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If you wish to be acquainted with my groundbreaking work in philosophy, take a look at this blogg. It is the biggest, the broadest, the deepest. It is so deep that I guess that the narrowed focus of your mind eyes will prevent you to see its full deepness.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Claudio Costa: PHILOSOPHICAL TEXTS - TEXTOS DE FILOSOFIA

               THIS "BLOG" WAS IDEALIZED TO MAKE MY WORK IN PHILOSOPHY MORE ACCESSIBLE. IT CONTAINS MORE THAN 100 WRITINGS, THOUGH USUALLY IN DRAFT FORMS, IN ENGLISH AND/OR PORTUGUESE. THE PAPERS WITH INTEREST FOR THE RESEARCHER WERE MARKED WITH #.

ESSE "BLOG" FOI IDEALIZADO COMO UMA MANEIRA DE TORNAR MEU "FABULOSO" TRABALHO FILOSÓFICO FACILMENTE ACESSÍVEL A PESSOAS LEGITIMAMENTE INTERESSADAS EM FILOSOFIA. ELE CONTÉM MAIS DE 100 ESCRITOS, EM GERAL ESBOÇOS, MUITOS DELES EM PORTUGUÊS. ALGUNS SÃO DIDÁTICOS, OUTROS NÃO. OS TRABALHOS DE INTERESSE PARA PESQUISADORES FORAM MARCADOS COM #



FROM MY CURRICULUM

I was born in old Vila Seropedica, near Rio de Janeiro, Brazil, in 1954. After an intellectually boring undergraduate study in medicine, I gained my MS in philosophy at the IFCS (Rio de Janeiro) and a Ph.D. in philosophy at the University of Konstanz (Germany). Since 1992, I have worked as a researcher and professor at the UFRN (Natal), secluded in the beautiful Northeast of Brazil, though always in contact with the international philosophical discussion through many grants taken at the universities of Konstanz, Munich, Berkeley, Oxford, Göteborg, and École Normale Supérieure (INS). The UFRN gave me a lot of intellectual freedom, an indispensable condition for independent work. 

Despite my usual focus on contemporary analytic philosophy, I disagree with mainstream philosophy's lack of comprehensiveness. 

The books I am not ashamed to have written are "The Philosophical Inquiry" (Lanham: UPA, 2002), which develops a thesis on the nature of philosophy, Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions" (Cambridge Scholars Publishing, 2014), and "Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy" (Cambridge Scholars Publishing, 2018). The book from 2014 is a selection of essays (some of them, in my humble view, really relevant), while the long book from 2018 can be read as a comprehensive analysis of a cluster of concepts regarding philosophical methodology, the concept of meaning, verificationism, and truth, based on the investigations of philosophers of language from Frege to Wittgenstein. The last published book, "How Do Proper Names Really Work?" (De Gruyter 2023), aims to overthrow the old stalemate between the new and the old orthodoxy in the philosophy of language.

I have social dyslexia (a light form of autism). This means little contact with the outside world. This is good for intellectual independence, though it makes the divulgation of ideas a hard task.


SOME BOOKS (ALGUNS LIVROS):



This book completely renews our theories of reference



 





















SOBRE A NATUREZA DA FILOSOFIA (1-4)


 O livro do mesmo nome está sendo publicado pela editora DIALÉTICA. Aqui no blog algumas correções estilísticas menores foram feitas.

 

 


SOBRE A NATUREZA DA FILOSOFIA

 

 

 

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Claudio Costa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ἡ Σίβυλλα μαίνεσθαι φθέγξεται ἀστολιστὶ καὶ ἀκαλλώπιστα καὶ ἀμύριστα, διαπεραίνουσα χιλίων ἐτῶν φωνῇ διὰ τοῦ θεοῦ.*

   Heráclito

 

Nun scheint mir, gibt es ausser der Arbeit  des Kunstlers  noch  eine  andere,  die   Welt   sub specie aeterni einzufangen. Es ist – glaube ich, der Weg des Gedankens,  der  gleichsam  über die Welt hinfliege und sie so lässt,  wie sie  ist – sie von oben von Fluge betrachtend.**

