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II
O NATURALISMO ARISTOTÉLICO
Em seu melhor o
homem é o mais nobre dos animais. Fora da lei e da justiça ele é o pior de
todos.
Aristóteles
Aristóteles
(384-322 a.C.) nasceu em Estagira, na Macedônia, filho do médico da corte de
Amintas III, que foi avô de Alexandre o Grande. Aos 18 anos foi para Atenas e
passou os próximos vinte anos estudando junto a Platão. Após a morte do último
não lhe herdou o lugar na academia, o que o fez deixar Atenas. Foi então para
Assos, onde se converteu em conselheiro e amigo do tirano Hermias, casando-se
com sua sobrinha Pítias. Três anos depois ele passou algum tempo na ilha de
Mitilene, onde fez observações sobre a vida de animais e plantas acompanhado de
seu amigo Teofrasto, um botânico. Só para dar um exemplo de suas pesquisas: foi
ele quem primeiro teve a ideia de fazer um furo no ovo fertilizado de uma
galinha para observar o coração do embrião batendo, descrevendo pela primeira
vez a origem de uma criatura viva. Seu conhecimento de história natural teve
influência direta na tendência empirista de seu filosofar e no desenvolvimento
de conceitos metafísicos como os de espécie substancial, matéria e forma,
potencialidade e atualidade. Depois disso foi chamado à Pela, onde viveu por
oito anos, tendo sido, pelo que sabemos, preceptor de Alexandre.
Depois vieram os anos de sorte. Com a Conquista de toda a Grécia por Alexandre
ele pôde voltar para Atenas e fundar o Liceu, que se tornou o primeiro
instituto científico da história, recebendo consideráveis fundos do governo.
Chegaram até a construir um zoológico. Nos treze anos seguintes ele trabalhou duramente,
desenvolvendo a sua filosofia na forma madura pela qual hoje a conhecemos.
Mesmo assim, as coisas não parecem ter sido sempre tão fáceis. Conta-se que uma
vez ele escreveu a Alexandre reclamando por este ter condenado à morte um
filósofo inocente. A resposta teria sido “Eu também mato filósofos”. Aristóteles
deve ter engolido em seco.
Com a inesperada morte de Alexandre, vitimado pela febre aos 32 anos, o
céu veio abaixo. Livres do domínio macedônio, os atenienses decidiram vingar-se
de estrangeiros como Aristóteles. Como a Sócrates, acusaram-no de impiedade
(desconsideração para com os deuses), o que significava pena de morte. Para
salvar sua vida ele teve de exilar-se em Assos, adoecendo e vindo a morrer
meses depois, aos 62 anos de idade. Platão teve mais sorte: morreu dormindo aos
80 anos.
Aristóteles escreveu uma obra vasta opinando, certo ou errado, sobre quase tudo
o que era investigado na época. Ele desenvolveu a lógica entre os gregos com a
teoria do silogismo, contribuiu para a filosofia da ciência, para a filosofia
da mente, para a teoria política e para a ética. E sua contribuição para a
metafísica foi imensamente influente.
Aristóteles representou um contraponto ao idealismo de Platão ao rejeitar a
doutrina das ideias e a promulgar uma espécie de empirismo. No Diálogo Sofista
Platão dividiu as pessoas entre os “amigos das ideias” e os “gigantes da
terra”. Os amigos das ideias eram pessoas razoáveis como ele mesmo, que
buscavam ascender a um mundo de coisas perfeitas e imutáveis: as ideias ou
formas. Eram idealistas geralmente versados nas matemáticas. Já os gigantes da
terra eram barulhentos e só acreditavam naquilo que podiam ver e tocar com as
próprias mãos e até mesmo espremer... Essa comparação se
aplicava, ao que parece, aos filósofos atomistas e materialistas. Mas não seria
justa se fosse aplicada a Aristóteles. Como W. K. C. Guthrie e outros notaram,
apesar da tendência empirista e naturalista, que o impedia a admitir um reino
separado das ideias, Aristóteles sempre foi fascinado pela doutrina
platônica da realidade transcendente das formas, da qual nunca se libertou por
completo.
1
Metafísica. A Metafísica é uma coleção de
quatorze livros que costumam tratar do que Aristóteles chamava de filosofia
primeira ou ciência buscada. Somente dois séculos e meio
mais tarde Andrônico de Rhodes, que pela primeira vez publicou as obras de
Aristóteles em Roma, publicou os escritos de filosofia primeira, dando a eles o
título de Metafísica, que significa “depois da física”, mas também “para
além da física”. É bem possível que essa escolha tenha sido feita sob a
consideração de que o objeto da filosofia primeira era para Aristóteles
superior ao de todas as outras ciências, demandando um conhecimento preliminar
do livro da Física.
O que foi chamado de Metafísica são na verdade anotações de
aula, uma barafunda especulativa confusa, difícil e ao mesmo tempo fascinante, na
qual Aristóteles introduziu uma variedade de ideias de grande interesse, esforçando-se
por organizá-las na busca de uma consistência praticamente impossível.
Um fio condutor para o assunto em questão
pode ser encontrado nas caracterizações que Aristóteles fez de sua filosofia
primeira. Eis as quatro mais conhecidas:
1. A investigação do ser enquanto ser,
2. A investigação da substância,
3. A investigação das causas e princípios primeiros,
4. A investigação de Deus e da substância suprassensível.
Elas
se encontram interrelacionadas: a investigação do ser enquanto ser é,
primariamente, a da substância (a arché aristotélica).
Substâncias podem ser sensíveis ou suprassensíveis (os moventes imóveis). As
últimas são investigadas pela teologia, sendo também causas primeiras.
Como tudo isso são apenas descrições de tópicos pertencentes ao estudo da
metafísica, dizer que a metafísica os investiga não serve como definição. O que
mais se aproxima de uma definição é (1): “A investigação do ser enquanto ser.”
Mas o que Aristóteles queria dizer com isso? Eis sua resposta:
Há uma ciência que investiga o ser enquanto ser e os
atributos que a ele pertencem em virtude de sua própria natureza. Isso não é o
mesmo que qualquer uma das assim chamadas ciências especiais; pois nenhuma
delas investiga universalmente o ser enquanto ser. Elas recortam uma parte do
ser e investigam os atributos dessa parte. Isso, por exemplo, é o que as
matemáticas fazem.
Em
outras palavras, as ciências especiais, diversamente da metafísica, investigam classes
de seres ou, melhor dizendo, entidades, além das propriedades que
lhes são específicas. Assim, hoje diríamos que a física estuda a matéria e suas
propriedades específicas, a biologia estuda os seres vivos e suas propriedades
específicas, a matemática investiga os números e suas propriedades relacionais
específicas... Mas a metafísica investiga tudo o que envolve os tipos mais
gerais de entidades (seres), além das relações que elas possuem entre si.
Semelhantes objetos de investigação são, digamos assim, “tópico-neutros” no
sentido de estarem presentes nos mais diversos domínios do saber.
O ponto fica mais claro quanto comparamos as pesquisas de Aristóteles com as
investigações feitas pela metafísica contemporânea. Considere a seguinte lista
dos objetos de investigação da metafísica analítica contemporânea:
Propriedade, causalidade, existência, número,
princípios lógicos universais, objetos materiais, espaço e tempo, o todo e a
parte, necessidade e possibilidade...
