científico ao longo do século XIX, por
cientistas como Pasteur, Claude Bernard, Mendel e Darwin.
Essas rupturas ocorreram quando, além do acúmulo
do conhecimento, foram encontrados métodos de investigação apropriados, capazes
de gerar consenso quanto ao poder preditivo e explicativo das teorias que formaram
um corpo unificado. No entanto, quanto mais complexos e dependentes se tornam os
domínios de investigação, menores são as chances de saltos ou rupturas abruptas.
Algo assim encontramos nos domínios mais complexos da psicologia e da ciência social,
onde não há mais um momento histórico de ruptura epistêmica claramente
identificável.
Assim, a constituição mais gradual
das ciências humanas tem a ver com a hierarquia das ciências. Trata-se de uma
complexidade e diversidade muito maiores dos fenômenos a serem investigados,
nos quais as variáveis intervenientes tendem a crescer exponencialmente. Soma-se
a isso o fato de que os procedimentos avaliativos nesses campos exigem um
conhecimento de base muito mais amplo, frequentemente fornecido pelo
desenvolvimento das ciências mais básicas e de suas aplicações.
Não
obstante, a maior razão da dificuldade de tornar as ciências humanas
inteiramente científicas encontra-se em seu elemento irredutivelmente interpretativo
(o Verstehen, a empatia, a imaginação social) que depende de um exame reflexivo
constante, que desempenha papel central na psicologia e nas ciências sociais. Esse
elemento interpretativo envolve aspectos não acessíveis à observação interpessoal
direta e, por isso, não pode ser tão facilmente tratado de forma objetiva – embora
também não deva ser considerado, como pretenderam behavioristas como J. B.
Watson, em psicologia, e positivistas sociais como Émile Durkheim, desesperadamente
subjetivo, pois afinal, o que é ontologicamente subjetivo não precisa ser por
causa disso também epistemicamente subjetivo.[9]
Em síntese,
as ciências humanas, para se desenvolverem plenamente, dependem tanto da maturação
das ciências básicas quanto do avanço das possibilidades de aplicação técnica dessas
últimas. Podemos nos perguntar, por exemplo, o quão mais científica a psicologia
poderá se apresentar no futuro, à medida que ela for integrada a bases neurocientíficas
mais desenvolvidas. Mais do que isso, elas dependem de um incremento nas
possibilidades epistêmicas do elemento de compreensão empática dos seres
humanos, tanto no nível individual quanto no social.
Há uma razão pela qual as
ciências consideradas no esquema que faço derivar de Comte merecem ser chamadas
de “básicas”. As demais ciências empíricas disponíveis são, em geral,
subdivisões especializadas dessas ciências fundamentais — como a linguística e
a economia, que se inserem no campo das ciências sociais — ou resultam da
combinação de seus princípios, aplicados localmente a regiões ou objetos específicos.
Exemplos deste segundo tipo incluem a História, que recorre, entre outros, à
psicologia e à sociologia para compreender as transformações temporais nas
sociedades humanas; a Etnologia, que aplica conceitos psicológicos e sociológicos
ao estudo de grupos étnicos culturalmente distintos; a Geologia, que utiliza
fundamentos da física e da química para investigar a estrutura e a dinâmica da
Terra; a Neurofisiologia, que se vale da bioquímica e da biofísica para
explorar o funcionamento cerebral. Há também ciências “abertas”, cuja evolução
depende de acontecimentos futuros, como a própria história e a economia. Embora
a economia política tenha produzido escolas com contribuições significativas
desde sua fundação por Adam Smith, ela permanece marcada pela incerteza, dada a
complexidade e constante transformação de seu objeto de estudo. Outras ciências
se destacam pela natureza intrinsecamente complexa, como a neurociência, que
investiga o cérebro a partir de múltiplas disciplinas. O número de subdivisões e
combinações locais parece virtualmente ilimitado. No entanto, nosso objetivo aqui
não é propor uma classificação exaustiva e precisa das ciências, mas sim
delinear um esboço conceitual mínimo que nos permita investigar as relações
entre filosofia e ciência.
É importante destacar que a emergência das
ciências básicas sempre substituiu a especulação puramente filosófica nos
domínios a que se referem. A consolidação da física como ciência experimental,
por exemplo, pôs fim ao reino da física aristotélica especulativa, ao menos naquilo
que não se confundia com sua metafísica, que ainda hoje não foi superada por
nenhuma ciência. Um destino semelhante teve a doutrina dos quatro elementos,
proposta por Empédocles no século V a.C. e adotada por Aristóteles. Ela prevaleceu
no pensamento ocidental por mais de dois mil anos, só tendo sido seriamente questionada
no século XVII por Robert Boyle. O mesmo ocorreu com o vitalismo, a doutrina segundo
a qual os fenômenos vitais seriam controlados por impulsos imateriais, distintos
das forças físicas, após o desenvolvimento da biologia molecular. Note-se que uma
reformulação filosófica do vitalismo foi defendida, ainda no século XX, por Henri
Bergson, por meio de sua teoria do élan vital.
Neste e
nos capítulos seguintes, adotarei a classificação comtiana modificada das ciências
básicas, por considerá-la, em linhas gerais, o verdadeiro tronco da árvore
genealógica das ciências. Não preciso fazer mais aqui do que estabelecer esse alicerce
mínimo, que nos ajude a compreender a relação entre filosofia e ciência.
4.
ALGUNS EXEMPLOS
DE INSIGHTS
FILOSÓFICOS PROTOCIENTÍFICOS
Nesta seção, examinarei alguns exemplos em que ideias filosóficas anteciparam
conceitos posteriormente desenvolvidos pela ciência, nos campos da matemática,
da física, da química, da biologia e da psicologia.
Esses exemplos podem nos confundir, como veremos
mais adiante, pois se referem apenas a antecipações do tronco de ciências básicas
bem conhecidas. Não abrangem as ciências derivadas, menos conhecidas ou mesmo
as ainda desconhecidas, que podem ser muito diversas. Isso pode levar à falsa
impressão de que as nossas indagações filosóficas atuais deveriam se relacionar
às ciências futuras do mesmo modo que porções da filosofia de um passado mais ou
menos remoto têm sido relacionadas às nossas ciências empíricas básicas. Essa é
uma sugestão que pode bem ser responsável pela insistência em um cientificismo positivista
teimoso, muito presente, que tende a reduzir a filosofia da ciência a sua
relação com as ciências mais bem fundamentadas, como a física, e que é
obstrutivo ao próprio desenvolvimento das ciências. (Para essa tendência, o
próprio Comte tinha termos como ‘usurpação’, ‘hipertrofia’ e ‘anexação’.) Se formos
precavidos ao considerar esse ponto, os exemplos que se seguirão não deixarão
de ser instrutivos.
Meus primeiros exemplos dizem respeito à lógica
e à matemática. Como vimos no capítulo anterior, Parmênides, com sua doutrina segundo
a qual “o ser necessariamente é, enquanto o não-ser não pode ser”[10]
estaria antecipando as três chamadas “leis do pensamento”, a saber: (i) o princípio
da identidade, segundo o qual “o ser é”, formalmente “A = A, ou “A → A”, já considerado
por Platão; (ii) o princípio da não-contradição, que na formulação de Aristóteles
afirma que “é impossível que a mesma coisa ao mesmo tempo pertença e não
pertença a uma mesma coisa segundo o mesmo aspecto”[11],
representado formalmente como “~(A & ~A)”; e (iii) o princípio do terço excluído,
segundo o qual “se uma coisa pertence a uma mesma coisa ela não pode ao mesmo
tempo e sob o mesmo aspecto não pertencer a ela”, formalmente: “~A v ~A”.[12]
Vejamos agora um exemplo de antecipação
da matemática. Ele pode ser encontrado na resposta de Aristóteles ao famoso paradoxo
do movimento de Zenão de Eleia, segundo o qual Aquiles não é capaz de alcançar uma
tartaruga em uma corrida, caso esta tivesse uma vantagem inicial. Isto porque
sempre que Aquiles atingisse o ponto onde a tartaruga estivera, ela já teria
avançado um pouco mais.
Aristóteles respondeu observando
que o tempo necessário para Aquiles percorrer cada intervalo espacial é inversamente
proporcional ao tamanho desse intervalo. Como esses intervalos se tornam
progressivamente menores, o tempo necessário para atravessá-los também diminui
indefinidamente em proporção. Assim, embora haja infinitos pontos a serem alcançados,
o tempo total para alcançá-los é finito, de modo que Aquiles logo ultrapassa a
tartaruga.[13] Essa
resposta antecipa de forma notável a noção de limite, que só seria formalizada
muitos séculos depois com o desenvolvimento do cálculo infinitesimal por Leibniz
e Newton.
Considerando agora exemplos empíricos,
temos a ideia defendida por Anaximandro (647-
Karl Popper sustentou que essa foi uma das ideias
mais ousadas de toda a história do pensamento humano, pois tornou possíveis as teorias
de Aristarco, Copérnico e outros. Afinal, conceber a Terra
como livremente disposta no meio do espaço, e afirmar que “ela permanece sem
movimento por causa da equidistância e do equilíbrio” é, em alguma medida, antecipar
a ideia de forças gravitacionais, imateriais e invisíveis, que seriam formalizadas
por Newton muitos séculos depois.[15]
Embora
antecipadora da física, a hipótese de Anaximandro não poderia ser considerada
científica, já que, na época em que foi formulada, não havia qualquer procedimento de avaliação da verdade
que pudesse conduzir a um consenso. Por contraste, as ideias de Copérnico e Newton
foram capazes de ser submetidas a testes e validações, obtendo consenso com precisão
matemática quanto à sua verdade, uma condição de cientificidade que já era possível
em suas respectivas épocas.
Um exemplo por demais conhecido de antecipação
é também a teoria atomista de Demócrito e Leucipo (século V a.C.), segundo a qual
pedaços visíveis de matéria são compostos por átomos invisíveis e fisicamente
indivisíveis, que possuem inúmeras formas distintas. Essa teoria é uma antecipação
especulativa do que poderíamos chamar de estrutura conceitual de uma teoria
atômica da matéria, ainda que não de seu conteúdo específico. Também a teoria dos
quatro elementos, terra, água, ar e fogo, proposta pela primeira vez por Empédocles,
antecipava, de forma muito ilusória em termos de estrutura conceitual, a tabela
periódica de Mendeleev, com a sua ordenação dos elementos químicos fundamentais.
No campo da cosmologia, os pré-socráticos
ofereceram antecipações tanto da teoria contemporânea do Big Bang quanto
da hipótese do universo pulsátil. A antecipação da teoria do Big Bang
teria sido sugerida, segundo Sir Anthony Kenny, por Anaxágoras. Contento-me
aqui em apresentar uma tradução fiel da exposição feita por Kenny:
Todas as coisas estavam juntas, infinitas em número, infinitas em pequenez;
pois o pequeno também era infinito. Como todas as coisas estavam juntas, nenhuma
era reconhecível em razão de sua pequenez.” (...) Essa pedrinha primeva começou
a girar, jogando para fora o éter e o ar circundantes, formando dessa maneira as
estrelas e o sol e a lua... Mas a separação nunca foi completa, permanecendo,
ainda hoje, em cada coisa uma porção de tudo o mais. (...) A expansão do universo
continua até hoje e continuará no futuro. Talvez tenha gerado outros mundos,
além do nosso, com animais, pessoas, cidades e produtos da terra, exatamente
como acontece conosco, e também com sol e lua, exatamente como em nosso caso.[16]
Anaxágoras (~450 a.C.) não só foi o primeiro a
sugerir uma teoria do Big Bang, mas também o primeiro a propor a
existência de outros planetas no universo, habitados por civilizações tão desenvolvidas
quanto a nossa!
Quanto à teoria do universo pulsátil, ela foi antecipada por Empédocles
(~450 a.C.), que concebia o universo como movido por duas forças alternantes: o
amor (Φιλία) e a discórdia (Νεῖκος). Quando o amor prevalece, o
universo se funde em uma unidade; quando domina a força da discórdia, o universo
se fragmenta em uma multiplicidade, num eterno ciclo de união e separação.
Quanto
à versão contemporânea do universo pulsátil ou oscilante, sua possibilidade foi
matematicamente sugerida por Richard Tolman. Segundo essa hipótese, depois da expansão
causada pelo Big Bang, haveria um ponto em que a gravidade venceria a
força expansiva, levando o universo a se contrair em um colapso conhecido como Big
Crunch. A partir daí, o processo se reiniciaria ciclicamente até que, com o
aumento constante e inevitável da entropia, ele chegasse à sua morte final.[17]
Outro exemplo notável de antecipação
da ciência é a primeira hipótese em direção ao evolucionismo biológico, sugerida
por Anaximandro. Ele afirmava que a vida teve origem na água, que criaturas
vivas podem ser espontaneamente geradas da umidade e que os seres humanos
evoluíram de espécies inferiores, posto que, nos primeiros anos, teriam morrido
se fossem tão indefesos como são hoje ao nascer.[18] É verdade
que as ideias de Anaximandro (sec. VI a.C.), quando tomadas em um sentido estrito,
estavam equivocadas, pois ele acreditava em geração espontânea e que os seres
humanos tivessem sido inicialmente gestados no interior de peixes, emergindo
completamente formados, em vez de se desenvolverem gradualmente.
Empédocles, contudo, foi além. Ele acreditava
que os seres vivos nasceram da combinação dos elementos, especificamente duas
partes de água, duas de terra e quatro de fogo. Com isso, formaram-se partes de
animais. Algumas monstruosidades surgiram, como bois com cabeças humanas e, por
sua vez, cabeças humanas em bois, além de criaturas andrógenas, frágeis e estéreis.
Somente os mais aptos sobreviveram, dando origem aos presentes animais e seres
humanos. Charles Darwin saudou Empédocles como a primeira pessoa a antever a
evolução natural.[19]
Alguém poderia aqui objetar que
sentenças como “A terra está suspensa no espaço vazio” e “O homem desenvolveu-se
a partir de formas inferiores de vida”, que podem ser extraídas da obra de
filósofos pré-socráticos, são hoje verdades científicas. Teriam sido, então, verdades
filosóficas que se tornaram científicas? Em certo sentido, sim. As ideias que essas
sentenças expressam passaram a ser consideradas científicas para nós. Não
obstante, isso não implica que elas não fossem filosóficas para outros homens em
outros tempos, pois só se tornam obviedades quando vinculadas ao contexto atual
de sua enunciação, ou seja, pelo menos após Copérnico e Darwin.
Justamente porque estamos examinando
ideias de pensadores do passado, é essencial considerá-las no contexto em que
surgiram. No interior deles, dada a ausência de reforços evidenciais, elas só poderiam
ser endereçadas de forma especulativa. Assim, o predicado ‘...é filosófico’ só
adquire um sentido apropriado quando relacionado ao contexto histórico em que a
ideação filosófica nasceu. Como situamos essas sentenças no contexto da obra de
filósofos pré-socráticos, quando praticamente não havia suporte evidencial,
somos levados a considerá-las especulações filosóficas. Do contrário,
estaríamos obrigados a tratá-las como generalizações científicas, o que seria
anacrônico.
O último
exemplo é relacionado à psicologia – um campo de investigação que ainda não se
encontra bem consolidado como ciência. Trata-se aqui da doutrina platônica da
tripartição da alma ou psiquê (ψυχή).[20]
De acordo com essa doutrina, a alma é formada por três partes distintas:
(1)
A primeira
parte é a mais primitiva, formada por seus apetites corporais, desejos e necessidades.
(2)
A segunda parte é a do elemento animoso, formada
por impulsos emocionais tais como coragem, raiva, ambição, orgulho, amizade,
honra, lealdade, etc.
(3)
A terceira parte da alma é formada pela razão,
que atua como um princípio inibitório que comanda as demais.
No diálogo Fedro, Platão comparou a razão com o condutor de uma
biga alada à qual está atrelado um par de cavalos, um deles, bom, que representa
o elemento animoso e que se esforça para se alçar ao reino das ideias; o outro
mau, simbolizando os apetites inferiores e tenta trazer a biga de volta ao
mundo terreno, dando muito trabalho ao seu condutor.[21]
Ora,
a doutrina platônica da tripartição da alma acabou por ser, em boa medida, corroborada
pela neurociência. Segundo o renomado neurofisiologista Paul McLean, autor da
teoria do cérebro triúno, nosso cérebro é composto por três computadores interrelacionados
e evolucionariamente originados: o arquiencéfalo, o mesencéfalo e
o neoencéfalo. O arquiencéfalo (cérebro reptiliano) corresponde ao bulbo
raquidiano e aos gânglios basais. É responsável pelas disposições instintivas
do organismo, como a respiração, os batimentos cardíacos, a fome e o desejo sexual...
O mesencéfalo abriga o que ele chamou de sistema límbico, responsável pela
memória emocional, pelo humor e pelas motivações. Há, por fim, o neoencéfalo, que
constitui o córtex cerebral, que ocupa no ser humano cerca de 78% da massa encefálica
e que é responsável pelo pensamento racional, pela linguagem, pela tomada de
decisões e consciência.
A teoria do cérebro triúno guarda notável
semelhança com a concepção platônica da alma, composta por desejo (arquiencéfalo),
emoção (mesencéfalo) e razão (neoencéfalo).[22]
Sob a perspectiva da psicologia, a teoria platônica
da tripartição da mente também pode ser considerada precursora da teoria estrutural
da mente proposta por Sigmund Freud.[23]
Segundo essa última, a mente também se divide em três instâncias:
1)
o Id (Es),
inteiramente inconsciente, representa os impulsos instintivos e as pulsões
básicas.