                                            Ludwig Wittgenstein

                                               

Science is what we know; philosophy is what we don’t know. (…) Science is what we can prove to be true; philosophy is what we can’t prove to be false.***

                                            Bertrand Russell

 

The gem is of purest ray serene, but it is condemned to remain in the dark, unfathom’d caves of ocean; the flower has its swetness, although it is wasted in the desert air.****

   Robert Merton

 

 

 

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* A sibila, com boca raivosa, proferindo palavras sem riso, sem adorno e sem incenso, alcança mais de mil anos pelo deus que nela habita.                  

** Assim parece que junto ao trabalho do artista há ainda outro, que é o de capturar o mundo sub specie aeterni. É – eu creio, o caminho do pensamento que, por assim dizer, voa sobre o mundo deixando-o como está – visto de cima, de seu voo.

*** Ciência é o que conhecemos; filosofia é o que não conhecemos. (...) Ciência é o que podemos provar que é verdadeiro; filosofia é o que não podemos provar que é falso.

**** A joia é de raio sereno e puríssimo, mas está condenada a permanecer nas cavernas escuras e insondáveis do oceano; a flor tem sua doçura, embora se perca no ar do deserto.

 

 

 

 

 

                                                 SUMÁRIO

 

 

 

                PREFÁCIO

 

                APRESENTAÇÃO

 

I.                   INTRODUÇÃO: OBJETIVOS E METODOLOGIA

1. Observações Metodológicas

 

II.                FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL

1.     Os atalhos da crítica da linguagem

2.     Filosofia como análise da linguagem

3.     A falácia objetal na filosofia analítica

4.     Para concluir: um paralelo com o Organon aristotélico

 

III.             FILOSOFIA COMO ANTECIPAÇÃO CONJECTURAL DA CIÊNCIA

1.     O caráter inevitavelmente conjectural da indagação filosófica

2.     A ideia da filosofia como protociência

3.     Origens e divisões da ciência

4.     Alguns exemplos de insights filosóficos protocientíficos

5.     Fissão

6.     O núcleo resistente de problemas filosóficos residuais: duas hipóteses

7.     Nossa ideia geral da ciência

8.     Por uma concepção não-restritiva de ciência

9.     Filosofia como protociência

10. Consequências da concepção proposta

11. Filosofia analítica: da decadência ao desastre

 

IV.            RELIGIÃO E OS REMANESCENTES MÍSTICOS DA FILOSOFIA

1.     Filosofia e religião: a abordagem genética

2.     A lei comteana dos três estágios

3.     Uma breve avaliação da lei de Comte

4.     Filosofia como uma indagação transitória entre religião e ciência

5.     Conclusões

 

V.               A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E ARTE

1.     O sabor artístico de alguns escritos filosóficos: similaridades externas

2.     Similaridades internas entre filosofia e arte

3.     Considerações adicionais

 

VI.            PARA UMA EXPLICAÇÃO ABRANGENTE: INTEGRANDO

          AS CONFIGURAÇÕES CRITERIAIS

1.     Filosofia como uma atividade cultural derivada

2.     Uma explicação integradora da atividade filosófica

3.     O triângulo metafilosófico

4.     Para exemplificar

 

VII.         COROLÁRIOS E PROSPECTOS

1.     Formas da Filosofia

2.     Três tradições filosóficas

3.     Três períodos históricos na evolução da filosofia

4.     A filosofia linguístico-analítica nas rodas da história

5.     O futuro da filosofia

 

 

     REFERÊNCIAS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                              PREFÁCIO

 

 

 

Há muitos anos publiquei um pequeno livro intitulado The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (UPA, 2002). Escrevi-o em 1999, enquanto pesquisador visitante, sob os auspícios da CAPES, na Universidade da Califórnia em Berkeley, enquanto assistia aos formidáveis cursos de John Searle.