No
interior das ciências especiais falamos o tempo inteiro de propriedades,
existências, relações causais, números, etc. Considere o caso das propriedades:
tudo o que existe possui propriedades. Existem propriedades matemáticas, físicas,
químicas, biológicas, psicológicas, sociais, matemáticas, lógicas... mas não há
nenhuma ciência especial que objetive explicar o que é uma propriedade. Considere
o caso das relações causais: todas as ciências particulares empíricas consideram,
em seu vocabulário, relações causais entre os fenômenos por elas estudados, sem
nunca tematizar o que seja a causalidade. Tais fenômenos ocorrem sempre no
espaço e no tempo, mas só a metafísica os investiga. Finalmente, todas as
ciências consideram números de entidades, sejam elas matemáticas, físicas,
químicas, biológicas ou sociais… e também consideram a existência ou inexistências
das entidades pertencentes aos seus domínios... Fica claro que embora todas
essas ciências apliquem conceitos como indivíduo, propriedade, causalidade, número
e existência – conceitos investigados pela metafísica – nenhuma delas se ocupa
da investigação de sua natureza ou das relações que eles possam ter entre si. Esses
objetos de investigação são geralmente pressupostos pelas ciências especiais, aparecendo
em suas terminologias sem serem questionados. Eles atravessam quase
desapercebidos as mais variadas ciências particulares, razão pela qual também
concernem à moldura através da qual pensamos o universo. Como há mais de um
século bem definiu A. E. Taylor, a metafísica investiga os “princípios
estruturantes universais sem os quais não poderia existir nenhum sistema
ordenado de objetos conhecíveis”.
Aristóteles merece o crédito de ter sido a primeira pessoa a perceber que certos
conceitos objetivos pertencentes a âmbitos de aplicação os mais diversos,
demandam uma investigação própria: a de sua filosofia primeira. Como e o quão
justificadamente ele a desenvolveu é outra questão.
2
Princípios
da lógica. Para Aristóteles
os princípios lógicos fundamentais também pertencem à metafísica, dada a sua
ubiquidade. Na Metafísica ele defendeu famosamente o princípio da
não-contradição como sendo o mais fundamental. Esse princípio diz que “o
mesmo atributo não pode ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto pertencer e não
pertencer ao mesmo objeto.” Quem quiser negar
esse princípio, escreveu ele, deverá ficar mudo como uma planta, pois não
poderá dizer coisa alguma, uma vez que afirmar algo será o mesmo que negá-lo.
Essa pessoa não conseguirá sequer negar o princípio, pois ao rejeitá-lo,
assumindo sua falsidade, fará tanto quanto afirmá-lo. Formalmente, ele pode ser
expresso como ~(A & ~A).
O princípio da não-contradição é complementado por outros dois: o princípio da
identidade e o do meio excluído. O princípio da identidade já divisado por
Parmênides, nos diz que uma coisa é ela mesma. Formalmente ele tem sido
apresentado como A → A.
O princípio do meio excluído, por sua vez, nos diz que “não pode haver
intermediário entre enunciados contraditórios, mas de um mesmo objeto precisamos
sempre ou afirmar ou negar qualquer predicado.” Ele pode ser formalmente
apresentado como A ˅ ~A.
Os três princípios são logicamente
equivalentes, pois se uma coisa é ela mesma, ou seja, se A → A, então
não é possível que ela seja e não seja ela mesma (ao mesmo tempo e sob a mesma
perspectiva), ou seja: ~(A & ~A). E se uma coisa é ela mesma, então não é o
caso de ela ser outra coisa senão ela mesma, ou seja: A ˅ ~A.
Esses princípios são verdades lógicas (tautologias) que funcionam como
verdadeiros axiomas semânticos da lógica sentencial, uma vez que eles
precisam ser pressupostos na construção das tabelas de verdade que definem os conectivos
usados na formação das regras sobre as quais se baseia todo o cálculo
sentencial. Contra a objeção de que existem, afinal, inúmeras verdades lógicas,
é possível responder que esses princípios têm a prerrogativa de serem os mais
simples e prolíficos.
Bem entendidos, esses princípios são irrecusáveis. Quero defender aqui apenas o
mais disputado dentre eles, que é o do terceiro excluído: “A ˅ ~A”.
Pode-se argumentar que deve haver algo que não é nem A nem não-A. Por exemplo,
considere a frase “Está chovendo”. Pode ser que seja noite e que exista algo
como um sereno, com minúsculas gotículas de água no ar que parecem estar lentamente
descendo... mas não será apenas uma névoa? Simplesmente não há como decidir!
Nesse caso, se alguém disser “Está chovendo”, não haverá como saber se a frase
é verdadeira ou falsa. Estamos diante de uma fronteira indefinida (blurred
boundary). Afinal, nem está chovendo nem não está chovendo. Não parece
então que para esse caso limítrofe o princípio do terceiro excluído deva ser
rejeitado?
O problema não aparece quando o princípio é ontologicamente definido como
dizendo que se uma coisa é ela mesma então não pode ser o caso de ela ser outra
coisa senão ela mesma. Uma consideração mais cuidadosa da versão linguística e
formal do princípio mostra que a objeção acima se apoia em uma confusão, pois
no contexto considerado afirmações como “Está chovendo” ou “Não
está chovendo” deixam de fazer sentido, pois se tornam proferimentos
inverificáveis, incapazes de nos dizer qualquer coisa além de seu entendimento
gramatical. Se alguém os proferisse diríamos: essa afirmação não faz sentido! Por
isso, na lógica clássica é sempre pressuposto que as sentenças possuem
valor-verdade, a confusão advindo de que ela sempre abstrai dos procedimentos
epistêmicos pelos quais os reconhecemos.
A constatação acima não precisa ser vista
como uma limitadora. Se um enunciado como “Está chovendo” for feito em uma
fronteira indefinida, bastará precisarmos melhor o critério de identificação de
chuva (por exemplo, pela invenção de um “detector de chuva”...), que nos
tornaremos capazes de atribuir um valor-verdade ao enunciado.
3
Substância.
Há dois momentos claramente distintos no desenvolvimento do conceito de
substância na obra de Aristóteles: o das Categorias e o da Metafísica.
Comecemos com o texto inicial das Categorias. Aqui ele distinguiu
dois sentidos da palavra ‘substância’:
(i)
O sentido próprio, que
ele chamou de substância primeira.[13]
Trata-se do indivíduo espaço-temporalmente localizável, do
particular concreto, como esse homem (Sócrates) ou aquele cavalo (Bucéfalo). O
indivíduo pode ser repositório de muitos predicados, mas não pode ser ele
próprio predicado de alguma coisa. Assim, quando digo “Sócrates é sábio”, estou
me referindo ao indivíduo de nome Sócrates, do qual predico sapiência.