2)
o Superego
(über-Ich), geralmente inconsciente, corresponde à figura
paterna introjetada e atua como instância moral, exigindo a realização de ideais.
3)
o Ego (Ich), em grande
parte inconsciente, está diretamente ligado à percepção, à vontade consciente e
ao controle motor.
A dinâmica entre essas instâncias, segundo Freud, deve-se ao Ego, que
busca equilibrar as exigências do Superego com os impulsos do Id.
As teorias de Platão e de Freud guardam apenas
correspondências parciais. O Id freudiano corresponde, em grande medida,
aos apetites corporais descritos por Platão, mas também abarca elementos volitivos,
como a raiva, que o filósofo atribuiu ao elemento animoso da alma. O Superego,
por sua vez, guarda certa semelhança com o próprio elemento inibitório em Platão,
o bom cavalo da alegoria da biga alada. Já o Ego parece corresponder ao
princípio racional platônico, ao condutor da carruagem, encarregado de equilibrar
as demandas opostas do Id e do Superego. Freud (assim como
Nietzsche) consideraria Platão um escapista que, inconscientemente, diminuía a
importância da dimensão hedonista do psiquismo humano. Como ele declarou em uma
entrevista, a vida do homem comum se resume a dois grandes motores: “sexo e
dinheiro”. Freud considerava Marx uma pessoa psicologicamente ingênua e sua
visão da natureza humana era tão sombria quanto a de um quadro de Hieronymus
Bosch.
Ao confrontarmos essas teorias, deparamo-nos
com uma dificuldade semelhante àquela enfrentada ao comparar teorias
filosóficas. A psicanálise freudiana, embora seja um trabalho de gênio, apresenta
falhas evidentes e não satisfaz plenamente os critérios da investigação
científica — sobretudo se esta exigir consenso entre especialistas quanto aos
seus resultados. De fato, seus praticantes, por mais qualificados que fossem,
jamais alcançaram tal acordo, o que contribuiu para a fragmentação da psicanálise
em diversas escolas concorrentes, cada uma guiada por seus próprios “mentores
intelectuais”. Ainda assim, enquanto a proposta de Platão se baseava
essencialmente em sua experiência pessoal e em observações gerais sobre o
comportamento humano, a teoria freudiana derivou suas conclusões de um método sistemático
de associações livres, aplicado a inúmeros pacientes. Além disso, introduziu um
elemento teórico particularmente importante — o inconsciente — que foi investigado
de forma menos metafórica e muito mais detalhada. Sua teoria estrutural da mente,
nesse contexto, busca oferecer uma compreensão mais abrangente — e parece, de
fato, fazê-lo. Embora incerta e passível de questionamentos, ela propõe um
quadro conceitual mais adequado para a avaliação, ao menos com base nas categorias
da psicologia contemporânea.
Seria possível identificar, ao longo deste
percurso, uma evolução evidente? Infelizmente, não. Nem tudo o que Platão
escreveu sobre a tripartição da alma foi assimilado pela psicanálise — e ainda
menos pela teoria do cérebro triúno. Tome-se, por exemplo, a associação que
Platão estabeleceu entre as três partes da alma e as quatro virtudes cardinais
da Hélade: à parte racional corresponde a sabedoria; à parte volitiva, à
coragem; e, à parte apetitiva, quando submetida ao controle da vontade,
a temperança. Por fim, é da harmonia entre essas três dimensões da alma,
integradas em um todo, que emerge a virtude da justiça. Nada disso pode
ser encontrado em Freud.
Quero concluir esta seção distinguindo entre
boas e más antecipações. A maioria dos exemplos considerados pode
ser vista como boas antecipações: as ideias de Anaximandro sobre a forma e a
localização da Terra, a ideia de Empédocles sobre a seleção biológica… mostram,
de modo obviamente muito rudimentar, a direção a ser seguida pela ciência. E a teoria
platônica da tripartição da alma antecipa a estrutura de teorias científicas ou
próximas à ciência.
Contudo, há esforços especulativos que podem ser
vistos como más antecipações, no sentido de terem apontado para caminhos
equivocados. A teoria dos quatro elementos, proposta por Empédocles, foi um exemplo
claro. Foram necessários mais de dois mil anos até que Robert Boyle, no século XVII,
demonstrasse sua inconsistência. Outro caso notório foi, no século XVIII, a hipótese
do flogisto, que postulava a existência de um elemento liberado pelo fogo e responsável
por ele. Essa ideia era completamente equivocada e retardou o desenvolvimento
da química por quase um século. O exemplo mais emblemático de má antecipação,
contudo, foi o da física apriorista de Aristóteles.[24]
Aceita pela Igreja como dogma, ela retardou significativamente o desenvolvimento
da física experimental ao longo da Idade Média, até que os experimentos de Galileu
a tornaram insustentável.
5.
FISSÃO
Antony Kenny, ao refletir sobre o modo como o pensamento filosófico dá
lugar à ciência, observou que esse processo ocorre por meio de uma espécie de
parturição, que ele denominou “fissão”[25].
Para ilustrar esse conceito, Kenny recorreu a um exemplo relacionado a um dos
problemas centrais da filosofia do século XVII: a questão das ideias inatas.
Inicialmente, o problema era
formulado da seguinte maneira: quais de nossas ideias são inatas e quais são
adquiridas? Após Kant, essa questão — originalmente confusa — dividiu-se em
duas outras: de um lado, a investigação sobre os papéis da herança e do
ambiente na formação de nossas ideias; de outro, a indagação sobre quanto de
nosso conhecimento pode ser considerado realmente a priori. Segundo
Kenny, a primeira questão foi transferida para o domínio da psicologia,
enquanto a segunda, voltada à justificação do conhecimento, permaneceu no campo
filosófico. Posteriormente, a questão remanescente sobre o conhecimento a priori
sofreu uma nova divisão, gerando tanto problemas filosóficos quanto não filosóficos.
Entre os desdobramentos, surgiu a distinção entre proposições analíticas e
sintéticas. Para Kenny, a noção de analiticidade encontrou uma formulação precisa
nos trabalhos de Frege e Russell, por meio da lógica matemática. Já a pergunta
“A aritmética é analítica?” recebeu uma resposta matemática rigorosa no teorema
da incompletude de Kurt Gödel. Apesar desses avanços, questões residuais sobre
a natureza e a justificação da verdade matemática permaneceram em aberto,
constituindo os últimos focos de disputa filosófica. O seguinte esquema resume
essa versão do processo segundo Kenny:
problema
filosófico das
idéias inatas
fissão
questão psicológica sobre o problema filosófico de se saber o
papel da hereditariedade e quanto
de nosso conhecimento é
do meio ambiente na consti- a priori
tuição
de nossas idéias
fissão
questões lógico-matemá- questões filosóficas rema-
ticas
sobre a definição e nescentes sobre
a natureza
extensão da aprioridade e extensão do conhecimen-
em matemática to a
priori em geral
Não importa se você está de pleno acordo com o exemplo. O que importa é
que o modelo de desenvolvimento aqui sugerido faz sentido. Ele é aquele
em que os amplos e confusos problemas filosóficos iniciais acabam por se
dividir em partes. Umas se condensam em questões científicas, passíveis de respostas
consensuais, enquanto outras permanecem filosóficas. E o mesmo processo tende a
repetir-se com as questões filosóficas remanescentes, talvez até seu desaparecimento
completo, se este for o caso.
Quando consideramos o processo de fissão, o ponto
mais importante a ressaltar é que a perda de parte da filosofia para a ciência produz
mudanças que podem afetar toda a organização do campo remanescente da indagação
filosófica. Como o exemplo ilustra, após a fissão, a parte do problema que permanece
filosófica precisa ser reformulada, o que deve gerar novas conjecturas. Mas as
mudanças não permanecem circunscritas. Outros problemas relacionados, que pertencem
ao mesmo domínio de investigação filosófica, podem precisar ser acomodados ao
novo cenário, junto às suas respostas especulativas. Esse ajuste ocorre por meio
de uma reformulação mais ou menos profunda dos problemas e de suas respostas,
bem como de uma relocação de suas posições, ou seja, de suas relações relativamente
aos demais problemas e respostas no interior da filosofia.
Esse
último ponto pode ser elucidado por meio de um exemplo: a reformulação kantiana
do problema filosófico remanescente das ideias inatas, expressa em sua doutrina
sobre o conhecimento e os conceitos a priori,[26]
acabou por produzir reformulações subsequentes de questões acerca dos conceitos
de mundo, alma e Deus. Ao menos em sua filosofia teórica, Kant
deixou de conceber esses conceitos como designando objetos reais, passando a tratá-los
como ideias da razão: conceitos diretivos que poderíamos parafrasear
como sendo do tipo “como se” (‘als ob’, na metáfora de Hans Vaihinger).
Tais ideias, geradas pela própria estrutura da razão, são a priori, mas
elas não têm por função representar objetos, e sim orientar nossos processos
inferenciais “como se” tais objetos pudessem ser designados.
Assim,
devemos proceder intelectualmente como se o mundo externo fosse uma totalidade
causal fechada, de maneira a continuar perseguindo nosso conhecimento das cadeias
causais; devemos proceder como se houvesse um objeto permanente simples
(a alma), de maneira a poder perseguir um entendimento unificado de nossos fenômenos
psíquicos; e devemos proceder como se existisse um criador inteligente
(Deus) de toda a natureza – externa e interna – a ser entendida como um sistema
inteligível, de maneira a poder aprofundar nosso conhecimento da totalidade
natural. Como consequência dessa reformulação dos conceitos de natureza, alma e
Deus como ideias a priori diretivas, seguiu-se a relocação de suas
funções no interior do sistema conceitual de sua filosofia. Nesse novo contexto,
o conceito de Deus, por exemplo, já não precisava nem podia mais ser visto como
sendo o de uma entidade existente, a realizar as mesmas funções que, digamos, o
todo-poderoso Deus veraz tinha na filosofia “pré-crítica” de Descartes ou o papel
que Kant fez ele voltar a ter em sua Crítica da razão prática como instância
real justificadora da moralidade.[27]
6.
O NÚCLEO
RESISTENTE DE PROBLEMAS FILOSÓFICOS
RESIDUAIS: DUAS HIPÓTESES
Como resultado dos processos descritos, a filosofia tradicional tem se
contraído em um conjunto resiliente de questionamentos. Esses questionamentos certamente
incluem os das filosofias das ciências básicas, investigações de segunda ordem
que tomam essas ciências como objetos. Como essas filosofias dependem do desenvolvimento
dessas ciências, tendem a se desenvolver posteriormente a elas. Consequentemente,
não é desarrazoado supor que, com o tempo, essas filosofias venham a alcançar um
consenso como metaciência.
Contudo, o centro de gravidade histórico dos
questionamentos filosóficos, aquele cujo “status epistêmico” mais nos cabe investigar,
reside nas disciplinas tradicionais mais centrais, importantes e difíceis da filosofia,
a saber: a metafísica, a epistemologia e a ética. Esses domínios
centrais têm, até o momento, resistido à conversão em ciência, sendo importante
perceber a sua peculiaridade. Eles não se encontram no mesmo nível teórico das ciências
básicas, tampouco das filosofias das ciências.
O que
mais chama a atenção em disciplinas como a metafísica e a epistemologia é sua
extraordinária abrangência. No caso da metafísica, são abordados problemas
últimos, como os de propriedades, substância, existência, número, causalidade, espaço
e tempo, identidade, parte e todo… que dizem respeito ao mundo de modo mais geral,
envolvendo muitos, senão todos os objetos da experiência, tanto externos quanto
internos, atravessando, pois, os objetos de investigação de todas as ciências
básicas. Afinal, os objetos da física, da química, da biologia, da psicologia,
da sociologia, entre outros, também possuem propriedades, estão no espaço e no
tempo, seguem leis causais, são ditos existentes, são enumeráveis, etc., o que torna
esses itens objetos da metafísica.
No caso da epistemologia, a abrangência também
é notável, pois suas questões não dizem respeito a essa ou aquela forma específica
de conhecimento, como ocorre com as filosofias das ciências, mas ao conhecimento
em geral, incluindo o senso comum que chamo de modesto[28],
por exemplo, meu conhecimento de que agora estou sentado e que é noite.
Considerando
a dificuldade e a relevância desses domínios de investigação, a questão sobre
qual é a natureza da filosofia poderia, nesse ponto, ser substituída por outra
não menos importante: qual é a natureza própria das disciplinas centrais da
filosofia?
A questão mais séria relativa à ideia de
filosofia como antecipação da ciência não diz respeito ao fato indiscutível da
ciência ter se estabelecido a partir da filosofia, mas à extensão dessa
derivação. É possível que o conjunto remanescente de questionamentos filosóficos,
ou ao menos parte dele, pertença essencialmente à filosofia, resistindo a sua transformação
Filósofos divergem acerca disso.
Alguns, como Keith Lehrer, propuseram a hipótese progressista de que a filosofia
é “apenas o nome coletivo do pote de problemas ainda intocado pela ciência”.[29]
Para ele, o fato de que algumas questões filosóficas precisem aguardar mais de
dois milênios para encontrar uma resposta científica não implica que essa
resposta jamais seja encontrada.
Outros,
porém, mantêm-se mais reservados. Antony Kenny, por exemplo, defendeu, em seu
livro sobre a filosofia da mente em Tomás de Aquino, uma hipótese conservadora:
mesmo que a filosofia tenha, em seu passado, entregue à ciência partes de si mesma,
essas partes não eram genuinamente filosóficas. Só os problemas filosóficos remanescentes
e centrais são genuinamente filosóficos. Para Kenny, eles incluem a epistemologia,
a metafísica, a ética e a teoria do significado. Esses problemas permanecerão filosóficos
para sempre.[30]
Tentando justificar essa afirmação,
Kenny, influenciado pela ideia wittgensteiniana de representação panorâmica,
sugeriu que a filosofia, diversamente das ciências particulares, trata de nosso
conhecimento como um todo, objetivando organizar o que já sabemos
de maneira a nos prover-nos de uma sinopse, ou seja, de uma visão de
nosso próprio conhecimento em sua totalidade. Essa finalidade confere à filosofia
uma espécie de abrangência que não se encontra em nenhuma ciência particular.
Essa abrangência, argumentou Kenny, é a razão pela qual a filosofia da mente em
Aquino permanece de muitos modos relevante:
A filosofia é tão abrangente
em seu objeto de investigação, tão ampla em seu campo de operação, que a elaboração
de uma sinopse filosófica sistemática do conhecimento humano é tão difícil que só
um gênio pode fazê-la. Tão vasta é a filosofia que somente uma mente completamente
excepcional pode ver as consequências, mesmo dos mais simples argumentos e conclusões
filosóficas.[31]
A abrangência
exige aqui a figura do “gênio” filosófico, algo difícil de classificar e propício
à mistificação. Trata-se, ao que parece, do uso reflexivo e continuado de um
talento que une rigor lógico a uma sensibilidade quase artística, um talento mais
relacionado à boa integração das faculdades do que a alguma habilidade isolada,
dado que a filosofia não possui uma área específica. Para pessoas como Kenny e
Wittgenstein, os resultados desse tipo de pensamento dependem sobretudo de um
trabalho prolongado e ruminante, geralmente inconsciente, que é o de selecionar
de forma crítica, entre muitas ideias ruins, aquelas poucas que são boas, em
sua articulação com domínios mais amplos do saber. Trata-se de um processo
longo, independente e geralmente inconsciente.
Nietzsche explicou a assim chamada “inspiração”
do gênio como resultado de um acúmulo inconsciente de ideias que, subitamente, encontram
um meio de se se conectar, como se as comportas de uma represa intelectual fossem
abertas.[32] Foi exatamente
isso que aconteceu com Einstein em uma tarde de 1905, quando, em uma conversa
com um amigo, ele percebeu que o tempo não precisaria ser tradado como “absoluto,
fluindo uniformemente e independentemente de qualquer coisa externa”, como
propunha Newton.[33]
Obviamente, condições externas e internas minimamente
propícias precisam estar presentes para que essas epifanias aconteçam. Me
recordo de um comercial em que se via uma foto de Einstein com a pergunta: “O
que ele tinha que nós não temos? Resposta: o programa!” E vale lembrar que com
seu programa ele não fez mais nenhuma grande descoberta nos últimos quarenta
anos de sua vida.
No
que se segue, irei argumentar a favor da primeira e mais progressista hipótese,
embora não da maneira como você possa estar supondo.
7.
NOSSA IDÉIA
GERAL DE CIÊNCIA
Meu argumento, sugerindo que talvez todas as questões filosóficas mais centrais,
no final, sejam absorvidas pela ciência, não é de um tipo construtivo; não tentarei
demonstrar esse ponto, nem creio que tal demonstração seja possível. Mas pretendo
mostrar que a tese progressista, de que muitas problemáticas centrais da filosofia
podem acabar sendo absorvidas pela ciência pode ser demonstrada plausível, na medida
em que as razões aduzidas por filósofos pra rejeitá-la podem ser removidas.
Há duas razões profundas pelas quais
muitos filósofos vieram a rejeitar a ideia de que as áreas centrais da filosofia
são antecipadoras da ciência.[34]
A primeira é que, ao pensarem em ciência, eles têm em mente sobretudo as ciências
experimentais da natureza já bem estabelecidas. Consideram, nesse contexto, não
apenas as limitações metodológicas de ciências como a física, mas também seu caráter
empírico mais direto. Aceitar a tese progressista sobre a natureza da filosofia
parece comprometer-nos com uma concepção empobrecedora e redutiva do núcleo dos
problemas filosóficos remanescentes, uma concepção que parece roubar da filosofia
grande parte de sua abrangência e relevância, ao nivelar seus problemas com os
das ciências naturais. Concordar com a hipótese progressista parece, então, deixar-nos
sem nada, exceto alguma forma pedestre de cientificismo, intrinsecamente estreito
e inimigo da abrangência e da abstração às quais mais pertence o genuíno filosofar.