(ii)
Há também um sentido
complementar do termo substância, chamado por Aristóteles de substância
segunda. Trata-se aqui em primeiro lugar da espécie de coisa à
qual o indivíduo referido pertence e, em segundo lugar, do gênero ao
qual ele pertence.[14]
No caso do indivíduo Sócrates, ele pertence à espécie humana e ao gênero
animal. Assim, se digo “Sócrates é homem”, estou com o predicado ‘...é homem’
me referindo à substância segunda. Aristóteles também distingue aqui as
atribuições de espécie e gênero como sendo predicadas “de um sujeito”,
enquanto as atribuições meramente acidentais, como ‘...é branco’ ou
‘...é corajoso’, são predicadas “em um sujeito”.[15]
“Se a substância primária não existisse”, escreveu ele, “seria impossível a
qualquer das outras coisas existir”.[16]
A substância segunda é apresentada nas Categorias como tendo a função de
um universal.[17]
No
texto muito posterior da Metafísica, Aristóteles propôs uma
definição de substância consideravelmente diferente daquela apresentada
nas Categorias. A
razão é que já em sua Física ele passara a considerar as
coisas perceptíveis como compostos de forma (eidos ou morphê)
e matéria (hylê).[19]
Podemos aqui entender a forma como o princípio organizador que possibilita a
especificação geral de uma coisa como um todo independente e a matéria como
aquilo que a constitui.[20]
Com base nessa distinção, a pergunta que ele se fez é se a substância é
primariamente:
(a): a matéria do indivíduo (hylê),
(b): a sua forma (eidos),
(c): a combinação de ambos (o sýnolon).
Sua
resposta foi conciliatória:
… o substrato primeiro é o que parece ser a substância.
E chama-se substrato primeiro, em certo sentido, a matéria, noutro
sentido a forma e num terceiro sentido a combinação da matéria e da
forma.
Como
veremos, para ele o sentido (a) de substância como matéria é o mais fraco de
todos. O sentido (c), de combinação, é mais forte, correspondendo ao indivíduo
das Categorias. Mas o sentido que ele privilegia como sendo o mais forte
de todos é (b), o da substância como a forma essencial, que é da forma
como espécie e gênero, bem diversa da forma como mero acidente.
Assim, a forma essencial do indivíduo Sócrates seria a de pertencer à espécie
dos seres racionais e ao gênero dos animais. Afora isso, a maior proximidade
que a espécie tem do indivíduo faz com que ela possua uma realidade mais
concreta (mais substancial) do que a do gênero. Já que Sócrates era branco,
usava barba, era sábio… são formas meramente acidentais, não pertencendo
à sua substância. Vejamos os argumentos.
Consideremos
primeiro (a): a substância como matéria. Seguindo a linguagem ordinária,
Aristóteles notou que podemos entender como substância a matéria como um substrato
(hupokeimenon), uma vez que o substrato não é inerente a algo e nem se
deixa predicar. Como ele escreveu: “Claramente, também a matéria é substância,
pois em todas as mudanças entre opostos há algo que lhes serve de substrato.”[22]
Com relação a (a) deve ser feita uma
importante consideração. Sempre que falamos da matéria temos de nos referir a
alguma forma. Ou seja: ao se fazer cognoscível, a matéria só é capaz de ser
apreendida como forma. Alguns exemplos de Aristóteles tornam isso claro. No
caso de um esfera de cobre a esfera é a forma e o cobre a matéria. Mas o cobre
é uma forma, um metal cuja matéria é o elemento de número atômico 29, que
também só se torna cognoscível enquanto apresentado como forma. Uma casa é uma
forma que tem como matéria os tijolos, que são formas cuja matéria é o barro de
que são feitos… Um estado tem a sua constituição como forma, sendo sua matéria
a população de que é composto, embora esta seja também constituída de formas.
Aristóteles percebeu isso. Em uma passagem
da Metafísica ele fez uma interessante experiência em pensamento,
retirando uma a uma as propriedades de um indivíduo particular, de modo a
tentar fazer restar só a matéria. O resultado é que simplesmente nada de
dizível ou cognoscível restou! Como ele mesmo concluiu: “A pura matéria
destituída de qualquer forma é incognoscível”[23],
não passando de um conceito limite. Se a substância material fosse apenas a matéria
pura ou última (chamada pelos medievais de ‘matéria prima’), ela seria
incognoscível.[24]
Para
exemplificarmos melhor, considere o caso de um corpo humano: ele é uma forma
constituida de músculos, ossos, gordura… Mas tudo isso são formas. Os músculos
são constituidos de miofibrilas proteicas, que são também formas, as quais são
constituidas de compostos de carbono, que são constituidos de átomos, que são
constituidos de partículas subatômicas, que se dividem em quarks… Assim, o que
temos são formas “all the way down”. Dessa maneira a forma acaba sendo
responsável pela diversidade de tudo o que existe, pela heterogeneidade das
determinações específicas, que quando mais elementares menos heterogêneas se
tornam. E como a matéria é feita de constituintes de um todo que é um
indivíduo, ela pode ser chamada de substância num sentido mais fraco,
certamente não como pura matéria, mas como o constituinte cognoscível formal
interno que nos permite localizar um indivíduo no espaço e no tempo. O
indivíduo, por sua vez, é o que somos capazes de especificar pelo princípio
organizador que é sua forma essencial.
No sentido (c) a substância é a combinação
de forma e matéria. A combinação está no lugar do que nas Categorias foi
chamado de indivíduo. Em uma conhecida passagem, Aristóteles escreveu
que a substância pode ser entendida no sentido de “um esse tal-e-tal (tode
ti) separável”.[25]
Não é difícil perceber o que ele devia ter em mente. Digamos que alguém aponte
para Sócrates e diga: “Esse homem é corajoso”. O pronome demonstrativo ‘esse’
(um indexical) indica alguma coisa espaço-temporalmente localizada, ou seja, a
matéria constitutive de Sócrates, enquanto o complemento ‘homem’ (um sortal)
indica o tal-e-tal, que é a forma essencial, o princípio organizador do tipo de
coisa indicada. Aqui a substância é capturada pela linguagem como uma matéria
localizada que possui uma forma que é a sua essência, entendida por ele
como “aquilo pelo que uma coisa é” (tò tí ên eînai)[26].
Importante acerca da essência é que ela deve
ser entendida como algo susceptível de definição.[27]
Assim, ele definiu a forma essencial do ser humano como a de um “um animal
racional”. Sob tal suposição, se digo “Isso é um homem”, estou dizendo o mesmo
que “Isso... é um animal racional”, ou seja, estou oferecendo uma definição
real do indivíduo designado pelo demonstrativo ‘isso’ como sendo um animal
racional. Como é bem sabido, para Aristóteles uma definição real seria aquela pela
qual distinguimos a diferença específica de seu gênero próximo –
a diferença específica sendo um subconjunto pertencente ao conjunto seguinte
mais geral, que é o do gênero próximo.[28] No
caso em pauta, o gênero próximo é a animalidade, enquanto a diferença
específica, distintiva do ser humano, é a racionalidade. A espécie natural, à
qual pertence o que é indicado pelo ‘isso’, é aqui a dos animais racionais.