A outra
razão para desconsiderar a hipótese progressista reside na adoção implícita de concepções
da natureza da ciência que marcaram profundamente o século XX, como o positivismo
lógico vienense e a sua influência cultural. Filósofos da ciência só foram capazes
de construir teorias interessantes e detalhadas na medida em que tomavam como referência
as ciências mais desenvolvidas. No entanto, como nem todos os domínios científicos
se encontram em estágios avançados, e alguns sequer emergiram, tornou-se comum
que esses filósofos elegessem as ciências naturais, especialmente a física,
como modelos exemplares.
Esse procedimento
pode ser frutífero quando aplicado a essas ciências consolidadas, consideradas em
si mesmas. Não obstante, quando os resultados são interpretados como representativos
da ciência em geral, ou como produtores de um critério geral para a demarcação
do que pertence à ciência, válido para todos os futuros candidatos, a consequência
é uma concepção estreita e limitadora dos limites da ciência. Isso se evidencia
até mesmo em domínios de uma ciência natural básica como a biologia, como o evidencia
o critério popperiano de cientificidade, baseado na falseabilidade de nossas
teorias através de experimentos decisivos. Esse critério pode se aplicar de forma
razoável à física, sua ciência modelo, como no exemplo da medição da deflexão
da luz das estrelas pela curvatura do espaço-tempo, observada em casos de
eclipse solar, um experimento crucial para provar a teoria da relatividade geral
– um exemplo sempre lembrado por Popper. No entanto, quando aplicado a outras
áreas da ciência, esse mesmo critério se revela excessivamente exclusivo. Ele não
se aplica a teorias psicológicas e socio-históricas. Ele exclui até mesmo a teoria
biológica da evolução – uma teoria biológica cuja cientificidade ninguém hoje ousaria
negar. Afinal, que tipo de experimento seria capaz de falsificar uma teoria que
explica uma miríade de processos que se estenderam ao longo de milhões de anos
no passado? E, mesmo que se consiga testá-la indiretamente, o insucesso em passar
por um teste semelhante dificilmente seria interpretado como uma refutação decisiva.[35]
Por
razões como essas, penso que Popper estava certo quando afirmou que a sua metodologia
não era descritiva do que as pessoas (incluindo os cientistas) reconhecem como
pertencente à ciência, mas antes uma proposta: uma sugestão racionalmente
fundamentada, embora, ao que tudo indica, demasiado estreita e artificial, sobre
o tipo de investigação que merece ser chamada de ciência.[36]
A consequência da adoção de semelhante modelo
de cientificidade pelo filósofo é que ele já não pode mais admitir que a filosofia
funcione como antecipação da ciência. Afinal, é evidente que os núcleos centrais
da investigação filosófica, por sua própria natureza, jamais se tornarão capazes
de acomodar as exigências impostas por modelos desta espécie.
Contudo, penso que as duas razões recém-mencionadas
para desmentir uma generalização da hipótese progressista, não se aplicam ao nosso
caso. Pois ao sustentar que a filosofia desempenha uma função antecipadora da ciência,
não somos obrigados a restringir o uso da palavra ‘ciência’ a algo semelhante
às ciências particulares já estabelecidas. Tampouco somos compelidos a aceitar o
que os herdeiros do positivismo lógico nos contaram sobre como a ciência deveria
ser.
Na verdade, o que mais naturalmente nos vem à
mente quando contrastamos filosofia com ciência parece residir na oposição
entre o pensamento conjectural – próprio da filosofia, no qual não há possibilidade
de acordo sobre os resultados – e um empreendimento não-conjectural – característico
da ciência, onde é possível alcançar acordo sobre a verdade ou falsidade dos
resultados, permitindo assim o progresso. Ademais, a ideia da ciência como um
empreendimento não-conjectural produtor da verdade concorda muito bem com o
que nós – cientistas e pessoas cultas, naturalmente queremos dizer
com a palavra ‘ciência’.
De fato, ao julgar se uma teoria pertence ou
não ao domínio da ciência, não perguntamos, em primeiro lugar, se ela pode ser
submetida à confirmação ou à desconfirmação empírica (embora esse aspecto, como
veremos, também tenha sua relevância). O que primeiramente perguntamos é se
a comunidade científica é capaz, em princípio, de alcançar um acordo interpessoal
sobre o que considera a verdade ou a falsidade de seus resultados, mesmo
que tal acordo possa muitas vezes não resultar de alguma forma de verificação
(ou resistência à falsificação) por testes empíricos. A possibilidade de obter
resultados consensuais entre os cientistas é um critério mais geral e decisivo,
em contraste com os métodos pelos quais tais acordos podem ser efetivamente alcançados.
A
ideia de que o empreendimento científico possa ser definido tendo como base a sua
capacidade de gerar consenso me pareceu por demais plausível para ter passado despercebida.
Afinal, ideias originais em filosofia geralmente ou são falsas ou já foram alguma
vez pensadas. Assim, ao consultar a literatura, acabei por encontrar a defesa
de um ponto de vista similar por parte de John Ziman, um físico e sociólogo da
ciência. Já na década de 1960, Ziman destacou a centralidade dessa ideia ao sustentar
que o princípio unificador da ciência, em todos os seus aspectos, repousa “no reconhecimento
de que o conhecimento científico deve ser público e consensualizável”.[37]
Como ele escreveu:
O objetivo da ciência não é apenas adquirir informação, nem enunciar postulados
indiscutíveis; sua meta é alcançar um consenso de opinião racional que abranja
o mais vasto campo possível...[38]
Essa ideia pode ser compreendida como o critério identificatório mais
geral de ciência, qual seja, o conhecimento público consensualizável. Um
tipo de conhecimento público que é, ao menos em princípio, passível de obter
consenso quanto aos seus resultados entre os pares, o que não ocorre, de fato, com
a pseudociência nem com a filosofia.
Uma vantagem de se admitir tal critério seria
que ele nos liberta do compromisso estrito com modelos específicos de cientificidade
diretamente derivados de alguma ciência básica bem consolidada ou de qualquer
ciência já existente. Ao adotar um conceito aberto da natureza da ciência como
contraponto à conjectura filosófica, evitamos o risco de interpretá-la sob a ótica
do cientificismo positivista.
No que se segue, aprofundarei a concepção geral
da ciência esboçada preliminarmente por Ziman. Diversamente de filósofos como Karl
Popper, Imre Lakatos e outros, que se dedicaram ao problema da demarcação entre
ciência e não-ciência, não apresentarei uma proposta normativa: minha abordagem
será inteiramente descritivista. Pretendo resgatar a generalidade do sentido
técnico, acadêmico e culto da palavra ‘ciência’, ao tornar explícitos os
principais critérios pelos quais indivíduos cientificamente educados a reconhecem.
Trata-se, portanto, de um procedimento paralelo ao adotado pelo descritivista em
metafilosofia (cap. I).
Com efeito, se o enfoque descritivista nos leva
à ideia de que a filosofia é uma protociência no sentido de não ser capaz de gerar
consenso, então, por questão de paridade, a “ciência” da qual a filosofia seria
“proto-” deve ser igualmente tratada dentro de uma abordagem descritivista. Essa
abordagem está em consonância com a premissa de que a filosofia, por oposição, constitui
uma investigação incapaz, em princípio, de alcançar consenso autêntico quanto
aos resultados no tempo em que são produzidos.
De fato, não só os domínios centrais da filosofia,
como a metafísica, a epistemologia e a ética, têm historicamente se mostrado muito
aquém da possibilidade de alcançar consenso. Também áreas periféricas, como, digamos,
a filosofia da medicina, da computação, do cinema e do esporte. Essas, aliás,
são chamadas de filosóficas precisamente pela ausência de consenso entre suas facções.
O que se deixa sugerir é que uma explicação descritivista
da ciência constitui o modo mais coerente de imaginar o contraste entre filosofia
e ciência sob uma abordagem metafilosófica que seja ela própria descritivista. Somente
após termos explorado essa maneira de conceber a ciência com maior profundidade
é que poderemos avaliar se a concepção da filosofia como antecipação da ciência
possui algo de restritivo.
8. POR UMA CONCEPÇÃO NÃO-RESTRITIVA
DE CIÊNCIA
Meu objetivo aqui não será desenvolver uma caracterização descritivista
completa da ciência, baseada na análise dos critérios de demarcação realmente
usados pelos cientistas, mas sim tornar acessíveis seus fundamentos. A intenção
é explicitar – no propósito de contrastar ciência e filosofia – uma concepção da
natureza da ciência que podemos chamar de consensual-objetivista-progressivista.
Segundo essa concepção, o princípio unificador de toda a ciência é que ela consiste
em uma investigação avaliadora de verdades objetivas, possibilitando o progresso
por meio da obtenção de acordos consensuais autênticos entre os membros da comunidade
científica sobre os resultados dessas avaliações. Para explicar essa ideia em
profundidade e explorar suas implicações, podemos identificar três condições de
cientificidade, a saber:
(i)
PROGRESSIVIDADE,
(ii)
CONSENSUALIZABILIDADE,
e
(iii)
OBJETIVIDADE,
de modo que, como veremos, a condição (i) pressupõe (ii), que pressupõe (iii).
Essas condições são tão abrangentes que podem ser consideradas aplicáveis a todas
as ciências, tanto empíricas quanto formais.
Quanto à condição (i), de progressividade, ela
estabelece que, em seu período de desenvolvimento, uma ciência deva se comportar
como um empreendimento progressivo. Isso significa que suas teorias, uma vez
propostas, devam se demonstrar capazes de ser refinadas ou substituídas por outras
de maior poder explicativo, ou mesmo reforçadas por novas ideias e teorias que,
de algum modo, incrementem o poder explicativo do conjunto. Ademais, essa condição
implica que, no processo de sua constituição, uma ciência deve ser acumuladora
de conhecimento, no sentido de permitir à comunidade de ideias
reconhecer a verdade de um número crescente de proposições. Essa condição de progressividade
pode ser enunciada como:
C1: A ciência é um empreendimento epistêmico capaz
de revelar-se potencialmente progressivo e acumulador de conhecimento.
A condição aplica-se primordialmente à totalidade da ciência, concebida
como um conjunto estruturado e interconectado de ciências particulares – teóricas
ou aplicadas, empíricas (naturais e humanas) ou formais (lógicas e matemáticas)
– as quais são formadas por subáreas e feixes de teorias mais ou menos inter-relacionadas.
A condição
(ii) é central. Trata-se da consensualizabilidade possível percebida por
Ziman. É preciso notar que a condição C1 pressupõe a satisfação de C2. Esta, por sua vez, é prevalente e se aplica primariamente a teorias, a
hipóteses e sistemas de hipóteses que aspiram à cientificidade por serem ao
menos em princípio, susceptíveis de comprovação consensual. De modo derivado,
essa condição também se aplica aos corpos individualizáveis de conhecimento científico.
A condição de consensualizabilidade pode ser aqui enunciada da seguinte forma:
C2: A ciência é um empreendimento epistêmico por
meio do qual, ao menos em princípio, é possível chegar a um acordo consensual legítimo
sobre a verdade ou falsidade de suas teorias; um acordo a ser racionalmente alcançado
pela comunidade crítica de ideias que as propõe.
Para um entendimento adequado da condição S2 é necessária uma análise apropriada do conceito de comunidade crítica
de ideias que ela introduz. Esse conceito nos permite estabelecer quem está
legitimamente intitulado a avaliar ideias supostamente científicas e de que modo
essa avaliação é possível. Há razões para a introdução desse conceito, uma vez
que a ciência é inevitavelmente um empreendimento corporativo e a pesquisa científica
uma atividade social.
Se há
pessoas que não acreditam que a teoria da evolução natural tem recebido confirmação
suficiente, isso não invalida a crença de que pode haver um consenso científico
sobre a verdade dessa teoria, dado que esse consenso efetivamente existe. Da
mesma forma, se um governo totalitário decide rotular de ciência alguma ideologia
espúria, impondo um consenso obrigatório na comunidade científica (como ocorreu
na União Soviética com a genética de Lysenko), não concluiremos disso que essa ideologia
seja, de fato, científica. Tampouco acreditamos que uma comunidade de ideias que
fundamenta suas verdades na autoridade de escrituras sagradas ou nas visões de
adivinhos esteja operando como uma comunidade científica. Ainda que haja entre
seus membros um acordo, este será considerado aleatório e não racionalmente fundamentado.
O conceito
de comunidade crítica de ideias é fundamental para justificar tais conclusões, pois,
sem essa possibilidade, a condição de consensualizabilidade do empreendimento
científico estaria inevitavelmente comprometida. A exigência de que o consenso seja
estabelecido por uma comunidade crítica de ideias deve servir para assegurar a legitimidade
ou autenticidade do consenso, uma vez que consensos espúrios também são possíveis
fora do âmbito científico, por exemplo, entre astrólogos ávidos por aprovação. Tais
condições foram aproximadas por sociólogos da ciência, como R. K. Merton, e,
principalmente, pelo filósofo Jürgen Habermas. Quero antes considerá-las.
Para
Merton[39] a ciência
não existe sem colaboração social. Por isso, ela deve atender a quatro
princípios fundamentais que compõem seu ethos. A ciência deve ser: (1) universalista
no sentido de ser apanágio de todos os que possam contribuir para o seu desenvolvimento:
“raça, nacionalidade, religião, classe e qualidades pessoais são irrelevantes.
Objetividade exclui qualquer forma de particularismo.”[40] A ciência deve ser (2) comunista, no sentido
de ser propriedade comum da sociedade, com seus resultados não devendo ficar
restritos a indivíduos ou grupos. Ela deve ser (3) desinteressada no sentido
de ser buscada por pessoas que queiram contribuir para o bem comum e não para ganhos
pessoais, além de haver (4) ceticismo organizado no sentido de que todas
as alegações científicas devem ser criticamente examinadas de maneira neutra, sob
o preço de limitar o escopo da atividade científica. As condições, estabelecidas
por Merton objetivavam somente inventariar o ethos social da ciência.
Ainda assim, como veremos, não deixam de contribuir para justificar a legitimidade
do consenso científico.
Uma análise
que visava explicitamente conferir legitimidade ao consenso foi a proposta por
Jürgen Habermas em sua teoria consensual da verdade.[41] Sua sugestão
foi a de que a decisão sobre o que conta como verdade deve repousar em uma discussão
(Diskurs) conduzida sob o pressuposto de uma situação ideal de fala (ideale
Sprachsituation). Eu adiciono aqui as condições de Habermas às condições anteriores,
sem me importar com redundâncias:
(5) Acesso irrestrito ao discurso: Todos
os participantes devem ter o direito de participar do diálogo. Ninguém pode ser
excluído arbitrariamente.
(6) Igualdade de oportunidades de expressão:
Todos devem ter a mesma chance de apresentar afirmações, fazer perguntas, levantar
objeções e expressar necessidades ou desejos.
(7) Liberdade de expressão: os participantes
devem poder se manifestar sem coerção externa, ou seja, sem receio de punições,
manipulações, pressões sociais ou artifícios retóricos.
(8) Veracidade: os interlocutores devem
ser sinceros em suas intenções, guiados por propósitos veritativos,
isto é, por intenções que buscam a verdade. Mentiras ou manipulações comprometem
a validade do discurso.
(9) Compreensibilidade: a linguagem utilizada
deve ser clara e compreensível para todos os envolvidos.
(10) Justificabilidade racional: as afirmações
feitas devem poder ser justificadas racionalmente, permanecendo sempre abertas
à crítica.
Em
síntese, para ele o que deve prevalecer é a “força sem esforço do melhor argumento”
e não o argumento de autoridade. Embora esse conjunto de condições possa não
ser suficiente para garantir a verdade, ele é necessário: a verdade só pode
resultar de um consenso obtido por meio de um discurso livre de coerções, no
qual os participantes buscam o entendimento mútuo com base na força do melhor argumento,
e não por imposição de poder.
A teoria de Habermas não foi concebida para testar
os requisitos da ciência, mas para avaliar a pretensão de verdade em geral. No
entanto, ao nos restringirmos ao âmbito científico, podemos ainda invocar mais
duas condições:
(11) de competência: todos os participantes
devem ser igualmente bem treinados e informados sobre os temas que se propõem
discutir.
(12) de transparência: todos os participantes
devem ter o direito de receber toda a informação disponível.
O que chamei de comunidade crítica de ideias
nada mais é do que uma sociedade de ideias que satisfaz todas essas 12 condições
em grau suficiente. Digo “em grau suficiente” porque, quando considerarmos a
prática concreta da ciência, observamos que ela sempre falha em satisfazê-las integralmente.
Ainda assim, se essas condições não forem satisfeitas em grau suficiente, é certo
que a ciência, enquanto empreendimento corporativo, se tornará profundamente falha,
quando não impossível.
Nossa questão é: seriam essas onze condições (todas
elas bastante razoáveis), suficientes para garantir a legitimidade do
consenso científico? Considere a pseudociência dialética praticada por Trofim Lysenko
na Rússia de Stalin. Lysenko era um charlatão que rejeitava a genética clássica
e defendia a aquisição da herança genética pelas plantas, além de métodos inúteis,
como o de tratar as sementes com frio para forçar o crescimento. Stalin acreditava
cegamente em Lysenko e seu governo perseguia quem ousasse discordar. Os resultados
foram fracassos, sempre justificados por fatores estranhos à sua pseudociência.
Nós
diríamos que, na Rússia de Stalin, não existiam as condições para um consenso
autêntico, pois estavam ausentes as condições (5) de acesso irrestrito ao discurso,
(6) de igualdade de oportunidades de expressão, (7) de liberdade de expressão
(principalmente) e (8) de veracidade, conforme propostas por Habermas. Também as
condições mais gerais de Merton não foram, em parte, atendidas. Faltava a satisfação
das condições (2) de universalismo, (3) de desinteresse e (4) de criticismo organizado.
E mesmo a condição (11), de suficiente competência de parte dos participantes,
não era, obviamente, satisfeita, como consequência da ausência de satisfação das
demais condições.
Algo muito semelhante ocorreu com a “física ariana”
promovida pelo totalitarismo nazifascista, que rejeitava as contribuições de
cientistas judeus como Einstein e Niels Bohr. Seus defensores buscavam
substituir a “física judaica” pela “física ariana”, rejeitando a teoria da relatividade
e a física quântica. Aqui faltou principalmente a satisfação da condição (1) de
Merton, o universalismo, uma vez que excluía a colaboração dos cientistas da “raça”
judaica.
Que dizer, por comparação, de práticas como a
leitura de cartas, de bolas de cristal, ou da astrologia? Também elas dificilmente
satisfazem várias das condições acima. É praticamente impossível que satisfaçam
a condição (4) de criticismo organizado e a condição (10) de abertura à crítica.
Isso é fácil de demonstrar. Consideremos apenas a astrologia. Do ponto de vista
da física, a astrologia é absurda. Carl Sagan notou que a força da gravidade da
barriga do obstetra sobre o bebê no momento do parto é maior do que a da Lua nesse
mesmo instante. No plano metodológico, Carl Popper destacou um artifício recorrente
na astrologia: o recurso à vaguidade. Se as previsões forem suficientemente
vagas, mesmo que pareçam falhar, tornam-se passíveis de reinterpretação pelo
astrólogo, o que as torna irrefutáveis.[42]
James
Randi, o mágico profissional que se propôs a desmascarar as fraudes da pseudociência
e que ofereceu o prêmio de um milhão de dólares a quem provasse a existência de
forças ocultas paranormais e coisas do gênero, nunca conseguiu conceder o prêmio
a nenhum dos candidatos. Segundo Randi, embora algumas pessoas fossem realmente
charlatões, a maioria delas acreditava honestamente em seus poderes paranormais.
Em um experimento conhecido, Randi apresentou a uma classe de alunos uma folha
de papel para cada um, na qual, com base no dia e hora de seu nascimento, fazia
previsões astrológicas. A grande maioria dos alunos considerou as previsões acertadas.
Mas logo após, ele pediu que trocassem as folhas pelas dos colegas de trás e… surpresa!
Todas as previsões eram as mesmas.[43] A
experiência não só revela a inutilidade da astrologia, mas também a força da sugestão
e do autoengano na mente humana.
Parece,
pois, que juntando as 12 condições até agora consideradas, tornamo-nos capazes
de estabelecer uma distinção suficientemente sólida entre consenso legítimo e ilegítimo.
Como já foi notado, é importante enfatizar que
essas condições formam uma constelação ideal que nunca chega a ser completamente
satisfeita por nenhuma comunidade científica. Contudo, elas precisam ser preenchidas
ao menos em medida suficiente, dado que nenhuma comunidade científica pode
alcançar confiabilidade sem que elas sejam minimamente satisfeitas.
De
fato, ao aceitarmos uma descoberta científica como verdadeira (por exemplo, um
avanço na medicina), todos nós precisamos pressupor que tais critérios estão
sendo suficientemente satisfeitos: que os cientistas são honestos, que não estão
sendo pressionados a manipular dados, entre outros aspectos. Daí a importância
da replicação experimental por parte de outros laboratórios. Foi o que ocorreu no
caso da ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado com sucesso a partir de uma
célula adulta. Inicialmente, outros laboratórios não conseguiam repetir o difícil
experimento de clonagem. Foram necessários dois anos para que esse problema prático
fosse inteiramente resolvido.
Além
disso, o cientista envolvido em pesquisa deve conduzir seu trabalho sob a constante
suposição de que, em algum momento, seus resultados serão avaliados por uma
comunidade crítica de ideias, capaz de aplicar critérios que assegurem sua legitimidade
consensual. Essa suposição deve orientar uma avaliação pessoal contínua do que
está sendo produzido, mesmo que tal avaliação não se concretize, como aconteceu
com Gregor Mendel, ou talvez nunca se concretize, dado que o resultado de uma boa
pesquisa pode se perder como uma flor que nasce no deserto e nunca chega a ser
vista. Assim concebida, a condição C2 – de acordo consensual legítimo quanto aos resultados
– torna-se a exigência central para que possamos aceitar uma teoria como pertencente
ao domínio da ciência.
O acordo sobre a verdade ou falsidade das teorias
em uma comunidade crítica de ideias requer ainda uma terceira condição de
cientificidade, que trará alguma alegria aos filósofos da ciência mais
tradicionais. Como já notei, o acordo consensual sobre a verdade entre os membros
de uma comunidade de ideias só é possível se houver um acordo prévio quanto às assunções
relativas aos critérios e métodos de avaliação da verdade. Dessa forma, a possibilidade
de satisfação da condição C2 pressupõe
a satisfação de C3, uma exigência
material que a comunidade crítica deve atender para ser considerada científica.
Trata-se do que chamo de condição de objetividade, que pode ser formulada
da seguinte maneira:
C3: A comunidade crítica de ideias responsável pela
investigação científica deve se encontrar fundamentada em um acordo consensual prévio
sobre o que conta como pressupostos fundamentadores e metodologias
que servem à avaliação interpessoal das teorias nela desenvolvidas. O alcance de
um consenso legítimo sobre esses pressupostos confere objetividade ao discurso
científico.
O acordo sobre a verdade ou falsidade
de teorias exige, portanto, um acordo prévio consensual acerca dos pressupostos
fundamentadores que conferem objetividade ao discurso científico. Sem ambicionar
um esclarecimento exaustivo e entendendo por domínio epistêmico o conjunto
daquilo que pode ser tomado como objeto em uma área do conhecimento científico,
proponho a seguinte lista de pressupostos que, conquanto se demonstrem
aplicáveis, se tornam fundamentadores da objetividade científica em um domínio
epistêmico qualquer:
(i)
Pressupostos sobre o que pode ser contado como dados
elementares (empíricos ou formais), constitutivos do domínio epistêmico ao qual
a teoria pertence (no caso dos “dados formais” penso em axiomas);
(ii)
Pressupostos
sobre o que conta como procedimento de avaliação da verdade de uma teoria
em seu domínio epistêmico, incluindo o poder explicativo e a capacidade de previsão
(o que deve implicar algum tipo de correspondência com os fenômenos que a
teoria se propõe a explicar, prova no caso formal).
(iii)
Pressupostos sobre o que pode ser reconhecido como questões
adequadamente formuladas dentro desse domínio (a teoria deve responder a questões
significativas, relevantes etc.);
(iv)
Pressupostos sobre o que pode ser aceito como uma teoria
adequadamente construída no domínio epistêmico (tanto em sua consistência
interna quanto em sua coerência com o sistema de crenças que o constitui);
Esses pressupostos devem ser concebidos
como abrangendo um espectro de amplitude máxima.
A admissão desses fundamentos de objetividade permite
estabelecer uma ponte entre duas concepções de ciência: por um lado, a ciência
como um conhecimento passível de consenso público legítimo, obtido por uma comunidade
crítica de ideias; por outro, a concepção tradicional do método científico nas ciências
empíricas, entendido como indutivo-dedutivo ou hipotético-dedutivo.
Essa conexão se revela na coincidência entre
as condições da aplicação desses métodos científicos e os pressupostos de objetividade
nas ciências empíricas. Vejamos: o pressuposto (i) está associado à questão da generalidade,
ao poder explicativo das teorias científicas; o pressuposto (ii), à justificação,
à explicação, à capacidade de predição das teorias científicas; o pressuposto
(iii), à questão da simplicidade e clareza das questões formuladas; o pressuposto
(iv), à coerência e ao bom entrincheiramento das teorias.
São tais associações inevitáveis? Poderia
haver um acordo consensual legítimo, sem que condições de objetividade como
essas estivessem sendo satisfeitas, digamos, pela comunidade supostamente crítica
dos astrólogos, dos videntes de bolas de cristal e dos leitores de folhas de
chá? Penso que não. É indispensável que os pressupostos fundamentadores constitutivos
da condição de objetividade sejam satisfeitos para que uma comunidade crítica obtenha
consensos legítimos. É necessário, por exemplo, que a teoria tenha capacidade
de previsão (ou de prova) confirmada, o que está abrangido pela condição (ii).
Mas
dirá o cético: o que garante que tenha de ser assim? A resposta é que essa questão
apenas parece ser problemática, pois o cético espera uma solução a priori
– uma garantia lógica ou necessária – que, de fato, não existe. Trata-se aqui de
uma questão empírica e experiencial. Sabemos, por experiência, que o consenso legítimo
só é capaz de se formar quando as condições de objetividade são satisfeitas.
A necessidade de admitir condições de
objetividade e de que estas se demonstrem aplicáveis é uma verdade experiencial
incontornável, que comunidades críticas de ideias têm sido forçadas a aprender para
sua própria constituição. Os seres humanos simplesmente constataram, talvez a
contragosto, que o consenso legítimo só pode ser alcançado quando tais condições
são satisfeitas. O fato de a aceitação das condições de objetividade não
decorrer de uma exigência a priori explica a tentação que sentimos de prescindir
do esforço que ela demanda. Uma definição
de ciência que não reconheça essas condições experienciais de objetividade – que
variarão de um domínio da ciência a outro, da astrofísica à história social – estará
fadada ao dogmatismo.
O que acabo de apresentar pode ser denominado
uma definição progressivista-consensualista-objetivista do empreendimento
científico em geral. Assim compreendidas,
as condições de progressividade, consensualidade e objetividade constituem um critério
descritivista suficientemente confiável para a distinção entre ciência (seja empírica
ou mesmo formal) e não-ciência, bem como para o que não pode ser considerado
científico, independentemente de sua natureza. Diante disso, passemos agora a
examinar o que ocorre ao compararmos essa definição geral de ciência com nossa
caracterização do empreendimento filosófico.
9.
POR QUE CONCEBER
A FILOSOFIA COMO UM
EMPREENDIMENTO PROTOCIENTÍFICO?
O ponto
a ser destacado é que a concepção consensualista de ciência recém-exposta coloca
esta última em contraste direto com a filosofia. Diversamente da ciência, a
filosofia não é progressivista, nem consensualista, nem objetivista. Ainda assim,
ambas compartilham uma característica comum: a existência de uma comunidade
crítica de ideias, ainda que isso demande qualificações.
Tanto em filosofia quanto em ciência, uma certa
comunidade crítica de ideias deve ser pressuposta, mesmo que, por vezes, de modo
contrafactual. Um filósofo como Nietzsche escreveu por dez anos em isolamento, tendo
em mente, de modo contrafactual, uma futura comunidade de ideias capaz de avaliar
o que ele escrevia.
Uma das condições seria a de que os filósofos
tenham competência para suas atividades (11). Como essa competência não é a
mesma que a dos cientistas, algumas considerações precisam ser feitas acerca dela.
Uma de suas condições pode ser a familiaridade com o desenvolvimento da ciência,
ao menos em seus princípios, em sua relação com a área da filosofia investigada,
na medida em que esta existe. Não se pode admitir filosofia que contrarie verdades
científicas bem estabelecidas. Afora isso, a competência filosófica reside no domínio
de uma tradição de discussão crítica. Esse domínio pode ser restrito: Hume, por
exemplo, praticamente se encontrava restrito à tradição inglesa, na qual se inseria,
pois sabia pouco da tradição grega. Wittgenstein conhecia apenas o que aprendeu
ao lado de Russell e o que ouviu em Viena e em Cambridge, reagindo criticamente.[44]
O ideal, porém, é que o domínio da tradição seja o mais amplo possível, ao menos
no que importa ao domínio ou subdomínio considerado, como ocorreu com Aristóteles
e Kant.[45]
Desde Platão, fazer filosofia é alinhar-se, mesmo que criticamente, a uma
tradição.
Uma característica da comunidade crítica de
ideias na filosofia acadêmica é que, mesmo não sendo capaz de acessar diretamente
a verdade científica, é, pelo menos, capaz de identificar aquilo que a tradição
tornou improvável ou claramente falso, pois, a longo prazo, a exclusão das
ideias mais implausíveis é uma das poucas coisas de que a comunidade filosófica
pode se vangloriar. Além disso, filósofos supostamente buscam a verdade e se dispõem
(mesmo que aos resmungos) a submeter suas teorias filosóficas ao livre escrutínio
crítico de outros pensadores igualmente ou mais competentes, de modo a tentar satisfazer
um mínimo das condições de objetividade (a)-(d) constitutivas de uma comunidade
crítica de ideias. Finalmente, espera-se que a comunidade filosófica satisfaça
minimamente as 12 condições de legitimidade consensual listadas acima, mesmo
que seja incapaz de alcançar consenso sobre coisa alguma.
Como já se percebeu, a comunidade crítica de
ideias pode, em ciência, e certamente também, em alguma medida, em filosofia, sofrer
limitações, distorções e patologias. Um exemplo clássico em filosofia foi o da coação
religiosa na filosofia medieval: a condição (7) de liberdade não era satisfeita
em tudo o que, de algum modo, pudesse conflitar com os dogmas religiosos. Atualmente,
a filosofia anglófona enfrenta certas limitações, como o escolasticismo, o
cientificismo, o hermetismo, a fragmentação e a hiperespecialização. Aspectos
denunciados por Susan Haack como sintomas de uma comunidade acadêmica disfuncional.
O cientificismo pode se manifestar tanto como
um formalismo excessivo[46]
quanto como um empirismo objetivista excessivo.[47]
Ele está intimamente ligado à fragmentação e à hiperespecialização em filosofia,
pois, para mimetizar, filosoficamente, um domínio científico, precisamos
hipostasiá-lo, excluindo tudo o que possa colocá-lo em questão. Em um mundo em
que o conhecimento se avoluma muito além de nossa capacidade de assimilação,
especializar-se torna-se uma matéria de sobrevivência intelectual – dividir para
conquistar, e nisso, o reducionismo torna-se a palavra de ordem. Contudo, essa disfuncionalidade
arrisca-se a turvar as condições de consenso legítimo de (1) a (12), mais apropriadas
à prática filosófica.[48]
Importa notar que, embora se trate de uma comunidade
crítica de ideias limitada, fundada em uma tradição de conhecedores da matéria
e das áreas adjacentes, as reflexões dos filósofos não têm sido capazes de
satisfazer nenhuma das três condições de cientificidade aqui consideradas:
faltam progresso linear, consenso e objetividade. Isso nos permite caracterizar
a filosofia de modo puramente negativo, como um empreendimento veritativo realizado
sob o suposto de uma comunidade crítica de ideias na qual tais condições não chegam
a ser satisfeitas. As condições negativas incluem, primeiro:
NC1: A filosofia falha em satisfazer a condição de
progressividade C1,
pois
não é um empreendimento progressivo capaz de acumular
conhecimento de maneira linear.
Timothy Williamson defendeu,
com razão, uma visão incremental da filosofia, segundo a qual ela progride
por meio do aumento do rigor argumentativo, do refinamento gradual e da acumulação
de insights.[49] Isso é bastante
óbvio. Mas há algo mais. Para além disso, são perceptíveis pequenos progressos
substanciais, na medida em que ideias outrora consideradas plausíveis se tornam
hoje pouco palatáveis ou arcaicas, o oposto podendo ocorrer com ideias que já
foram vistas como desinteressantes ou implausíveis. O Timeu, obra teológico-especulativa
escrita na velhice de Platão, foi a mais influente na Antiguidade e na Idade
Média, por razões óbvias. Após a Renascença, porém, a República passou a
ser redescoberta como o diálogo mais importante, devido à argumentação racional
e dialética sobre as doutrinas centrais do sistema platônico.
Outro exemplo diz respeito à chamada revolução
copernicana de Kant. Ao formulá-la, ele acreditava que a geometria euclidiana e
as leis da física newtoniana eram verdades absolutas. Com base nisso, acreditou
que ao recorrer aos juízos sintéticos a priori que as constituíam, tornávamo-nos
legisladores do universo – ou seja, a estrutura da realidade se conformava às
condições de nossa intuição sensível e entendimento, como que por milagre
divino. Menos de um século depois, essa visão começou a se desfazer. Novas geometrias,
como a hiperbólica e a elíptica, foram desenvolvidas, desafiando a
exclusividade da geometria euclidiana. Pior do que isso: em 1915, Einstein
reformulou a ideia de gravitação com sua teoria da relatividade geral,
demonstrando que, na proximidade de corpos massivos o espaço-tempo obedece a uma
geometria riemanniana elíptica – e não à euclidiana. Nem as leis de Newton nem
a geometria euclidiana eram capazes de dar conta do mundo real com suficiente
precisão. Com isso, muito do ímpeto da revolução copernicana perdeu força: já
não somos os legisladores do universo, mas intérpretes de uma realidade capaz
de exceder as molduras naturais de nosso entendimento.
Esse movimento de avanço, mais por
estreitamento de possibilidades, não é de modo algum linear, como ocorre, por exemplo,
na biologia. Ele tem sido quase imperceptível, composto por progressos e retrocessos
parciais. Trata-se de um arrastado acúmulo de hipóteses – algumas pontualmente
corretas – sem que saibamos ao certo quais estão de fato certas ou em que medida.