Trata-se, para Aristóteles, da indicação da forma substancial como uma essência
definível – algo que para ele (como um bom biólogo) era paradigmaticamente a
predicação de uma espécie (ou gênero) da zoologia ou botânica. Exemplos:
“esse homem”, “aquela rosa”. Essa forma substancial pode ser estendida a
indivíduos físicos como Marte (um planeta), o Sol (uma estrela), uma massa de
ar, o mar, e mesmo artefatos como uma casa.[29]
Para Aristóteles, a combinação (c) é o
“isso” (o substrato material) junto ao “tal-e-tal” (a forma substancial
constituída pela espécie e pelo gênero). Trata-se de uma redescrição da
substância primeira das Categorias no contexto de seu hilomorfismo, o
que parece tornar a combinação o melhor candidato ao papel de substância.
Afinal, através dela o indivíduo é visto como uma combinação da matéria
constituinte espaço-temporalmente localizada com a sua forma estruturante, como
uma unidade a servir de repositório de predicações quaisquer. A combinação
parece, pois, satisfazer claramente os critérios de substância de (1) a (4),
inicialmente aludidos. A substância seria então o indivíduo entendido como uma
combinação localizada de matéria com sua forma essencial.
Contudo, não foi assim que Aristóteles pensou. Ele reservou o lugar
privilegiado para a interpretação (b) da substância como forma. Ele
acreditava, tal como Platão, que a forma (como espécie e gênero), possui mais
ser ou realidade do que a matéria. De acordo com ele, “se a forma é
anterior e mais ser do que a matéria, pela mesma razão ela será anterior ao
composto.”[30]
A pergunta que muitos se fazem é sobre a razão de Aristóteles ter insistido em
privilegiar como substância a forma sobre a combinação. Afinal, a combinação
também possui forma, além de resultar no indivíduo como um todo.
4
Categorias. Aristóteles estabeleceu uma classificação dos gêneros
supremos de predicação por ele chamados de categorias (katêgoria =
predicado). As categorias seriam as classes fundamentais do que pode ser
predicado da substância primeira, o que inclui todos os predicados, das
espécies e gêneros aos meros acidentes. Por isso, sempre que predicamos, nossa
predicação precisa pertencer a alguma categoria. Considere, por exemplo, a
categoria aristotélica de qualidade: a cor vermelha é uma qualidade
de cor, um círculo é uma qualidade de forma; mas tanto a cor quanto a forma
pertencem à mesma categoria geral de qualidade. Em conjunto as categorias podem
ser dispostas na seguinte tábua:
CATEGORIA EXEMPLO:
Substância é um homem (substância
segunda).
Quantidade tem 1,60
m de altura,
Qualidade é sábio,
Relação é Casado com Xantipa,
Onde está na Ágora,
Quando pelo meio-dia,
Posição de pé,
Ter
segura um bastão,
Fazer
está falando,
Ser afetado está sendo inquirido.
Para
Aristóteles, a começar pela substância segunda, tudo o que podemos dizer sobre a
substância primeira se deixa classificar sob esses predicados categoriais.
Assim, apontando para Sócrates (o indivíduo, a substância primeira das Categorias)
eu posso proferir uma frase do tipo “Este tal-e-tal”, no caso, “Isto é um
homem”, indicando a substância segunda, que é a substância como forma
essencial do indivíduo, a qual é também uma essência definível (homemdf =
animal racional). Mais além, eu posso dizer que esse homem (Sócrates) é sábio
(predicando-lhe uma qualidade), que ele tem 1,60 m de altura ou que pesa 68 Kg.
(quantidade), que é marido de Xantipa (relação), que se encontra na Ágora
(onde) ao meio dia (quando), que está de pé (posição), que segura um bastão
(ter), que está falando (fazer) e que está sendo inquirido (está sendo afetado).
Mesmo que essa lista das categorias seja assistemática e sobreponha predicados
(ter, fazer e ser afetado são predicados relacionais), ela é profundamente
sugestiva.
Podemos agora considerar uma propriedade da substância que terá grande importância
no sistema de Aristóteles. Trata-se do fato de que em geral é a substância
serve de substrato para a mudança. Como suporte para as outras categorias, ela
deve poder permanecer a mesma no tempo enquanto as outras categorias se
modificam. Por exemplo: esse ser humano, Sócrates, é o mesmo, e dele predicamos
a sapiência. Mas não predicávamos a sapiência dele quando era criança, nem que enquanto
criança ele tinha 1,60 m de altura ou que era casado com Xantipa. Além disso,
quando bebê ele não ficava de pé e sequer sabia falar. Mesmo assim, o Sócrates
criança é certamente o mesmo Sócrates que foi condenado a beber cicuta aos 70
anos. Em todos esses momentos, porém, podemos dizer que ele foi um ser
humano (um animal racional), predicando dele uma mesma forma específica, uma
mesma essência substancial.
5
Universais. Um
problema controverso aqui surgido é o de saber como Aristóteles tentou resolver
o problema dos universais. O termo
‘universal’ (to katholou) foi cunhado por Aristóteles
querendo dizer “aquilo que por natureza é predicado de muitos.” É
por meio do universal ‘humanidade’ que podemos dizer que Sócrates, Platão e
Cálias são seres humanos. A resposta platônica seria recorrer à forma real e substancial,
a ser participada ou copiada pelos diferentes seres humanos. Em algumas
passagens da Metafísica Aristóteles pareceu concordar com isso:
E
quando consideramos o todo, tal e tal forma realizada nessas carnes e nesses
ossos, de modo que esse é Cálias ou Sócrates, eles são diferentes em virtude de
sua matéria (pois ela é diversa em indivíduos diversos), mas são o mesmo na
forma; pois a forma é indivisível.
(...)
com efeito, a definição é do universal e da forma.
Parece
então que a forma aristotélica precisa ser um universal, algo comum a um
número maior ou menor de indivíduos. Uma forma aristotélica seria como um
lençol transparente e único, firmemente colado a todos os objetos sensíveis que
dela participam, cumprindo dessa maneira com sua função universalizante. Isso
justificaria que pensássemos em formas aristotélicas como algo dependente da
existência das coisas sensíveis para existir: retiram-se as coisas, o lençol se
desfaz... Isso também justificaria a ideia, cara à Aristóteles, de que só
existe ciência do universal e nunca do indivíduo. O problema é que essa
sugestão conduz a uma dificuldade ainda muito pior do que a criada pelo
problema da divisão na metáfora da participação das coisas nas ideias
platônicas. Como pode, afinal, uma forma universal manter a sua unidade se ela
tem de se dividir entre os muitos objetos aos quais se aplica? A metáfora
platônica da ideia como o sol que ilumina os objetos é apenas misteriosa. Já a
metáfora da forma como um lençol elástico se estendendo ao mesmo nível de
qualquer objeto que dela compartilhe é irrecuperavelmente rudimentar. Como
poderia, afinal, um filósofo tão perspicaz quanto Aristóteles não ter percebido
uma dificuldade tão óbvia?
Em aparente contradição com esse resultado,
Aristóteles também tornou claro que o universal não pode ser substância, “pois
a substância é peculiar ao indivíduo, a nada mais pertencendo, ao passo que o
universal é comum a muitos.