Em geral, o melhor que a filosofia, enquanto filosofia, tem conseguido, tem
sido afastar hipóteses demasiado implausíveis, uma vez que quando se torna objeto
de certeza, ela deixa de ser filosofia. Como certa vez notou Bertrand Russell, filósofos
são como os “Pais Peregrinos”, que iam sempre mais para o Oeste, fugindo da civilização,
aqui entendida como a ciência, que, ao despontar, põe fim ao labor filosófico ao
submeter a imaginação à razão. Diversamente do cientista, o filósofo busca preservar
para si um espaço para o exercício livre da imaginação.
Em filosofia,
o que se acumula de positivo é um conteúdo hipotético no sentido de que nossas
conjecturas filosóficas podem ser tornadas mais complexas, aumentando em número
e mesmo em plausibilidade. Ela acumula um número cada vez maior de verdades
possíveis, o que tende a tornar as malhas da rede de possibilidades especulativas
em seus diferentes domínios sempre mais estreitas.
O caráter acumulador de hipóteses, mas não necessariamente
de conhecimento, comum à filosofia, é facilmente perceptível ao compararmos diferentes
teorias filosóficas do passado. Considere, por exemplo, os sistemas de Kant e de
Hegel. Kant foi um idealista transcendental e um realista empírico, com preocupações
essencialmente epistemológicas sobre nossa estrutura cognitiva e seus limites. Hegel,
por sua vez, foi um idealista absoluto, interessado numa filosofia do processo,
centrada na evolução histórica da humanidade e das culturas morais, estéticas e
religiosas. Cada sistema parece iluminar diferentes esferas especulativas; cada
um deve conter alguma verdade, e, juntos, devem conter mais verdades do que
isoladamente.
O problema
é que não estamos em posição de dizer com suficiente certeza onde essas
verdades se encontram, em que medida, tampouco excluir dúvidas céticas sobre elas,
e, menos ainda, comparar os sistemas de modo conclusivo. Se tentarmos comparar,
por exemplo, a filosofia de Demócrito com a de Parmênides, ou a de Spinoza com a
de Leibniz, encontrar-nos-emos próximos ao domínio da incomensurabilidade.
As razões
da incomensurabilidade são facilmente explicáveis: um primeiro filósofo parte do
grupo de premissas (A) para chegar a (M) um outro filósofo inicia do grupo de premissas
(B) para chegar a (N). Mas ninguém tem como comparar nem os valores de (A) e (B),
nem os valores dos procedimentos para obter os resultados (M) e (N). Ao menos até
o final do século XIX, essa descrição é perfeitamente apropriada.
A filosofia se distingue da ciência por não ser
capaz de satisfazer as condições C1, C2 e C3. A
condição C1, de ser um empreendimento
progressivo, não tem sido satisfeita pela filosofia porque ela não satisfaz a sua
pré-condição, que é a de consensualidade. Daí que com relação a C2, para
a filosofia vale:
NC2: A filosofia falha em satisfazer a condição de consensualidade
C2, uma vez que nenhum acordo sobre
a verdade ou falsidade
de suas hipóteses pode ser alcançado dentro de
sua comunidade
crítica de ideias.
E isso acontece porque, de um modo ou de outro, a condição de objetividade
não chega a ser minimamente satisfeita:
NC3 A filosofia
falha em satisfazer as condições de objetividade C3,
posto
que o filósofo não é capaz, diante da comunidade crítica
de ideias, de estabelecer pressupostos fundamentadores
sobre
os
quais haja consenso.
Com efeito, o filósofo não é capaz de satisfazer os quatro pressupostos
fundamentadores da objetividade. Ele não é capaz de:
(i)
alcançar
aceitação geral quanto ao que pode
ser contado como dados elementares nos domínios epistêmicos da filosofia;
(ii)
assegurar
a outros filósofos que as suas
questões não são basicamente enganosas ou meros pseudoproblemas;
(iii)
obter consenso sobre a adequação de suas teorias (coerência interna
e externa);
(iv)
desenvolver
procedimentos de avaliação da verdade, isto é, argumentos aceitáveis por todos os especialistas, que demonstrem
que a sua teoria está em conformidade com o que ela pretende explicar, seja qual
for a sua natureza.
Como em termos de satisfação, C1 depende de C2, C2 de C3 e C3 dos pressupostos (i)-(iv),
fica claro que, em última instância, a filosofia não se configura como ciência,
pois não é capaz de satisfazer, de forma suficiente, as condições de objetividade
exigidas. No caso da antecipação das ciências, isso significa que a filosofia, em
seu tempo, não foi intrinsecamente capaz de satisfazer às condições impostas
pelos métodos científicos. Afinal, são as condições de progressividade, consensualidade
e objetividade, que expandem o horizonte científico para muito além do que antes
parecia possível.
Concluímos, pois, que essas três condições —
progressividade, consensualidade e objetividade — são as que correspondem
exemplarmente aos critérios que empregamos intuitivamente ao distinguir o que
pertence ao domínio da ciência daquilo que permanece restrito ao campo da filosofia.
O primeiro as satisfaz; o segundo não.
10. ALGUMAS
CONSEQUÊNCIAS DO QUE FOI PROPOSTO
Ao tratarmos a filosofia como um empreendimento antecipador da ciência, a
adoção da concepção geral da ciência recém-exposta conduz a alguns desdobramentos
interessantes.
Primeiramente,
como os critérios propostos para definir o que pode ser considerado ciência deixam
em aberto os modos concretos pelos quais uma investigação pode vir a ser considerada
científica, a identidade mesma da investigação que haverá de nascer da atividade
filosófica permanece
Podem terminar caindo sob essa concepção ampliada
de ciência, mesmo teorias especulativas de grande alcance – como a lei dos três
estágios de Comte, a tese de Max Weber sobre o desencantamento do mundo e suas
consequências, a metapsicanálise freudiana, a tese da dessublimação repressiva
de Herbert Marcuse... Para isso, bastaria que fossem reforçadas e até mesmo
corrigidas por outras descobertas, constitutivas de um pano de fundo de informações
e métodos que as tornassem capazes de alcançar acordo consensual em uma comunidade
crítica de ideias.
É nesse ponto que vale considerar
o conceito de consiliência (com = juntos, siliens = salto:
“salto conjunto”). Esse conceito foi criado por William Whewell em 1840 para
indicar a convergência de induções provenientes de diversas classes de fatos.
Esse conceito foi revivido no século XX por E. O. Wilson, que o entendeu como a
síntese dos fatos e das teorias de diferentes disciplinas, visando à formação
de um entendimento unificado da realidade[50].
Em seu livro, Wilson mostra como diferentes domínios da ciência, natural e
humana, se encontram conectados de modo a se reforçarem mutuamente. Finalmente,
o conceito de consiliência foi aplicado à filosofia por Susan Haack. De acordo
com ela:
O que eu quero dizer é que existe um mundo real, um “universo pluralista”,
para tomar de empréstimo a frase de James, e que todas as verdades sobre esse mundo
complexo e variado, de algum modo, se combinam.[51]
O pressuposto da unidade da realidade funciona aqui
como um ideal normativo: se admitimos que a realidade é unificada, então
as teorias científicas devem ser capazes de se complementar e reforçar
mutuamente em sua relação com a verdade. Um exemplo mais proeminente, dentre
muitos outros, é o da genética molecular. Ela corrobora os achados da genética
mendeliana, que, por sua vez, corroboram e são corroborados pela teoria da
evolução natural, a qual, por sua vez, é corroborada por dados paleontológicos
e geológicos.
A inovação
de Haack consistiu em aplicar a ideia de consiliência às teorias filosóficas. Se
diferentes subáreas da filosofia possuem elementos de verdade e se interligam, então,
pelo princípio da consiliência, esses elementos devem se reforçar mutuamente. Aplicando
a ideia de consiliência à suposição de que a filosofia é protociência, isso significa
que ideias pertencentes a áreas de conhecimento complementares a um certo domínio
da filosofia, sejam elas filosóficas ou não, devem ser capazes de reforçar as ideias
verdadeiras pertencentes a esse mesmo domínio e, por contraste, enfraquecer as ideias
falsas.
Essa assunção nos leva a uma conclusão provocadora:
a sobreposição de verdades vindas de múltiplas direções é capaz de apertar os nós
da teia do conhecimento, de modo a aproximar gradualmente resultados
inter-relacionados da especulação filosófica de um consenso legítimo sobre sua
verdade, ou seja, da ciência, entendida aqui como saber consensualizável e
objetivo. Se aceitarmos essa ideia, então muito do pensamento filosófico,
especulativo ou não, pode, em princípio, tornar-se científico, na medida em que puder ser reconstruído, depurado
e desenvolvido de modo a permitir um acordo consensual legítimo realizável sobre
o que nele com razão se pretende verdadeiro, sem ter de ser para isso fragmentado
ou forçadamente reduzido ao que ele não é.
Mesmo uma concepção filosófica da natureza da
filosofia, como a que está sendo desenvolvida no presente livro, poderia deixar
de ser meramente filosófica para se tornar científica caso, ao ser aplicada a
si mesma, se revele capaz de alcançar consenso legítimo quanto aos seus
resultados. Suponha-se, por exemplo, que a concepção de filosofia como, em
grande parte, uma protociência antecipadora da ciência, em conformidade com a
concepção progressivista-consensualista-objetivista aqui esboçada, resista às críticas
e possa ser desenvolvida de forma mais adequada e completa. Suponha, ainda, que,
no futuro, essa concepção venha a ser confirmada pela emergência de novos campos
científicos que substituam gradualmente nossas atuais conjecturas. Uma consequência
disso será que uma comunidade crítica de ideias acabará por aceitar a verdade da
ideia de que (i) a característica mais geral da filosofia é a de não ser passível
de obter consenso legítimo e objetivo quanto aos seus resultados; e (ii) ao menos
em seus centros de gravidade mais tradicionais, ela se configura como uma protociência
no sentido de ser capaz de se transformar em um campo susceptível de acordos consensuais
autênticos, tornando-se, assim, cientificamente inobjetável. A ideia de que a filosofia
é protociência terá, nesse caso, satisfeito a condição geral de cientificidade que
ela própria estabeleceu.
Como já foi notado, uma consequência relevante
de nossa concepção de ciência, no que tange à filosofia, é que ela justifica alternativas
a peripécias cientificistas regressivas. Em muitos casos não precisamos eliminar
a abrangência de nossas visões filosóficas ao admiti-las como substituíveis por
uma diversidade de teorias científicas. Algo diverso disso também pode ser esperado.
Ao refletir sobre a interdependência dos problemas filosóficos mais centrais da
filosofia (como os da metafísica, da epistemologia, da filosofia da mente, da teoria
da ação, da ética...) recordo a observação de um filósofo, possivelmente
Wittgenstein, segundo o qual a dificuldade da filosofia reside no fato de que seus
problemas são tão interligados que um problema só poderá ser inteiramente resolvido
quando todos os outros também o forem. Embora essa observação seja exagerada,
ela revela uma maneira pela qual nossos problemas filosóficos centrais podem dar
lugar à ciência: não por meio da construção de teorias diretamente demonstráveis
pelos fatos empíricos que pretendem explicar, mas por meio da consiliência, ou
seja, por meio do suporte que teorias são capazes de oferecer umas às outras, pela
sua cooperação explicativa, pelo melhor entrincheiramento do que elas possuem de
verdadeiro e, finalmente, por sua concordância, por mais indireta que seja, com
os fatos.
Há, finalmente, algumas conclusões a extrair da
constatação de que, em muito da investigação filosófica, o suporte interteorético
advindo da consiliência é capaz de prevalecer como meio de avaliação da verdade.
A
primeira conclusão é que há poucas razões para abandonar a crença otimista de que,
mesmo em domínios aparentemente refratários da tradição filosófica, cedo ou
tarde seremos capazes de encontrar um caminho para um acordo consensual legítimo,
mesmo que seja por meio de completas reconstruções, transformações e rejeições,
ou ainda por desfazer problemas por meio de uma crítica (“terapia”) da linguagem.
A existência de apenas cinco ciências básicas parece reforçar essa expectativa.
Por outro lado, há casos como as filosofias do processo – entre elas, a filosofia
política – cuja verdade, dependendo de uma história humana imprevisível, contraria
a possibilidade de alcançar um estágio de consenso generalizado.
A segunda conclusão é que, à luz do princípio da
consiliência, não há razão para se esperar que os problemas centrais da
filosofia se dispersem em uma multidão de mini-teorias sem qualquer expectativa
de consenso. Ao contrário, espera-se que eles sejam respondidos por teorias mais
ou menos abrangentes e interconectadas entre si através da consiliência. Nesse
cenário, apenas a forma conjectural dos problemas tenderá a desaparecer e não
tanto a sua abrangência.
Uma terceira conclusão, indicada pela interdependência
reforçadora da pretensão de verdade das teorias, é que não podemos desqualificar
tentativas filosóficas em áreas como epistemologia, metafísica e ética, apenas
por analogia com o que aconteceu com muitas conjecturas filosóficas antecipadoras
de ciências como a física, a química ou a biologia, as quais se mostraram simplesmente
demasiado rudimentares ou errôneas, conservando apenas um valor histórico residual.
Nas ciências
naturais, a começar pela física, ocorreram rupturas epistêmicas profundas, separando
a emergência desses corpos científicos da indagação filosófica pré-científica que
a antecedeu, geralmente falsa e não consensualizável. Consideremos, por
exemplo, o que está acontecendo com o conceito aristotélico de substância material,
que é constituída de matéria e de um princípio definidor que ele chama de forma.
Essa chave explicativa foi explorada de forma eficaz na investigação hilomorfista
da construção de objetos materiais por Kathrin Koslicki[52],
com base em uma discussão implicitamente dependente da consiliência, o que a aproxima
da verdade. Isso indica ser plausível supor que a transição dos domínios centrais
da filosofia para a ciência ocorra de forma mais gradual, uma vez que envolve aperfeiçoamentos
e correções de ideias inter-relacionadas, sem o salto abrupto para o inteiramente
novo.
Isso implica que a especulação filosófica em
seus domínios centrais, como, digamos, a teoria da substância em Aristóteles,
sua ética, o cogito cartesiano, a teoria relacional do espaço em Leibniz, a
teoria das qualidades primárias e secundárias em Locke, a teoria dos conceitos
em Kant… pode, como sempre se suspeitou, permanecer ainda de grande relevância
para os tempos atuais.
Ainda que
não saibamos exatamente como avaliar tais verdades, é plausível que elas se acumulem
ao longo do tempo, até que consensos suficientemente robustos permitam corrigir
erros, excluir confusões e promover, de forma mais urbana e discreta, aprimoramentos
convincentes. Reconhecer esse fenômeno é importante para compreender o valor das
disciplinas filosóficas fundamentais em sua dimensão histórica, frequentemente
negligenciadas pelo cientificismo positivista.
11. FILOSOFIA ANALÍTICA: DA
DECADÊNCIA AO DESASTRE
Diversos autores
têm apontado para o declínio da filosofia analítica anglófona, uma vertente que
conquistou o mundo nas últimas quatro décadas, suplantando as filosofias continentais,
alemã e francesa.[53] Os
sintomas desse declínio podem ser descritos como escolasticismo,[54] cientificismo,[55]
hermetismo,[56] fragmentação,[57] hiperespecialização[58] e
superficialização.[59]
A pecha de escolasticismo é a estagnação. Pressupostos
teóricos provenientes do passado são aceitos dogmaticamente, enquanto os debates
se concentram em distinções abstratas e técnicas, voltadas à criação de complexidades
artificiais que nunca ousam desafiar a assim-chamada “sabedoria herdada”. Faltam
inovações disruptivas. O último filósofo ainda vivo de que me lembro ter produzido
inovações disruptivas é Jürgen Habermas.
Mas
o escolasticismo é um efeito, não a causa. A raiz do problema está no
cientificismo. Vivemos em uma sociedade em que a ciência e, ainda mais, a
técnica ocupam um espaço cada vez maior. As pessoas creem na ciência como os antigos
criam nos deuses. O problema surge quando a mentalidade cientificista transborda
para a filosofia. Embora a filosofia possa – e deva – valer-se dos avanços
científicos, ela não pode ser absorvida pela ciência atual sem se desfigurar, precisamente
pela alteridade de seu potencial científico. Wittgenstein, ainda na década de
1930, após conviver com os positivistas lógicos (físicos, lógicos, economistas...),
que buscavam transformar a filosofia diretamente em ciência, tal como a
conheciam, resumiu sua crítica ao cientismo nas seguintes palavras:
Filósofos constantemente veem o método da ciência
diante de seus olhos e são irresistivelmente tentados a fazer e responder
questões do mesmo modo que a ciência faz. Essa tendência é a fonte real da
metafísica.[60]
A tentativa de valorizar
a filosofia, fundamentando suas ideias por meio de recursos emprestados de novos
domínios técnico-científicos, sejam eles formais ou empíricos, revela uma postura
tipicamente reducionista. Nesse processo, a filosofia resultante tende a excluir
tudo o que lhe é incompatível, como se não tivesse relevância. Essa insularidade,
esse “por entre parênteses”, que abstrai a verdade do contraditório, permite à
teoria cientificista tornar-se autônoma, autorreferente em suas avaliações, desvinculada
de sua relação com o restante do saber e, dessa maneira, com o próprio saber.
Como já
notei (cap. I), o reducionismo pode ser produtivo, como o foi, por exemplo, no
pensamento de Kripke. Mas há limites: uma vez feita a exclusão, torna-se muito fácil
prosseguir, subdividindo o domínio teórico em novas subespecialidades cuja
plausibilidade só pode ser questionada externamente – isto é, a partir do que
já foi excluído. Abre-se, assim, um terreno fértil para a fragmentação. Sem consiliência,
cada campo teórico cientificista-reducionista passa a evoluir isoladamente, sem
diálogo com os outros na medida em que não se deixam mais suportar uns aos outros
sob o suposto da consiliência.
O resultado é a hiperespecialização: o desenvolvimento
de subteorias cada vez mais distantes de qualquer resultado plausível, que se
tornam contraproducentes por serem construções sem relevância e incapazes de
nos conduzir a algum lugar. Como Susan Haack resumiu:
A hiperespecialização impede o
progresso em vez de possibilitá-lo, pois significa que tempo e energia são inevitavelmente
desperdiçados em um nicho de problemas que não irão sobreviver às teorias de meia-boca
que lhes deram origem.[61]
Para explicar
como a hiperespecialização filosófica se desenvolve, Haack cunhou a expressão “especialização
prematura” para designar a forma mais prejudicial de cientificismo fragmentador
do campo do conhecimento. Como ela notou, a especialização é bem-vinda nas
ciências, cujos fundamentos sólidos permitem avanços cumulativos. Já na
filosofia, a especialização prematura ocorre porque seus fundamentos, embora
dogmaticamente aceitos por seus praticantes, carecem de solidez. O resultado é
que as “hipóteses curiosas” que esses filósofos inventam não conduzem a lugar algum,
além de ocupar seus adeptos por um bom número de anos, os quais ela ironicamente
descreve como cliques autopromotoras (“panelinhas, nichos, cartéis e feudos”), cartéis
de citação entre pares e produtores de literatura de nicho, só acessíveis aos seus
cúmplices... Ao final, escreveu ela, o tédio se instala e a “hipótese curiosa” é
substituída por uma nova conjectura igualmente estéril,[62] sem
que qualquer problema fique resolvido.
Pior ainda é quando essas mini-teorias persistem,
subdividem-se por fissão e se multiplicam indefinidamente, gerando uma proliferação
de mini-mini-teorias. Um exemplo emblemático é a teoria metalinguística da referência
de nomes próprios na filosofia da linguagem. Segundo essa proposta, formulada há
décadas, um nome próprio se refere por meio de uma descrição do tipo “o portador
de N”, sendo N o próprio nome. Trata-se de uma ideia claramente insuficiente, pois
não distingue um nome próprio dos demais: todos são feitos para designar um possível
portador. Tudo o que alguém aprende ao ouvir que o portador do nome ‘Aristóteles’
é aquele a quem o nome ‘Aristóteles’ se refere é que o nome serve para designar
um particular. Mas isso não esclarece em nada como usamos esse nome para se
referir a Aristóteles.
Apesar disso, proliferam ainda hoje dezenas
de variações teóricas derivadas desse palpite inicial – implausível e reducionista
– sustentando uma discussão especializada que só não soa fútil aos especialistas
que nela investiram anos de dedicação. Fenômenos semelhantes podem ser encontrados
no interior de outros domínios da filosofia, como a metafísica, a epistemologia
e a filosofia da mente, entre outros.
O
problema com esses procedimentos é que eles não são tão inócuos quanto parecem,
posto que eles além de não serem mais do que exercícios intelectuais que
permitem a filósofos acadêmicos discutir, escrever e publicar, muito facilmente
bloqueiam o surgimento de inovações disruptivas capazes de reconfigurar todo o
campo de investigação ao refazer os fundamentos, uma vez que tais inovações seriam
destrutivas para toda uma indústria de questiúnculas filosóficas.[63]
Antes
de prosseguir, preciso fazer um pequeno aparte para lembrar que estou me restringindo
à discussão de inovações disruptivas. Inovações não-disruptivas costumam
ser bem acolhidas, pois são facilmente avaliáveis e não ameaçam o trabalho dos
especialistas nem a hierarquia intelectual. Por isso, ainda é possível encontrar
excelentes estudos históricos e investigações pontuais que constam, por exemplo,
na Stanford Encyclopedia of Philosophy.
Voltando
ao que estava dizendo, embora se possa admitir que esses procedimentos sirvam
para “sustentar a conversação” (“keep the conversation going”, no dizer
de Richard Rorty), possuindo ao menos um valor motivacional, na prática eles têm
funcionado cada vez mais como obstáculos, e não como estímulos, à produção de desenvolvimentos
internos verdadeiramente disruptivos, os únicos realmente indispensáveis.
Tenho
uma experiência pessoal que ilustra bem esse ponto. Refiro-me ao meu livro How
do Proper Names Really Work?, um trabalho que considero inevitavelmente disruptivo,
publicado em 2023. Trata-se do resultado final de uma investigação que começou por
volta de 2007 e da qual resultaram várias outras publicações.[64] Creio
ser ele um exemplo concreto de como toda uma crescente plêiade de hipóteses e teorias
resultantes de especialização precoce em teoria da referência pode ser desmantelada
por meio de uma cuidadosa reconfiguração dos fundamentos teóricos tidos pela mainstream
como intocáveis, incluindo, aí, o legado de figuras sacralizadas como Saul Kripke.
Curiosamente, a teoria complexa que emergiu dessa investigação nada tem a ver
com a forma fragmentária, por vezes altamente formal e abstrata, à qual estamos
habituados. Tampouco se encaixa em moldes conhecidos, aproximando-se, porém, da
ciência, não por mimetismo metodológico cientificista, mas pela densidade
explicativa, pela coerência interna e pela ausência de artifícios reducionistas.
É impossível explicar essa teoria aqui em
qualquer detalhe, mas posso dar uma vaga ideia. Ela se fundamenta em esquemas
de regras para a identificação de nomes próprios, que substituem os antigos feixes
de descrição e mostram-se extremamente flexíveis na sua aplicação. Quando devidamente
associados a nomes próprios, esses esquemas são preenchidos por descrições definidas
que os transformam em designadores rígidos, o que acaba por dissolver o contraste,
fundamental para Kripke, entre nomes próprios como designadores rígidos (que se
referem ao mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual ele exista, como ‘Aristóteles’)
e descrições definidas como designadores acidentais ou flácidos (que se referem
a diferentes objetos em diferentes mundos possíveis, como ‘o marido de Pithias’[65]).
Por exemplo: o nome ‘Aristóteles’ (ou equivalente) passa a ser resumido pela seguinte
descrição definida complexa que serve como expressão de sua regra de identificação:
a pessoa que satisfaz (i) suficientemente
e (ii) mais do que qualquer outro candidato, (iii) a sua condição
localizadora de ter nascido em Stagira em 384 a.C., filho do médico da
corte, viajado para Atenas aos 17 anos, tendo estudado junto a Platão pelos próximos
20 anos, etc. e/ou sua condição caracterizadora de ter escrito o opus
aristotélico, etc.”
Essa
regra-descrição (aqui muito resumida) é suficientemente flexível para
identificar Aristóteles em qualquer mundo possível em que ele possa ser definidamente
dado como existente, o que torna o nome ‘Aristóteles’ um designador rígido. Já as
descrições definidas são designadores acidentais apenas enquanto associadas à
regra de identificação do nome próprio. Isso explica por que descrições definidas
que não podem ser associadas a nenhum nome próprio tornam-se designadores
rígidos. Por exemplo: “A raflésia descoberta pelo Dr. Joseph Arnold em 20 de maio de
1818” é uma descrição definida que não se associa a nenhum nome próprio, aplicando-se,
por isso, à mesma flor em qualquer mundo possível no qual ela exista, o que torna
essa descrição rígida.
Outras
descrições, como ‘o tutor de Aristóteles’ e ‘o fundador do Liceu’, são
meramente auxiliares – em geral úteis apenas para que os falantes, que em geral
não sabem o suficiente sobre Aristóteles, consigam inserir corretamente o nome no
discurso e, nesse sentido estendido, “referir-se” a ele.
O que distingue essa teoria em termos de
cientificidade é sua operacionalidade: se a regra de identificação de um nome próprio
for implementada como programa em um computador, juntamente com os dados relativos
às condições de aplicação por ela possivelmente requeridas, posso apostar que o
sistema será capaz de reconhecer o portador do nome. Isso seria impraticável para
as teorias anteriores, dependentes de fundamentos ainda precários, oriundos de
um dos dois campos opostos, liderados, respectivamente, por John Searle (internalismo
descritivista, com viés empirista) e Saul Kripke (externalismo causal-histórico,
com viés formalista).
Por
fim, a diferença em relação às teorias de orientação formal, como a de Kripke e
a minha, pode ser comparada àquela que existe entre o computador digital, que
opera com elementos discretos, e o computador analógico, que trabalha com quantidades
contínuas. Nosso cérebro é um computador analógico – e assim também deve ser uma
teoria da referência, introduzindo elementos de indeterminação inevitáveis ao
ato referencial.
Uma
curiosidade: até onde sei, o livro de 2023 não recebeu qualquer atenção dos especialistas
na área, que são quase todos externalistas. Suponho que por não ter vindo de cima
para baixo em uma hierarquia que, há muito, se tornou infértil... O editor da De
Gruyter, Christopher Schields, me escreveu que a Notre Dame Philosophical
Review (o mais influente jornal de reviews que existe), norte-americana, praticamente
não faz reviews da alemã De Gruyter. Reclamei por carta ao editor do
jornal, enviando-lhe o original. Ele se desculpou, me prometeu enviar o livro à
comissão editorial... Naturalmente, fiquei a ver navios... sentindo-me como o personagem
de Kafka em “O Castelo”, o que não me acontece raramente. Corporativismo? Manutenção
do status quo da mainstream anglo-americana formalista com
injunções políticas? O fato é que as comunidades filosóficas são exclusivistas.
Fico pensando no efeito cultural repressivo da originalidade em países culturalmente
colonizados como o Brasil, que só fazem importar o que vem de fora. Mas isso não
importa. O fato é que com isso a sociedade crítica de ideias filosóficas anglófona,
como outras, não satisfaz certas condições de legitimidade consensual para além
de suas fronteiras. Afora isso, o caso exemplifica, indiretamente, um efeito do
que Haack denunciou. A filosofia fragmentária, feita de palpites teóricos que se
acumulam e se multiplicam em discussões cada vez mais escolásticas, acaba por se
tornar uma barreira à avaliação e aceitação de teorias filosóficas robustas e realmente
mais próximas da ciência.
Contra
a conclusão de que a filosofia analítica se encontra em estado de estagnação, um
estudante me objetou que há novidades, como a lógica do grounding, o knowledge-first
e o enativismo, que seriam, afinal, aquisições significativas! Trata-se,
porém, de mais uma ilusão que nos faz recordar o dizer de Wittgenstein de que uma
época pequena tende a enxergar o mundo a partir de sua própria, minúscula perspectiva.
Mas vejamos…
É verdade
que a lógica do grounding oferece instrumentos mais precisos para a compreensão
de uma ideia já presente em Aristóteles. Embora relevante para a lógica, sua aplicação
filosófica está longe de ser disruptiva.
O Knowledge-First remonta ao livro de Williamson
sobre conhecimento[66], cuja tese fundamental é que
o conhecimento não é analisável. Trata-se, em meu juízo, de uma confusão elefantina.
Não se pode negar que Williamson é sofisticado; ou reinventa lugares comuns (como
no caso de seu argumento da antiluminosidade) ou se apoia em confusões já bem
estabelecidas, que turvam a verdadeira noção de conhecimento.
Uma delas é o externalismo epistêmico, que, se
bem considerado, acaba por nos conduzir de volta a alguma forma mais refinada
de internalismo. Considere, por exemplo, o confiabilismo, a interessante
ideia de que o conhecimento é o resultado de processos cognitivos que se mostraram
confiáveis. Ele permite a uma terceira pessoa B saber que A sabe que p por
ter seguido um caminho cognitivo confiável, do qual A esqueceu ou mesmo nunca
chegou a adquirir consciência. Mas B sabe que A sabe que p porque B
conhece esse caminho confiável que lhe serve de justificação interna para
saber que A sabe que p. Mais além, A não pode saber que p, a menos que tenha tido
acesso, mesmo que inconsciente, ao caminho confiável, que, como tal, lhe serve também
como justificação em última análise interna.
Considere, para exemplificar, o caso dos
sexadores de pintos: pessoas que sabem o sexo dos pintos recém-nascidos apenas
por manipulá-los. Muitos deles sequer sabem por que acertam o sexo dos pintos,
mas o procedimento se demonstrou confiável em quase 100% dos casos. Temos aqui
mais um exemplo de procedimento que se justifica externamente por ser confiável.
Mas, bem considerados, os sexadores de pintos possuem uma boa justificação para
dizerem que sabem o sexo provável do pinto. Ela é simples: o
procedimento sempre se demonstrou confiável. Mas essa justificação é, obviamente,
interna, mesmo que derivada da experiência de uma regularidade externa.
Do fato
de que as raízes do conhecimento são externas, não se segue que o conhecimento,
enquanto tal, deva possuir qualquer componente externo, não mental. Essa é uma falácia
genética que vale ainda mais para o externalismo semântico.[67] A outra falácia é o célebre
e, em meu juízo, já bem respondido argumento de Gettier.
Quanto ao argumento de Gettier, ele parece refutar
a tradicional definição tripartite de conhecimento como crença verdadeira justificada
ao apresentar casos nos quais justificações razoáveis não tornam a crença verdadeira.
A resposta não é difícil. Basta uma leitura atenta do primeiro capítulo do livro
Pyrrhonian Reflexions on Knowledge and Justification, de Robert Fogelin,
complementada pelo artigo do autor do presente livro, que aprofunda e contextualiza
as ideias com maior rigor.[68] Ali se encontra a
verdadeira solução do problema de Gettier, que emerge de uma reformulação dialógica
mais complexa e refinada da velha definição tripartite. O ponto é que a justificação
oferecida por um falante A para seu conhecimento de p precisa ser aceita
como suficiente para tornar a proposição verdadeira por parte de um avaliador
B, que possui informação mais completa no momento de sua avaliação (o avaliador
B pode ser o próprio A em um momento posterior).[69]
Quanto ao enativismo, no que tem de verdadeiro,
ele já existia muito antes, quando Jean Piaget investigou o estágio sensório-motor
(1936), sem precisar, como fazem os enativistas contemporâneos, rejeitar o papel
da representação simbólica, mas admitindo-a como fundamental.
Considere agora o seguinte argumento
da mente estendida[70], geralmente aceito pelos
enativistas que acreditam que a mente não se restringe ao que acontece dentro
do cérebro. Considere o exemplo: A pessoa A se recorda da data de um concerto. A
pessoa B, que não tem boa memória, anota a mesma data em seu caderninho. Com base
nessa informação, ambos, A e B, assistem ao concerto. A conclusão do teorista
da mente estendida é (1): o que está no caderno de B constitui parte de sua crença,
da mesma forma que a lembrança de A! O corolário do teorista da mente estendida
é (2), derivado de (1): o caderninho com a data é uma parte da mente de B,
só que localizada fora do corpo de B!
O problema é que reconhecer que
a mente é capaz de se utilizar de recursos externos – da calculadora à inteligência
artificial – capazes de auxiliá-la e até aumentar exponencialmente suas
possibilidades, o que é evidente, não é o mesmo que afirmar que esses recursos
externos fazem parte da mente. A impressão de um “achado” decorre aqui de
um abuso da linguagem: uma projeção antropomórfica primitiva, que remete aos
tempos do homem paleolítico, que acreditava que as plantas continham espíritos.
Só que ceder a semelhante tentação, em nossa época, é uma atitude intelectualmente
infantil.
Nada disso me força a discordar da mensagem de
Haack, em sua essência. O atual sistema acadêmico de filosofia, segmentada[71] e de meia-boca, longe de
tornar as pessoas mais críticas, as limita e entorpece.
O diagnóstico final é de decadência
ou, como Haack prefere, de um verdadeiro “desastre intelectual” cujas raízes estão
no desaparecimento da inovação filosófica profunda nas universidades detentoras
da hegemonia na produção científico-cultural. Ainda assim, permanece legítima
a esperança de que a filosofia – por sua própria natureza, quase
inevitavelmente disruptiva – renasça como a fênix de suas cinzas. (Lembrando que,
para que isso aconteça, é preciso que a fênix seja antes consumida pelo próprio
fogo.)
Haack identificou bem as causas próximas dessa
decadência – as causas remotas, creio eu, são de outra ordem. Ela notou que, antes
da Segunda Guerra Mundial, sobrava espaço para publicações nas revistas filosóficas.
Imperava uma ética segundo a qual só se publicava quando se tinha algo importante
a dizer. A ideologia do publish or perish, hoje multiplicada pela Internet,
alterou radicalmente esse cenário, praticamente paralisando a possibilidade do inesperado,
que ultrapassa a avaliação quase automatizada de editores limitados pela sua própria
hiperespecialização (que editor hoje aceitaria uma obra no estilo do Tractatus
Logico-Philosophicus? Não temos mais um Gilbert Ryle como editor de Mind).
Junto a isso, Haack notou sintomas de corrupção intelectual, como a publicação
de “artigos salame” (escritos por múltiplos autores) e de incentivos perversos,
que podem, em nosso caso, ser exemplificados pelas ridículas “olimpíadas de
filosofia”. Ela também notou que a universidade americana atual é cada vez mais
gerida por CEOs, que precisam mostrar resultados e forçar a todos o engajamento
com a pesquisa. Com isso, a filosofia passou a ser tratada como se fosse uma ciência
em progresso, pior ainda, como se fosse uma investigação técnica em constante
desenvolvimento: todos precisam ser filósofos e produzir inovações.