Assim, se a forma – específica ou genérica – é substância e realidade no
sentido privilegiado, então ela não pode funcionar como um universal. A forma,
seja ela propriedade, atributo ou acidente, precisa se encontrar inteira
em cada indivíduo que a possuir, de modo que outros indivíduos podem ter formas
qualitativamente idênticas, mas cada um tem a sua. Assim, Sócrates tem uma
forma substancial de humanidade e Cálias tem outra forma substancial de
humanidade. Como Aristóteles escreveu: “cada coisa individual é uma e a mesma,
tal como sua essência [forma]”.
Ou ainda, para não deixar dúvida:
A
substância é a forma imanente, cuja união com a matéria constitui a
substância como combinação (a concavidade, por exemplo, é uma forma
desse tipo; de sua união com o nariz deriva o nariz achatado e o ser achatado).
Mas
então deve-se admitir uma esfera além das sensíveis? Ou uma casa além das de
tijolos? Não, porque se fosse assim essas formas nunca teriam formado
algo determinado.
Por
que esses materiais formam uma casa? Porque a essência [forma] da casa
está presente. E porque essa coisa individual assim determinada é um homem?
Portanto, o que buscamos é a causa, ou seja, a forma que torna a matéria
algo definido. E isso é a substância da coisa.
A
figura esférica de bronze só existe unida à esfera de bronze.
Aristóteles
estava certamente tateando diferentes caminhos especulativos incompatíveis
entre si. Mas isso não o punha a salvo de uma inconsistência severa. Em meu
juízo há somente uma maneira de preservar a descoberta aristotélica da arché
como substância individual sem cair em contradição. Ela consiste em sugerir que
ele devesse estar usando a palavra ‘forma’ de maneira ambígua, como:
(i)
como forma
singularizante;
(ii)
como forma
pluralizante.
A forma
singularizante é a que existe inteira em cada indivíduo. Só ela é
substância no sentido privilegiado, possuindo realidade especialmente enquanto
espécie e gênero e podendo até mesmo ser apontada (“aquela casa, aquele homem,
aquela forma esférica constitutiva da combinação ‘esfera de cobre’”). A forma
singularizante não é, obviamente, um universal. E no caso das formas
transcendentais, que são atualidade sem matéria, como é o caso de seu Deus, dos
motores imóveis das esferas celestes e da razão humana, trata-se também de
formas singularizantes entendidas como atualidades substanciais, puras e
únicas.
Já a forma pluralizante é tem a função de
universal. Ela não é real nem substantiva. Ela não é um lençol único cobrindo
as diferentes coisas que dela participam e susceptível à vexatória contradição
de ser simultaneamente única e múltipla. Tal como alguns aristotélicos
medievais moderados sugeriram, essa forma universalizante não existe nas coisas
(in rebus), mas só após as coisas (post rem), em nossas mentes,
como resultado de um processo de separação chamado de abstração. É ela
que nos permite predicar, dizendo o mesmo de muitos, além de possibilitar a
generalização própria da ciência, pois se aplica a todas as formas singulares
substanciais nas coisas (in rebus) que apresentarem o mesmo padrão de
similaridade. Apesar disso, não é preciso que a consideremos como tendo a ver
com a ideia platônica, real e substantiva. Nesse sentido, quando Aristóteles
diz que a forma de Sócrates e Cálias é a mesma, ele pode estar se referindo (ou
pelo menos deveria estar se referindo) à forma pluralizante, à forma como
universal, que embora definível não possui realidade substantiva.
Sob essa leitura, a análise aristotélica da
substância sensível se torna praticamente indistinguível do que foi sugerido por
Donald Williams em sua ontologia dos tropos no artigo classico de 1953.
Para essa ontologia radicalmente naturalista, todo o universo é constituido do
que ele chamou de tropos, que nada mais são do que propriedades
espaço-temporalmente localizáveis, não existindo propriedades realmente abstratas.
Para ele, os objetos materiais são agrupamentos mais ou menos organizados de
tropos concorrentes ou compresentes no sentido mínimo de serem localizados
em uma mesma região espaço-temporal, enquanto os universais para ele não passam
de conjuntos ou somas de tropos precisamente similares entre si.
Ora, enquanto
espaço-temporalmente localizáveis, as formas aristotélicas também são tropos.
Esse é o caso das formas acidentais, como a da brancura de Sócrates. Também as formas
singularizantes essenciais (espécie e gênero) são tropos, tanto quanto as
categorias. A própria matéria constituinte dos indivíduos, enquanto
cognoscível, pode ser expressa em termos de tropos. Até mesmo a forma que
resulta da abstração não precisa ser realmente um universal post rem
único e capaz de cobrir todos os casos, como os aristotélicos medievais devem
ter pensado, mas apenas um modelo particular repetível funcionando como uma regra
organizadora que nos permite identificar os padrões formais que lhe
resultarem qualitativamente idênticos (precisamente similares) em muitos e
diversos indivíduos. Com isso é aberto o espaço para o que veremos ser
designado como ‘nominalismo’.
6
A
mudança. Desde Heráclito
tornou-se geralmente aceito que o mundo sensível é caracterizado pela mudança,
movimento, transformação. Para explicar o que é a mudança Aristóteles lançou
mão de uma nova dualidade conceptual: a distinção entre potência (dunamis)
e ato (energeia). A potência é definida como a
capacidade de vir a ser, enquanto o ato é simplesmente a capacidade de ser.
O mais
fácil exemplo explicativo é o da semente. Ela pode dar origem a uma laranjeira.
Uma outra semente, quase igual à primeira, pode dar origem a um limoeiro. Sementes
diversas tem o potencial de se transformar em coisas diversas. A semente da
laranjeira é a laranjeira em potência, que posteriormente se transforma na laranjeira
em ato. Para Aristóteles as substâncias sensíveis são constituídas não só de
matéria e forma, mas correspondentemente de potência e ato, pois há em toda
substância uma correlação entre o que dizemos ser matéria e potência, de um
lado, e o que dizemos ser forma e atualidade, de outro. A substância é ato na
forma que presentemente possui. Mas ela é também potência na capacidade que
possui de atualizar-se em outra forma. Por exemplo: uma semente tem a
potencialidade de se transformar em uma árvore, mas ela não é árvore em ato,
mas apenas em potência. A árvore foi semente em potência, mas agora é árvore em
ato: ela adquiriu essa nova forma essencial. Para Aristóteles, matéria e forma essencial
podem ser até mesmo consideradas uma só coisa sob diferentes aspectos, posto
que a matéria é forma em potência, enquanto a forma é a matéria que se
atualizou.
A distinção entre ato e potência permitiu a Aristóteles responder desafio de Parmênides,
segundo o qual o ser é imutável, uma vez que do não ser não pode advir o ser,
caso contrário o não-ser seria, e do ser não pode advir o não-ser, a menos que
o ser não seja. Aristóteles discordava. Sua resposta foi hábil: O ser pode
advir do não-ser porque o não ser já é ser em potência, enquanto o não-ser
pode advir do ser porque o ser já é não-ser em potência. Por isso,
pensava ele, a mudança é no final das contas a passagem do ser para o
ser; ela é a passagem do ser em potência para o ser em ato.