Contudo, onde todos precisam ser filósofos,
ninguém pode ser filósofo. A filosofia, em seu sentido mais elevado, exige
compromisso intelectual, tempo para o ócio criativo, cultura ampla e diversificada,
longa aquisição de conhecimento em projetos que podem exigir muitos anos de reflexão,
além de, creio eu, um certo talento. Um sistema que exige produtividade constante
em projetos compartilhados torna esse ideal inviável. O resultado é uma persiflage
minimalista do verdadeiro labor filosófico – o que todos podem fazer sem grande
preparo.
É como
se todos os que estudam música fossem obrigados a compor, ou como se todos os
que estudam pintura devessem ser pintores. Isso é possível, em ponto pequeno. Mas
Beethoven e Michelangelo foram não só pessoas particularmente dotadas (em potencial
deve haver muitas!), mas sobretudo conscientemente e inteiramente comprometidas
com um ideal de grandeza e perfeição estéticas[72],
sustentado por um meio propício ao seu florescimento, o que, em alguma medida, vale
também para Platão e Aristóteles, Kant e Hegel, e para qualquer filósofo contemporâneo
que aspire à filosofia como expressão de uma cultura superior.
Talvez valha aqui lembrar o que aconteceu
com a filosofia, e mesmo com a ciência austríaca e alemã após a Segunda Guerra
Mundial. Embora Paris fosse o centro das artes na primeira metade do século XX,
Viena era o centro da ciência e da cultura em geral, particularmente a Universidade
de Viena. Com o advento do nazismo, os seus melhores cientistas, em grande parte
judeus, tiveram de emigrar. Freud, vienense, refugiou-se da Inglaterra; Karl Popper,
na Nova Zelândia; os participantes do Círculo de Viena, em sua maioria, nos Estados
Unidos... Kurt Gödel, o gênio matemático que formulou os teoremas da incompletude,
embora não fosse judeu, era próximo de intelectuais judeus e foi atacado em 1939
por jovens nazistas no centro de Viena. Sua esposa, Adele, o salvou corajosamente
com o auxílio de um guarda-chuva, e creio que também foi graças a ela que ele acabou
conseguindo pousar a tempo em Princeton, onde se juntou a Albert Einstein. A Universidade
de Viena foi assim esvaziada de seus talentos.
O mais curioso, porém, é o que aconteceu depois
da guerra. Após a guerra, nenhum deles foi convidado a retornar a Viena. Os que
os substituíram, por um misto de vaidade, inveja e medo de expor a própria mediocridade,
não desejavam voltar a viver à sombra de pessoas muito mais talentosas. Os poucos
que ousaram regressar, como o grande físico Erwin Schrödinger, foram mal recebidos
pela comunidade acadêmica. O resultado foi devastador: tendo perdido suas cabeças,
a Universidade de Viena nunca mais conseguiu recuperar o nível anterior. Algo semelhante
também aconteceu com as universidades de língua alemã. Também é curioso o fato
de que os dois melhores filósofos alemães da segunda metade do século XX, eu diria,
Habermas e Tugendhat, nasceram e passaram suas infâncias antes da guerra, um
período em que o clima cultural ainda era profundamente diverso.
O que esses
exemplos revelam é que a cultura que forja os seres humanos é algo frágil,
difícil de surgir e ainda mais difícil de preservar. Se a estrutura hierárquica
da universidade não se renovar de maneira criativa, ela deixará de ser uma fonte
viva de inovação cultural. E se isso vale para as ciências[73],
vale ainda mais para uma atividade tão suspeita como a da filosofia, que serve
ao aprimoramento do intelecto crítico e facilmente precisa tomar para si o papel
de questionar o inquestionável.
Como a crítica
à filosofia atual é um tema delicado que não se enquadra no objetivo do
presente texto, não desejo me alongar sobre ele. Lembro apenas do breve estudo
de Harry Frankfurt sobre o fenômeno por ele denominado bullshit, definido
como a produção de construções intelectuais por vezes extraordinariamente complexas
e sofisticadas, mas sem qualquer compromisso com a verdade. Trata-se, segundo
ele, de um efeito colateral da ampliação do acesso à cultura, que gerou um contingente
cada vez maior de pessoas que, embora cultas, não têm nada de relevante a dizer.[74]
Obviamente, não estou querendo dizer que o impasse
atual da filosofia analítica anglofônica (praticamente a única que restou) decorra
de má-fé ou da leviandade de fabricantes de bullshit, ainda que muitos
de seus produtos se aproximem muito disso. A explicação é mais profunda. É mais
justo pensar que um grupo social desvirtuado por um sistema conduz à inconsciência
desse mesmo desvirtuamento por parte dos indivíduos que a ele pertencem, o que
pode levá-los a produzir trabalhos improfícuos sem a menor consciência do fato.
Freud fez um estudo sobre o fenômeno da crença religiosa, que ele considerava
uma neurose de repetição coletiva, notando que, ao ser compartilhada por
muitos, a neurose coletiva se fortalece.[75]
Considere, por exemplo, a prioridade que a comunidade filosófica contemporânea atribui
à complexidade em relação à plausibilidade. Mesmo Kant já havia notado que essa
prioridade é falsa, mas ninguém parece perceber. Além disso, trata-se de uma história
de decadência iniciada nos bairros mais nobres da cidadela filosófica, uma vez que
a decadência começa sempre de cima. Mas aqui temos outro problema: o que é a decadência
da cultura filosófica?
Um caso de decadência cultural foi inigualavelmente
descrito por Edward Gibbon, em sua história do declínio e queda do Império Romano:
A autoridade de
Platão e Aristóteles, de Zenão e Epicuro, reinava ainda nas escolas; e seus sistemas,
transmitidos com cega deferência de uma geração de discípulos a outra, frustravam
qualquer tentativa generosa de exercer os poderes ou ampliar os limites da mente
humana. Os primores dos poetas e oradores, em vez de se inflamarem por si mesmos,
inspiravam apenas frias e servis imitações… O nome de “poeta” fora quase esquecido;
aquele de “orador” foi usurpado pelos sofistas. Uma nuvem de críticos, compiladores
e comentadores obscurecia a face do saber, e, em breve, seguiu-se ao declínio do
gênio a corrupção do gosto.[76]
A decadência da filosofia analítica tem ocorrido
de forma algo diversa do que foi descrito na passagem acima, embora com as mesmas
consequências. Eis como posso resumi-la.
No início, havia os filósofos de primeira linha,
os fundadores da filosofia analítica: Frege e Wittgenstein, os dois únicos gênios
no topo, seguidos por Russell – pessoas suficientemente inteligentes para poder
dialogar com Leibniz. Eles pertenciam a um mundo à parte, ainda extremamente hierárquico
e elitista (no melhor e, certamente, também no pior sentido). Um mundo marcado pelo
abismo sociocultural que levou às Guerras Mundiais e cujas contradições forneceram
o fermento necessário aos grandes feitos culturais da primeira metade do século
XX.
Depois, vieram os filósofos de segunda linha,
gente como os positivistas do Círculo de Viena, como Rudolf Carnap e, entre os
ingleses, A. J. Ayer, que fizeram muito no sentido de desvirtuar a sabedoria
herdada dos primeiros. A crítica mais medonha foi a rejeição do princípio da verificação
proposto por Wittgenstein, que eles não souberam compreender, mas que legaram aos
tempos atuais como parte da “sabedoria herdada”.
Então vieram os filósofos analíticos americanos,
com intenções mais pragmáticas. Eles decidiram viver de desafios à lá Hume,
ainda que muito inferiores. Gente como W. V. O. Quine, seguida por Saul Kripke e
Hilary Putnam, todos eles também filósofos de segunda linha, ao menos pelo simples
fato de que seu brilhantismo intelectual era empanado pela limitação do comprometimento
com o que faziam. Esses filósofos desenvolveram estratégias inteligentes e imaginativas
para afrontar a sabedoria herdada dos já desaparecidos filósofos de primeira linha,
propondo suas próprias teorias formalmente inspiradas, reducionistas e em
grande parte equivocadas – a marca patognomônica do erro consistia aqui no caráter
profundamente anti-intuitivo de seus desafios – razão pela qual ninguém mais quis
ouvir falar da “terapia linguística” de Wittgenstein ou de uma “meramente lexicográfica”
filosofia da linguagem ordinária. Não digo, pois, que não eram brilhantes. Mesmo
John Searle e Ernst Tugendhat – isolados defensores das velhas ideias – não estavam
preparados para refutá-las eficazmente.
Com a aceitação dessas objeções, uma nova “sabedoria
herdada” se instalou. Refiro-me, por exemplo, à rejeição do verificacionismo, às
teses da indeterminação da tradução e da inescrutabilidade da referência, à rejeição
da distinção analítico-sintética, a invenções como as do necessário a posteriori
e do contingente a priori, à função referencial da cadeia causal-histórica externa,
à eliminação da definição tripartite do conhecimento com base no problema de
Gettier, ao externalismo semântico e epistêmico, sem falar em coisas ainda bem piores
como, digamos, o dialeteísmo.[77]
Ao lançar esses desafios sem mais encontrarem quem fosse capaz de devidamente criticá-los,
esses filósofos retiram os fundamentos sobre os quais se poderia erguer qualquer
reflexão mais aprofundada – perdeu-se a força integradora gerada pela consiliência
–, abrindo um imenso espaço para a especulação infundada, superficial e desenfreada,
cada vez mais distante de qualquer coisa que pudesse ser chamada de plausível.
O resultado,
agora, com os filósofos de terceira, quarta e até de qualquer linha despontando
em multidões, é que qualquer invenção, por mais rasa que seja, será prontamente
aceita, desde que siga os padrões estabelecidos pela mais recente “sabedoria herdada”
e se encaixe em algum nicho de “hipóteses curiosas”. Afinal, da mesma forma como
não se pode produzir nada de útil sobre bases falsas, delas também tudo pode se
seguir. Com isso, a filosofia tornou-se, enfim, “democrática”: um jogo fácil e acessível
a um número cada vez maior de praticantes, inconscientes e descompromissados.
O que
se percebe, por sobre essa desatenta coletivização de “hipóteses curiosas” – frágeis
e equivocadas – é um jogo vazio e fútil, cuja irrelevância passa despercebida internamente,
mas será prontamente percebida de fora por qualquer observador minimamente lúcido.
Aqueles que preservam a integridade intelectual e possuem discernimento suficiente
para não se deixarem enganar, manterão distância. Assim, o que restará na linha
de frente criativa serão seres impérvios em sua desconexão com a realidade, dotados
de imaginação e capacidade computacional, um atributo que não deve ser confundido
com a inteligência, aqui entendida como a “capacidade de apreensão da verdade”.[78]
Chegamos
agora às causas mais distantes do declínio. Se o processo continuar, o que poderá
restar, não só em filosofia, é o que Max Weber vislumbrou como o possível
desfecho do desencantamento do mundo (Entsauberung der Welt): um avanço
contínuo da racionalização, burocratização e dessacralização da vida humana, que
tem a ver com a cultura de massa resultante do chamado capitalismo tardio,[79]
que agora conquista espaço no mundo acadêmico. Weber via esse destino como
sendo o do último homem da “noite polar da mais gélida escuridão”[80],
que ele definiu como: “Especialista sem espírito, sensualista
sem coração, uma nulidade que ainda assim imagina ter conquistado um nível de
humanidade nunca antes alcançado.”[81] Em
filosofia, essas realizações intelectuais poderão muito bem culminar em um enxame de microfilosofias a turvar a face do
saber.
Deve o futuro de nossa filosofia
terminar em uma Alta Idade Média, como terminou a decadência romana descrita por
Gibbon? Não necessariamente! Afinal, Weber também acreditava na possibilidade de
autorregeneração da cultura como chave para a abertura da jaula de ferro da racionalização/burocratização
imposta pelo desencantamento do mundo no interior da sociedade capitalista, por
meio de “um grande renascimento de velhas ideias e ideais”.[82] Como consequência, a presente falta de inovações
disruptivas na filosofia não precisa ser vista como destino.
Na
segunda parte do seu artigo, Susan Haack propôs o caminho alternativo, que, na
verdade, eu mesmo venho tentando seguir. Ela destacou a importância de um tratamento
abrangente dos problemas e de um procedimento por aproximações sucessivas. Em
vez de dividir para conquistar, conquistar para não precisar dividir. Como Wittgenstein
certa vez observou para si mesmo:
Não se envolva em problemas parciais, mas sempre alce voo para onde há
visão livre do todo, do grande único problema, mesmo que essa visão ainda não seja
clara.[83]
Afora isso, há algo que a hiperespecialização contemporânea tornou quase
impossível, mas que, para a produção de inovações disruptivas, é essencial: o desenvolvimento
de uma cultura filosófica sólida, o que significa, no mínimo, conhecer em
profundidade os principais clássicos como parte da formação intelectual, além da
aquisição de uma cultura humanista e científica abrangente em seus
fundamentos. Platão sugeriu, em sua República, que as pessoas começassem
estudando matemática e outras matérias, acumulando até mesmo a experiência prática
da vida real, de modo que só após os cinquenta alguém poderia se tornar o rei-filósofo.
A filosofia vinha depois.
Uma razão frequentemente considerada para as dificuldades
contemporâneas da filosofia é o fato de que o aumento exponencial do nosso conhecimento
tenha tornado esse movimento impossível. Ou talvez não! Afinal, o que tem progredido
exponencialmente não é tanto a ciência quanto a tecnologia. E quem sabe se uma
crise social suficientemente séria para ser saudável, aliada à IA e a outros
progressos tecnológicos, não salvará a alta cultura de seu opróbrio? Afinal, como
Hegel, por força de ter vivido uma época de grandes conflitos políticos e religiosos,
bem percebeu: “A necessidade da filosofia só pode nascer em épocas de crise,
quando o poder de unificação desaparece da vida dos homens e as oposições,
perdendo a sua viva semelhança e a reação recíproca, se tornam independentes.”[84]
[1] Considere o seguinte parágrafo da Metafísica:
“E quando consideramos
o todo, tal e tal forma realizada nessas carnes e nesses ossos, de modo que
esse é Cálias ou Sócrates, eles são diferentes em virtude de sua matéria
(pois ela é diversa em indivíduos diversos), mas são o mesmo na forma; pois
a forma é indivisível.” Metafísica 1034a 5-8 (meus
itálicos). Ora, se a forma é indivisível, ela precisa poder participar
de uma diversidade de substâncias. Para uma exposição das recaídas platônicas de
Aristóteles, ver W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy, vol. V.
cap. XIII. Ver também A. E. Taylor, Aristotle.
[2] A. Kenny, Aquinas on Mind, cap. 1, p.
4.
[3] J. L. Austin, Philosophical Papers,
p. 232.
[4] O livro intitulado How to do Things with Words foi
publicado postumamente em 1962.
[5] Philosophische Untersuchungen, I, sec. 126.
[6] Como eles queriam explicar tudo pela matemática, eles
constituem um exemplo de reducionismo na antiguidade.
[7] Ver Auguste Comte, Cours de Philosophie
Positive, Oevres, vol. I. Não sigo a sua classificação em detalhes, posto que ele
cometeu ao menos dois erros evidentes: a inclusão da astronomia (uma ciência aplicada)
entre as ciências que chamo de básicas e a exclusão da psicologia, que ainda era
praticamente inexistente como ciência em seu tempo. Os princípios de classificação,
porém, permanecem válidos.
[8] Uso a expressão ‘ruptura epistêmica’ pela falta
de outra, uma vez que ela é geralmente entendida como ocorrendo dentro, e não
no início, de uma ciência.
[9] J. R. Searle notou que é um erro acreditar que, porque
objetos da experiência interna têm um modo de existência ontologicamente subjetivo,
eles também devem ser epistemicamente subjetivos, impedindo seu acesso pela ciência.
Exemplos: dor, prazer, experiências visuais, crenças, intenções... são fenômenos
ontologicamente subjetivos, mas epistemicamente objetivos. Ver seu Mind, Language
and Society: Philosophy in the Real World, pp. 43-45.
[10] Fragmento 2, Diels-Kranz 28 B2.
[11] Aristóteles, Metafísica 1005b 19 ss.
[12] Note-se que a formalização dos princípios apenas convida
à confusão.
[13] Aristóteles, Física, livro
VI, 2.
[14] G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schofield, The Presocratic Philosophers, pp.
133-134.
Ver discussão
[15] Karl Popper, “Back to the Pre-Socratics”, em
seu livro, Conjectures and Refutations, p. 138.
[16] Anthony Kenny, A New History of Western
Philosophy, vol. I, p. 25.
[17] O primeiro a desenvolver essa hipótese, hoje
em descrédito entre os cosmólogos, foi R. C. Tolman em seu clássico Relativity,
Thermodynamics, and Cosmology, sec. 174, p. 439 (1934). A sugestão de Tolman
é hoje questionada, tendo surgido outras ainda mais ambiciosas e igualmente hipotéticas
como a do Big-Bang causado pelo choque entre membranas tridimensionais.
[18] G. S. Kirk, J. E. Raven & M. Schonfield
(eds.), The Presocratic Philosophers, pp. 140-142.
[19] Ver Anthony Kenny, A New History of Western
Philosophy, vol. I, pp. 22-23. Para a saudação de Charles Darwin, Kenny remete
o leitor ao apêndice da sexta edição de The Origin of Species.
[20] Platão, República, IV, 446a ss.
[21] Platão, Phaedrus 246a ss.
[22] Paul D. McLean: The History of Neuroscience in Autobiography, vol.
II, cap. 20.
[23] S. Freud, The Ego and the Id.
[24] Ou seja, naquilo
que em sua Física não era metafísica e também em Dos Céus.
[25] Aquinas on Mind, pp. 4-5.
[26] Conhecimento a priori é, para Kant, aquele
que é independente da experiência sensível, além de necessário e universal. Kritik
der Reinen Vernunft, Einführung. B 1-3.
[27] Como é sabido, a existência de Deus, da Alma e da liberdade
foi para Kant, postulada pela razão prática, ainda que não pudesse sê-lo pela razão
pura. Para ele a moralidade dependia da aceitação desses postulados. (Ver a segunda
parte da Crítica da Razão Prática.) Sobre essa mudança Russell notou sarcasticamente
que, embora Kant tenha sido acordado de seu sono dogmático por David Hume, ele
logo descobriu um sonífero que lhe permitisse dormir outra vez, acrescentando
que a maioria das pessoas nunca consegue se libertar das verdades auridas no
ventre materno. Cf Bertrand Russell: A History of Western Philosophy.
[28] Trata-se aqui de uma referência, não ao senso comum ambicioso
que se contradiz com a ciência (como “O sol gira em torno da terra” ou “o tempo
é sempre o mesmo para qualquer observador”), mas ao senso comum do dia-a-dia, que
é pressuposto até mesmo para que possamos fazer ciência, como “meu corpo existe”,
“Há outros seres humanos” ou “A terra existe há muito tempo”. Ele é contínuo à ciência,
que seria impossível se rejeitássemos seus pressupostos. D. M. Armstrong o chamou
de senso comum mooreano, em referência ao artigo de G. E. Moore, “A Defense of
Common Sense.” Ver Claudio Costa, Philosophical Semantics: Reintegrating
Theoretical Philosophy, cap. II. Ver também “The Long Arm of Common Sense”,
de Susan Haack.
[29] Keith Lehrer, Theory of Knowledge, p.
7. Ver também William James, Some Problems of Philosophy, p. 23.
[30] Aquinas on Mind. (Routledge 1994), p.
5.
[31] Aquinas on Mind, p. 9. Concordo com a motivação de
Kenny, mas não com a sua conclusão. Meu objetivo é mostrar que acreditar
que a tese progressista põe em perigo a abrangência da filosofia é confundir a natureza
das respostas científicas (i.é, respostas consensualmente alcançáveis) eventualmente
destinadas a substituir os problemas centrais da filosofia – que são questões cuja
natureza última desconhecemos – com os empreendimentos das ciências particulares
já existentes, como a física, cuja natureza já conhecemos.
[32] Friedrich Nietzsche
expôs insights desmistificadores acerca dessa questão em Humano, demasiado
humano, cap. IV, sec. 165.
[33] Walter Isaacson, Einstein, His Life and Universe,
p. 122.
[34] See J. Passmore, “Philosophy”, in Paul Edwards,
The Encyclopedia of Philosophy, vol. VI, pp. 219-20.
[35] Ver K. R. Popper, Conjectures and Refutations,
pp. 339-340. O exemplo
padrão de falsificação decisiva empregado por Popper foi a deflexão da luz
das estrelas observada durante o eclipse de 1919. Ironicamente, precisamente esse
teste seria mais tarde considerado demasiado inconfiável para adquirir caráter probatório
(Cf. Martin Gardner, Relativity Explained, Appendix, pp. 96-7).
[36] See K. R. Popper, The
Logic of Scientific Inquiry, cap. II.
[37] “What is Science?”,
p. 42 (meus itálicos). A ciência, como um corpus de conhecimento, como o que os cientistas
fazem e como uma instituição, escreveu Ziman, “não pode ser tratada separadamente,
mais que um sólido pode ser reconstruído de sua projeção sobre diferentes planos
cartesianos” (ibid. p. 42).
[38] John Ziman, Conhecimento Público, p. 24
[39] “The Sociology of Science, cap. 13,
p. 267 ss.
[40] The sociology of science, p. 270.
[41] Ver Jürgen Habermas, “Wahrheitstheorien”. Por adotar essa ideia e por chamar
minha caracterização da ciência de “consensualista”, não estou, de modo algum,
sugerindo que a o conhecimento científico resulte de alguma espécie de decisão consensual
arbitrária. Nossa experiência coletiva tem mostrado que apenas porque fatos –
concebidos como independentes de nós mesmos – podem ser verificados por nossas
proposições, é que se torna possível alcançar acordo interpessoal sobre o valor-de-verdade
dessas proposições no interior de uma comunidade crítica de ideias.
[42] Ver “Science, Conjectures, and Refutations”, in Popper:
Conjectures and Refutations.
[43] Ver video no Youtube: “James Randy on Astrology.”
[44] Wittgenstein lia muito pouco. Mas tinha muito bons ouvidos
críticos, reagindo ao que ouvia nas palestras em Viena e Cambridge ao comparar
os voos filosóficos dos outros com suas poucas chaves críticas baseadas na
linguagem natural.
[45] Há exceções explicáveis, como
a de Nietzsche. A mais curiosa foi talvez a de Wittgenstein, que quase não conhecia
filosofia, mas tinha excelentes ouvidos e praticamente dirigia as exposições semanais
em Cambridge, onde se reunia o melhor da filosofia analítica. Com um pé na universidade
e outro no mundo da vida, que ele experienciou em profundidade, ele percebia facilmente
quando os filósofos acadêmicos transgrediam os limites da linguagem natural e a
importância disso, daí ter inventado sua “filosofia terapêutica”.
[46] De acordo com Kevin Mulligan, Peter Simons,
e B. Smith, em “What is Wrong with Contemporary Philosophy?”, muitos filósofos contemporâneos
preferem o formalismo abstrato a ter de se engajar com a confusa e complexa natureza
do mundo real.
[47] Cf. a sugestão de um behaviorismo das
emoções em Dylan Evans, Emotions: The Science of Sentiments.
[48] Ver Susan Haack “The Fragmentation of Philosophy: The Road
to its Reintegration.”
[49] “Afterword: Must do Better”, in The Philosophy
of Philosophy, pp. 249-280.
[50] Consilience: The Unity of Knowledge
(1998).
[51] Susan Haack: “The Fragmentation of Philosophy: The Road
to its Reintegration”, in The Fragmentation of Philosophy, p. 15. Em seu
uso do conceito de consiliência, Haack foi influenciada pelo trabalho do biólogo
Edward Wilson.
[52] Form, Matter, Substance.
[53] A filosofia continental,
ou o que restou dela, também não voa alto. Considere o caso de expoentes atuais
dela, como Slavoj
Žižek, Markus Gabriel e Quentin Meillassoux. O primeiro, influenciado por
Hegel, Marx e Jacques Lacan, tem promovido uma crítica social imaginativa e relevante.
No entanto, sua abordagem teórica torna-se “lacaniana” no sentido de permanecer
enredada em imbróglios conceituais expressivos, sem conseguir superá-los. (Como
já se observou, ele é suficientemente inteligente para formular boas críticas,
mas não o bastante para construir uma teoria consistente.) Markus Gabriel, por
sua vez, recorre a uma vasta gama de textos históricos e contemporâneos que
remasteriza de modo a produzir “pseudo-thaumas” — efeitos de
maravilhamento — em um público juvenil, mais impressionável do que exigente. Meillassoux,
por fim, elabora fantasias intelectuais elegantes, que, no fundo, continuam a
tradição pós-modernista. Suas complicadas provocações me parecem, se bem
examinadas, superficiais, muito distantes da originalidade profunda de Hume,
filósofo no qual a escora. A originalidade só é verdadeiramente explosiva quando
combinada à relevância.
[54] Jenny Teichman, “Don’t be Cruel or Reasonable”, in Polemical
Papers, p. 134. D. W. Hamlyn: Uma história da filosofia ocidental, p.
398. (O original em inglês foi publicado em 1987.)
[55] Susan Haack, “Scientistic Philosophy: No; Scientific
Philosophy: Yes.”
[56] Susan Haack. “Fragmentation of Philosophy:
The Road to Reintegration”, in Reintegrating Philosophy, cap. 1, p. 9.
[57] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy:
The Road to Reintegration”, in Reintegration of Philosophy, cap. 1, 1.3.
Ver também “Kevin Mulligan, Peter Simons, and Barry Smith, “What is Wrong with
Contemporary Philosophy”. Uma defesa da fragmentação como inevitável foi apresentada
por Scott Soames em The Analytic Tradition in Philosophy, vol. 3, Appendix.
[58] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy:
The Road to Reintegration”.
[59] Como notou Jenny Teichman, vão acabar tendo de
discutir quantos filósofos são capazes de se sentar sobre a ponta de uma agulha.
“Don’t be Cruel or Reasonable”, p. 134.
[60] Blue book, p. 18.
[61] Susan Haack, “The Fragmentation of Philosophy;
the Road to its Reintegration, p. 20.
[62] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy: The Road to
Reintegration”, p. 21. É curioso notar que metafilósofos pertencentes ao atual mainstream,
como Timothy Williamson (2022), ou os autores de An Introduction to Metaphilosophy
(2013), não citam os muito bem pesquisados textos metafilosóficos polêmicos de
Susan Haack.
[63] Susan Haack, “Fragmentation of Philosophy: The Road to
Reintegration”, in Reintegration of Philosophy, pp. 5-14.
[64] A primeira delas saiu na revista Ratio em 2011, com o título “A Meta-descriptivist
Theory of Proper Names”. Aos poucos, a teoria foi sendo refinada, com erros
sendo corrigidos. Uma exposição resumida e atualizada será publicada na
Internet sob o título de “Cognitivismo semântico: por uma nova teoria da
referência”.
É curioso
e importante notar como consegui publicar quatro artigos na revista internacional
Ratio. Quando escrevi o primeiro, intitulado “I am Thinking”, em 1999,
eu estava em um bom endereço, Berkeley, e, como sabia que o editor, John Cottingham,
era especialista em Descartes, sabia que ele o leria e o compreenderia. O
artigo foi bem aceito, mas, tendo o editor percebido que eu, no meio tempo, já havia
voltado para Natal, ele resolveu me testar, fazendo uma pergunta específica
sobre um texto escrito em latim que parecia contrariar o que eu dizia. Eu tratei
de obter o texto e respondê-lo em uma nota do artigo, que, afinal, foi publicado
(2001). O segundo artigo foi enviado em 2004, foi uma versão mais refinada do
compatibilismo clássico. Cottingham já me conhecia e me respondeu entusiasmado,
dizendo que ele e Galen Strawson (um excelente conhecedor do problema), haviam
achado o artigo excelente. Como ele sabia que eu me encontrava em Oxford, me
convidou para jantar com ele no Saint Johns College. Queria
conhecer-me. Entre outras coisas, contei-lhe o caso de uma aluna minha que, depois
da aula, veio me perguntar se é verdade que Aristóteles estava errado, e que os
sentimentos se encontram no cérebro e não no coração. Ao nos despedirmos, percebi
nos seus olhos o receio de que eu lhe pedisse uma boia de salvação! O artigo foi
publicado na primeira página da revista (2006). Os outros dois artigos (2010 e
2011) foram publicados mais pela confiança, uma vez que nem Cottingham nem seus
avaliadores devem ter percebido muito das suas implicações. Se os artigos
tivessem sido enviados em outra ordem, teriam ido direto para a lixeira, ou
teriam caído nas mãos do último avaliador, que, devido ao seu entendimento
limitado, ou mesmo ao receio de cometer um erro, os teria rejeitado. O caso demonstra
as dificuldades de ser autor periférico. Elas são quase tão grandes quanto as
de quem se encontra exposto à máquina moedora de cérebros que se encontra em
seu centro. Para um bem humorado artigo sobre a saga que é “fazer currículo” publicando
em revistas internacionais, ver Michael Huemer, “Publishing Philosophy”. De
minha parte, concordo com Wittgenstein, que achava mais proveitoso ler revistas
de quadrinhos do que perder tempo lendo Mind.
[65] Há mundos possíveis nos quais outra pessoa se casou
com Pithias, mas não pode haver mundo possível no qual Aristóteles não é o
referente de ‘Aristóteles’.
[66] Knowledge and Its Limits.
[67]
Nada contra o confiabilismo se ele for entendido como a posse de informações
que tornem uma justificação interna possível, em orimeira ou Terceira pessoa. Mas
não é aqui o lugar para discutir tais questões.
[68] Eu percebi a solução logo que estudei o
problema. Mas a considerei óbvia demais para não ter sido percebida antes, de modo
que fui investigar as respostas ao problema até encontrar o livro de Fogelin com
o melhor desenvolvimento da solução. O que me restou foi refinar e formalizar sua
solução. Depois disso enviei meu artigo publicado na Ratio ao professor
Fogelin, que me respondeu dizendo que minha versão fortalecia (“strengthened”)
suas ideias. Ver o capítulo V de meu livro Lines of Thought.
[69] Tentando
resumir, em minha versão a definição tradicional tripartite “aSp = p & aCp
& aJCp” passa a ser, para o avaliador da pretensão de conhecimento de a, “aSpt
= [J & (J ~>P)] & aCP & [aJp & J /in {J1, J2...Jn}]” onde
cada J (justificação) é considerado pelo avaliador B, no momento t de sua avaliação,
como condição suficiente (‘~>’) para satisfazer a condição de verdade de p.
[70] Adapto esse argumento de A. Clark e D. Chalmers. “The extended Mind”. O que se esquece
de notar é o abismo intransponível entre o biológico-natural e os pobres
artefatos eletrônicos artificiais por nós produzidos.
[71] Como já foi notado por Kevin Mulligan, Peter Simons e
Barry Smith, os principais segmentos da filosofia são: filosofia analítica, filosofia
continental e história da filosofia. O problema é que eles não se comunicam, o
que é limitador para o trabalho filosófico inovador, que deveria se nutrir do
que existe de melhor em cada um desses segmentos. Ver, desses autores, “What is
Wrong With Contemporary Philosophy?”
[72] Nietzsche observou que o gênio pode ser “medíocre”, lembrando
a imensa dificuldade que Beethoven tinha para compor, que exigia dele refazer as
estrofes inúmeras vezes até que se tornassem incomparáveis. Ver Humano,
demasiado humano, Cap. IV.
[73] Não são poucas as críticas à ausência de desenvolvimentos
disruptivos na física teórica fundamental no mundo da técnica nos últimos 60 anos.
[74] Harry Frankfurt: On Bullshit. Curiosamente,
esse também não é um livro citado pelos atuais metafilósofos.
[75] Ver o ensaio de Sigmund Freud intitulado “Die Zukunft einer
Illusion” (O futuro de uma ilusão). Na verdade, qualquer movimento de massa está sujeito a essa espécie
de cegueira coletiva. Como Hannah Arendt notou, Adolph Eichmann, um cidadão não
muito inteligente, não conseguia sentir-se culpado por ter organizado e supervisionado
o envio dos judeus para os campos de extermínio. Pessoalmente, não tinha nada
contra eles. Em sua opinião, tudo o que fez foi, como bom funcionário do Estado,
cumprir zelosamente as ordens que lhe eram dadas…
[76] The History of the Decline and Fall of
the Roman Empire, cap. 2 (On genius).
[77] Sei disso por tê-las, em parte, refutado. Minha refutação
do antiverificacionismo baseia-se no verificacionismo proposto por Wittgenstein,
que foi desfigurado pelo Círculo de Viena, que criou um boneco de palha só para,
com razão, depois rejeitá-lo. Ver meu livro Philosophical Semantics,
cap. VI. A defesa de uma versão modificada da definição tradicional de conhecimento,
capaz de destruir o problema de Gettier sem deixar restos, encontra-se em Lines
of Thought, cap. V, e a crítica a Kripke, junto à crítica ao necessário a posteriori,
adicionada ao desenvolvimento de uma teoria da referência muito mais consistente,
encontra-se em How do Proper Names Really Work? Quanto ao externalismo
semântico de Hilary Putnam, creio tê-lo demolido no capítulo 8 de Cognitivismo
semântico: filosofia da linguagem sob nova chave. (O próprio Putnam, mais
tarde, confessou a Searle que não acreditava mais na ideia.) Quanto ao dialeteísmo,
estava tudo errado e não tive paciência para refutá-lo por escrito.
[78] Nesse sentido originário, não se trata de
habilidades a serem medidas pelos testes de QI.
[79] O capitalismo incontrolado
é destrutivo e, supõe-se, também destrutivo do próprio potencial crítico da
cultura. Daí a necessidade de um Estado que passe a controlá-lo, de modo que
ele possa atender, de forma equitativa e sem distorções, às necessidades de todos.
Hoje, com as democracias ocidentais dominadas pelo metacapitalismo, parece que
a maior esperança vem do Oriente. Cf. Joseph Schumpeter, Capitalism,
Socialism, and Democracy.
[80] Max Weber. Political Writings, xvi. O desencantamento
do mundo foi uma das grandes ideias de Weber: o mundo era originalmente visto como
repleto de magia e dominado por instituições religiosas. Ele foi sendo aos poucos
demagificado, especialmente com o desenvolvimento do capitalismo, o que fez essas
instituições foram perdendo seu papel dominante. Contudo, há algo que tende a se
perder nesse processo, que só se concretiza através de uma burocratização/racionalização/dessacralização
da vida humana. A tese de que nossa sociedade capitalista-tecnológica é aversa
à alta cultura porque torna o ser humano menos produtivo foi particularmente
explorada por Herbert Marcuse em One-Dimensional Man: Studies in the Advanced
Capitalist Society. Ver também Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialectic
of Enlightenment.
[81] Max Weber: The Protestant
Ethic and the Spirit of Capitalism. Trad. port. A ética protestante e o espírito
do capitalismo, p. 236.
[82] Max Weber: A ética protestante e o espírito do capitalismo,
p. 236.
[83] Personal notebooks, 1931.
[84] Introdução da Fenomenologia do espírito.

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