À sua explicação da mudança Aristóteles adicionou a famosa teoria das quatro
causas, que pode ser facilmente tomada por um arcaísmo filosófico. Contudo,
essa atitude advém de uma confusão entre o que Aristóteles tinha em mente como
causa e nosso conceito atual mais restrito de causa como causa eficiente. No
caso de Aristóteles trata-se de uma teoria dos elementos envolvidos na
explicação da mudança, na medida em que ela tiver caráter finalista ou teleológico.
Esses elementos são chamados de causa material, causa formal,
causa eficiente e causa final.
Para tornar isso claro, imagine que um artífice pretenda esculpir uma estátua. É
preciso que ele tenha primeiro uma pedra de mármore. Essa é (i) a causa
material. Além disso ele precisa ter uma ideia do que pretende fazer, por
exemplo, uma estátua do deus Apolo. Essa é (ii) a causa formal: a forma
almejada, mas ainda não atualizada. Além disso ele precisará trabalhar no bloco
de mármore de modo a esculpir a estátua do deus Apolo. Essa é (iii) a causa
eficiente, que hoje consideraríamos a causa no sentido próprio. Por fim, a
estátua do deus Apolo deverá ser colocada no templo, de modo a servir como
objeto de adoração: essa é (iv) a assim chamada causa final – o propósito
último da ação.
A teoria das quatro causas não serve apenas para explicar as ações humanas
intencionais. Ela também serve à biologia de Aristóteles. Assim, um pequeno
arbusto para crescer e se transformar em uma árvore precisa de uma matéria, a
madeira da qual é constituído. Mas ele também precisa de uma forma que o defina:
o arbusto tem a finalidade, inscrita em seu material genético, de se
transformar em árvore. Para que isso aconteça também são envolvidos elementos
constitutivos da causa eficiente: é preciso haver luz, água e elementos
nutritivos adequados para que o arbusto se transforme em árvore. Há,
finalmente, a causa final: a árvore servirá para dar frutos de modo a permitir
a continuação da espécie.
A teoria das quatro causas não serve, obviamente, à explicação dos eventos
causais não teleológicos. Se um asteroide por acaso cai sobre o planeta
Júpiter, ele não tem a ideia de cair em Júpiter, nem é o caso de que dessa
maneira ele realize alguma finalidade, digamos, a de aumentar minimamente a
massa desse planeta gigante.
7
Teologia. Uma outra questão diz respeito ao Deus aristotélico, a
dizer, à definição de metafísica como teologia e investigação das causas
últimas. O argumento se inicia com uma questão acerca do tempo. Teve o tempo um início? A
resposta é que se o tempo tivesse um início então não faria sentido
perguntarmos o que havia antes do tempo. Mas ao usarmos a palavra ‘antes’ já
estamos pressupondo o tempo. O mesmo acontece se nos perguntarmos se o tempo
teria um fim. Nesse caso será possível perguntar o que acontecerá depois do
tempo. Mas ao usar a palavra ‘depois’ nós também pressupomos o tempo. A
conclusão é que o tempo não tem nem início nem fim: o tempo é eterno.
Aristóteles
também percebeu que a passagem do tempo é intrinsecamente ligada à mudança, ao
movimento. Com efeito, nós marcamos o tempo através de relógios que se valem de
mudanças cíclicas com idêntica duração. Era assim nos tempos primevos, quando
os homens contavam os dias através da passagem do Sol e os anos através das
estações. E continua sendo assim ainda hoje, quando fazemos uso de relógios
atômicos. E quando percebemos o passar do tempo é porque a natureza nos dotou
de relógios biológicos internos. Daí segue a conclusão de que a mudança também
é eterna, posto que o tempo, que é eterno, depende dela. E daí também se segue
que em um mundo sem mudança o tempo também não poderia existir.
Opondo-se a tal conclusão alguém poderia tentar conceber um tempo sem mudança,
imaginando que o mundo inteiro se congelasse por um ano, permanecendo durante
todo esse tempo sem qualquer mudança. À primeira vista isso parece possível.
Mas quando imaginamos isso é porque já nos concebemos postados fora do mundo,
de uma perspectiva sob a qual somos plenamente capazes de averiguar a passagem
do tempo, por exemplo, por possuirmos relógios capazes de medir a passagem de
um ano. Ora, nesse caso não estamos mais considerando o mundo como um todo,
pois nós e nossos relógios, que estamos cá fora, também devemos pertencer a
ele. Daí se deixa concluir que não faz sentido dizer que o mundo, agora
entendido como absolutamente tudo o que existe, possa ficar congelado por um
ano, pois ele não poderia incluir relógios capazes de marcar esse tempo. Parece,
pois, que nesse ponto Aristóteles tinha razão.
Tendo concluído que o tempo e a mudança são eternos, Aristóteles se perguntou
sobre a causa última de todas as mudanças, de todos os movimentos, que para ele
não pode ser mera causa eficiente, mas causa final, um telos. Ele
pensava que se o tempo-mudança é eterno, então a causa final do tempo-mudança
precisa ser também eterna. Contudo, aquilo que dá origem as sequências causais
não pode ser algo temporal, pois a admissão disso implicaria em uma causa dessa
causa e em uma progressão infinita de causas finais. Ora, para os gregos, a
ideia de uma progressão realmente infinita era absurda. Como conclusão, deve
existir uma causa que seja incausada, um movente imóvel, que Aristóteles chama
de Deus (theos). Se tempo e mudança se encontram intrinsecamente
ligados, a causa incausada é causa do próprio tempo. Ela deve possuir três
características: ela precisa ser eterna, imóvel e ato
puro. Se não fosse eterna, o tempo-mudança que ela causa não seria eterno.
Se fosse móvel, ela seria causada e não seria mais a causa primeira, o primo
motor. Se contivesse matéria, ela teria potência e seria capaz de mudança.
Logo, ela precisa ser ato puro, o motor imóvel do universo, a razão última do
mundo sensível.
Mas então, como é possível que o Deus aristotélico movimente sem se movimentar?
Ora, precisamente porque ele não é causa eficiente, mas causa final. Para
Aristóteles, da mesma forma que somos atraídos pelo bem e pelo belo, somos
atraídos por Deus. O primo motor move o mundo da mesma forma que o
objeto amado atrai o amante. O “amor” é o que move o mundo em direção à
perfeição. Quanto a esse Deus imaterial, direcionador do universo, Aristóteles
especulava que ele devesse ser puro pensamento. Como esse
pensamento deve ser perfeito, ele não pode pensar em nada que seja inferior a
si mesmo, pois fazê-lo seria degradar-se. Por isso ele só pode ser o pensamento
que se pensa a si mesmo, o pensamento do próprio pensamento.
Estamos aqui muito longe do Deus pessoal da cristandade, que criou o
mundo e responde aos clamores humanos e mesmo das deidades mitológicas, que
intermediavam as ações humanas nos poemas épicos que os gregos tanto prezavam.
O Deus aristotélico não se preocupa com o mundo, não interage com ele. Somos
nós que, em nossa busca pela perfeição, movemo-nos em direção a ele.
Não satisfeito com isso, o biólogo Aristóteles adicionou que se Deus é
pensamento então ele é vivo. Afinal, pensamento e inteligência são inerentes à
vida. Como ele escreveu:
Se nessa feliz condição em que às vezes nos
encontramos Deus se encontra perenemente, isso nos enche de maravilha. E se ele
se encontra numa condição superior é ainda mais maravilhoso. E ele se encontra
efetivamente nessa condição. E ele também é vida porque a atividade da
inteligência é vida. E ele é precisamente essa atividade. E essa atividade
subsistente por si é vida ótima e eterna.
Diversamente
do Deus cristão, o movente último aristotélico não pode ser onisciente nem
onipotente, posto que ele nem pensa o mundo nem opera sobre ele. Mas ele não é
só eterno como também onipresente: para Aristóteles esse último movente imóvel último
permeia todo o universo e tudo faz mover. Sendo assim, ele também se encontra
dentro de nós, induzindo-nos à busca da perfeição. O narciso teológico divisado
por Aristóteles, como o pensamento do que há de mais excelente, ou seja, ele
mesmo, é pura felicidade e em sua contemplação também consiste a nossa maior felicidade.
Aristóteles queria saber quantas substâncias imóveis existem na esfera celeste
e, como entendia pouco de astronomia, atrapalhou-se nos cálculos. Primeiro
acreditou que o número de movimentos celestes rotatórios dos planetas fosse 55,
o que significava que o número de substâncias puras imóveis subjacentes a esses
movimentos deveria ser o mesmo. Depois baixou para 47, mas esqueceu-se os
movimentos da lua. Como acreditava haver para
além das estrelas fixas ainda uma causa incausada superior às outras e capaz de
ordená-las, ele sugeriu a existência de um movente último, o primo motor,
terminando seu livro com uma citação de Homero: “A lei de muitos não é boa;
deixem que exista um só legislador”. Indiferente a semelhantes
hesitações, o cristianismo transformou o primo motor aristotélico
em Deus e as outras substâncias puras em inteligências angélicas.
Einstein dizia que as ideias vêm de Deus, que se demonstra nas leis
eternas que regem o universo. Ingmar Bergman notou que Deus está no coração dos
homens. C. S. Peirce postulou uma suposta evolução por amor criativo operando
no cosmo (o agapismo). Teóricos do caos falam de organização espontânea e de
atratores estranhos, sendo perceptível uma tendência universal à ordem. Apesar
de a terceira lei da termodinâmica prever a morte do universo pelo constante e
inevitável aumento da entropia, há princípios de organização, como o da criação
da vida, que concentram energia, ainda que na função última de aumentar a
entropia (a dissipação de energia) do sistema como um todo. Não é indiscutível
que algo próximo ao conceito aristotélico de Deus seja pura metáfora poética inteiramente
irresgatável. Não é impossível que existam mais coisas entre o céu e a terra do
que nossa vã ciência nos tem permitido admitir.
8
Ética. Nos tempos de Aristóteles não existia distinção
entre ciência e filosofia e as ciências existiam em geral de forma embrionária.
Assim, não importa considerar aqui sua detalhada divisão das ciências. É hoje
mais usual que nos apropriemos dessa divisão distinguindo entre dois domínios
gerais da filosofia: teórica e prática. Podemos caracterizar
a filosofia teórica como concernente ao mundo e ao nosso acesso a ele (ao
input do mundo sobre nós), enquanto a filosofia prática pode ser
caracterizada como concernente a nossa resposta a esse acesso junto aos
produtos dessa resposta (ao nosso output sobre o mundo).
Nesse
sentido atual podemos dizer que a filosofia teórica tem tradicionalmente, como
ramos principais, a metafísica e a epistemologia, além de outros mais
específicos como, digamos, a filosofia da ciência. A metafísica investiga os
constituintes últimos da realidade, enquanto a epistemologia investiga nosso
acesso cognitivo a esses constituintes e ao mundo em geral. Já a filosofia
prática tem a ver com a investigação da ação humana e de seus produtos.
Tradicionalmente, a ênfase na ação humana tem como objeto central a ética, mas
ela também inclui coisas como a teoria da ação. Já no que diz respeito aos
produtos da ação humana, podemos incluir a filosofia da cultura, da política, da
história, da arte, etc. A mais conhecida contribuição de Aristóteles depois de
sua metafísica foi para a ética.
Antes de dizer algo sobre a ética aristotélica convém fazer um mapeamento geral
das concepções morais. Existem três momentos da ação moral. O primeiro deles é
o da intenção: uma pessoa pode querer fazer o bem ou o mal. O
segundo é o da ação: a pessoa realiza uma boa ou má ação. O
terceiro é o da consequência da ação, que também pode ser boa
ou má. Geralmente, a boa intenção conduz a uma boa ação, a qual conduz a uma
boa consequência. Mas nem sempre é assim.
As éticas que põem a origem dos valores morais na intenção do
agente são chamadas de éticas da virtude. Esse foi o caso das
éticas gregas em geral, que não eram individualistas e tinham como fim mostrar
como o cidadão poderia, para o bem geral, melhor servir à polis. As
éticas que colocam a origem do valor moral na própria ação são ditas deontológicas.
Elas procuram estabelecer regras diferenciadoras da boa (ou má) ação, a exemplo
dos dez mandamentos do Antigo Testamento. Finalmente, há as éticas que
põem a origem do valor moral na consequência da ação. Essas
são as éticas consequencialistas. Há também três tipos de consequencialismo:
o egoísmo ético, defendendo que o bem deriva de cada um procurar obter
o melhor para si mesmo (ex.: uma sociedade de celerados); o altruísmo
ético, defendendo que o bem deriva de cada um procurar fazer o melhor para os
outros membros da comunidade (ex.: os Amishes); e o utilitarismo, defendendo
que cada um deve procurar fazer bem a todos, incluindo a si mesmo (ex.: os
índios Pirahã). Eis o esquema geral:
ÉTICA DA VIRTUDE
(intenção)
ÉTICA
DEONTOLOGIA
(ação) Egoismo ético
CONSEQUENCIALISMO Altruismo
ético
(efeitos)
Utilitarismo
(utilitarismo hedonista)
Certamente,
tanto a intenção quanto a ação e a consequência têm importância moral. Além
disso, é claro que quando julgamos uma ação isolada, o que mais nos importa
avaliar é a intenção do agente. Uma pessoa pode, com a melhor das boas
intenções, realizar uma ação que, contra todas as expectativas, se demonstra
funesta! Nesse caso ela não poderá ser considerada culpada. No caso individual,
a direção do valor moral tende a ser da intenção para a ação e da ação para o
efeito.
Não obstante, muito diferente é o que acontece
quando consideramos a fixação dos valores em uma sociedade ao longo do tempo.
Do ponto de vista do que em uma sociedade ao longo do tempo acaba por ser
estabelecido como possuindo maior valor moral, aquilo que realmente importa são
as consequências. Geralmente, quando as consequências de certos tipos de ações
humanas em uma sociedade se demonstram sempre boas, isso acaba por levar à
formação de regras que, uma vez seguidas, trazem boas consequências, tornando
as ações dos que as seguem boas. (Por exemplo: imagine uma sociedade na qual os
porcos estejam infestados de cisticercos causadores de teníase e que os líderes
religiosos, percebendo a relação entre o alimento e a doença, decidem instaurar
a regra de que Deus proibiu o povo de se alimentar de carne de porco... A
atitude resultante torna-se boa pelo seu bom efeito.) Sendo assim, é a
permanência de consequências geralmente boas resultantes de um prolongado
seguimento das regras que as produzem aquilo que passamos a chamar de
virtude... Isso significa que as regras que fazem derivar boas ações podem mudar
com a realidade social. Alasdair MacIntyre mostrou que essas regras podem sofrer
alterações no curso da história: nos tempos homéricos a força física era
considerada uma virtude, uma vez que através dela a sociedade era protegida...
Nos romances de Jane Austen a constância torna-se uma virtude maior, uma vez
que ela costuma ser um ingrediente indispensável para assegurar um casamento
bem sucedido... Vê-se
que na formação das regras e dos valores morais de uma sociedade a direção é
do efeito para a regra e da regra para a intenção.
A conclusão desse raciocínio é que o centro irradiador último do valor moral é
para ser encontrado nas éticas consequencialistas. Mas qual delas? O egoísmo
ético tem poucas chances. Ele tem a limitação de restringir a felicidade
social: quando cada qual age só pensando em seu próprio bem, resta pouco lugar
para o amor, para a amizade, para o exercício do que há agradavelmente social na
natureza humana. Uma dificuldade encontrada em algumas sociedades hoje
economicamente muito desenvolvidas é que as pessoas “vivem para si mesmas”,
sendo o bem comum mediado por leis impessoais, restando pouco espaço para o
desenvolvimento de formas naturais de interação altruísta. O altruísmo ético
também possui suas limitações. Ele tem a desvantagem de limitar a liberdade
individual. Esse é o caso de sociedades como a dos Amishes, nas quais
vivencia-se um altruísmo coletivo capaz de fazer bem a todos, mas sob um preço,
que é a imposição de um forte compartilhamento de gostos e valores através do
qual a liberdade de desenvolvimento individual de seus membros fica comprometida.
Isso
nos leva a pensar que o melhor dos consequencialismos deva ser aquele que
propõe um equilíbrio entre o egoísmo e o altruísmo: o utilitarismo.
Segundo o utilitarismo, a boa ação é aquela da qual resulta um bem maior para
todos, incluindo o próprio agente. Uma forma adequada de utilitarismo poderia
ser capaz de determinar as melhores regras e as melhores virtudes para certa
sociedade. Desenvolver
uma forma adequada de utilitarismo é, contudo, uma tarefa espinhosa, muito mais
complexa do que se possa pensar à primeira vista.
Aristóteles, mais interessado na ética da virtude, via a função da moralidade
como a de maximizar a felicidade (eudaimonia) coletiva de modo a
possibilitar a boa vida na sociedade através de valores gerados no
interior da polis. Em vista disso ele inventou a moralidade
do justo meio. A ação moralmente
correta é aquela realizada por um agente que sabe escolher o justo meio entre o
extremo do excesso e o extremo da falta. Assim, uma pessoa corajosa é aquela
que sabe escolher o justo meio entre a temeridade e a covardia. Uma pessoa generosa
é aquela que sabe escolher um adequado meio caminho entre a avareza e a
prodigalidade. Uma pessoa justa é a que é capaz de escolher o meio caminho
entre os ganhos e as perdas... Certamente, não se trata de um cálculo
aritmético, de uma “ética do medíocre”. As medidas devem ser calibradas em
concordância com a natureza dos agentes e das circunstâncias envolvidas. David
não seria corajoso, mas temerário, se decidisse travar uma luta corpo a corpo
com Golias. O cangaceiro Lampião observava a tática de fugir sempre que se via
em desvantagem. Mas ele não fazia isso por covardia e sim por bom senso.
Também interessante é que para Aristóteles o comportamento virtuoso é algo que
pode ser socialmente aprendido: é como aprender a acertar os dardos no centro
do alvo. É preciso exercício e experiência junto às pessoas certas em uma comunidade
suficientemente bem ordenada para que a pessoa se torne hábil em escolher
melhor o justo meio. O velho bordão “junta-te aos bons e serás um deles”
encontra aqui sua justificação teórica.
Uma
questão que surge é sobre quem decide qual é o justo meio. Um senhor de
escravos pode pretender se comportar segundo o justo meio da sociedade em que
vive. Ele será considerado virtuoso pelos seus pares e em alguns casos até
mesmo pelos seus escravos, mas nada do que fizer será considerado muito virtuoso
pelos que avaliam de fora as regras de uma sociedade perversa. A aplicação da ética
do justo meio demanda aqui considerações adicionais.
Sua
vocação científica não era ilimitada. Como notou A. E. Taylor, embora ele conhecesse história natural, para outras ciências empíricas ele era mal preparado. Diversamente de Platão,
ele não acreditava no movimento da terra, rejeitava o atomismo e a posição de
médicos como Hipócrates, segundo a qual o cérebro e não o coração é o centro do
sistema nervoso. A. E. Taylor, Aristotle (Dover
1955), pp. 61-62.
W.
K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (Cambridge University Press 1981), p. 221. Ver também A. E. Taylor, Aristotle (Dover
1955), pp. 61-62.
Para mais detalhes, ver Giovanni Reale, Aristóteles:
Metafísica – Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de
Giovanni Reale (Loyola 2001), volume I, pp. 27-32.
Metaphysics, in The Complete Works of Aristotle, ed. Jonathan
Barnes, vol. II. (Princeton University Press 1984), livro III, 1003a 20-26. Ver
também Giovanni Reale: Aristóteles: Metafísica – Ensaio introdutório, texto
grego com tradução e comentário de Giovanni Reale (Loyola 2001), vol. 2. Cf.
também a tradução de Edson Bini.
A. E.
Taylor, Aristotle. (Dover 1956 (1916)), p. 42.
Da
Interpretação, 17a 38.
Metafísica 1034a
5-8 (meus itálicos).
D. C. Williams, 1953a, “On the
Elements of Being I,” Review of Metaphysics, 7(1): 3–18. “On the
Elements of Being II,” Review of Metaphysics, 7(2): 171–192.
Aristóteles: Física I, sec. 8
Convém notar que a admissão de
que Deus seja ato puro e de que existam substâncias imateriais (Deus, as
inteligências celestes, a razão humana) é inconsistente com o insight mais fundamental
do hilomorfismo aristotélico. Essas substâncias deveriam ser formas sem
matéria, em outras palavras, deveriam ser formas ou ideias universais
supostamente imutáveis, tal como as ideias platônicas. Mas Aristóteles não
primava pela consistência quando se tratava de introduzir elementos platônicos
em seu empirismo.
Aristóteles: Metafísica 1072b 24-28.
Alasdair MacIntyre: Depois da virtude (EDUSC 2001).
Ver “Razões para o
utilitarismo (uma introdução utilitarista à ética)”, in Claudio
Costa: Arquiteturas Conceituais (Dialética 2022).
Aristóteles: Ética
a Nicômano, Livro II, sec. 6.