     Apesar da avaliação bastante positiva do parecerista da editora, o livro foi o primeiro dentre os vários natimortos que, desde então, publiquei em inglês – trabalhos que jamais receberam sequer uma resenha. Também, pudera! Recolhido em um autoimposto exílio no acolhedor Nordeste do Brasil, portador de dislexia social (termo que prefiro à palavra ‘autismo’), condição que me permitiu obter a benesse de uma limitação ergonômica como professor da UFRN, eu vivia em quase completo isolamento pessoal e intelectual. Esse isolamento me trouxe ao menos um bônus: independência e liberdade intelectual para pesquisar o quanto, como e o que eu quisesse, mas com o ônus da invisibilidade e da mais completa ignorância sobre como a comunidade de ideias e o mercado editorial funcionam. Daí que, à época, eu ignorava que as grandes editoras anglo-americanas detêm monopólio de um mercado majoritariamente voltado para bibliotecas universitárias, mesmo que isso tenda a gerar um círculo vicioso. Para piorar, essas grandes editoras acadêmicas, como a OUP e MIT-Press, sempre se recusaram a avaliar manuscritos de um completo outsider como eu. Afinal, quem levaria a sério livros escritos por um estrangeiro desconhecido, sem mencionar ocultos interesses corporativistas? Restou-me publicar em editoras de menor peso, como a UPA, a CSP e até mesmo a tradicional De Gruyter, o que, acrescido à minha rejeição da mainstream, não parecia de bom augúrio.

     Em 2005, decidi traduzir o livro para o português e publicá-lo pela editora de minha universidade. O que eu não sabia era que a editora não fazia distribuição. Ou seja: ainda hoje você poderá encontrar os exemplares guardados no depósito!

     Mas sou persistente e aprecio meu trabalho, razão pela qual é nele que encontro minha maior recompensa (Tolstoy). Esta nova edição, com um título mais apropriado, contém uma versão que, de tanto ser revisada, acabou se transformando em um novo livro, que do primeiro guarda apenas a espinha dorsal.

     Há pessoas às quais devo a mais sincera gratidão por terem contribuído para a formação de alguns valores intelectuais que sustentam minhas ideias metafilosóficas. Meus professores Raul Landim e Guido Antônio de Almeida, que juntamente com meus ex-colegas Fernando Fleck e Fernando Rodrigues, foram os primeiros a me mostrar, há muitos anos, a importância da tradição filosófica; Ernst Tugendhat, que me influenciou por sua defesa intransigente de uma visão unificada do trabalho filosófico; John Searle, que me acolheu em Berkeley quando escrevi a primeira versão do livro, e que foi, em seus cursos, um exemplo vivo de como se pode realizar um trabalho independente e criativo em filosofia; Susan Haack, que me advertiu sobre as dificuldades envolvidas na realização de um trabalho realmente autônomo dentro do escolasticismo vigente na filosofia contemporânea.

     Agradecimentos especiais ao professor Peter Stemmer, que me recebeu em Konstanz durante o turbulento ano sabático de 2021, e ao professor Francesco Orilla, que, nessa mesma época, gentilmente me convidou a expor minhas ideias sobre metafilosofia na Universidade de Macerata. Sou também grato aos professores e amigos Cinara Nahra e Eduardo Maciel, pelo apoio cultural e humano. Acima de tudo, agradeço à Rita Cristina Fressa, a quem devo mais do que seria capaz de reconhecer.

     Por fim, preciso admitir que a culpa de tudo o que se vai ler aqui é exclusivamente minha.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

APRESENTAÇÃO

 

 

Desejo começar com um breve resumo das ideias centrais deste livro, de modo que seu eventual leitor possa perceber o fio condutor em meio a um texto repetitivo e marcado por digressões. Meu objetivo principal foi esboçar uma teoria metafilosófica da natureza da filosofia, mais sistemática, mais complexa e, no juízo de seu autor, muito superior a eventuais concorrentes.

     Esse trabalho de teorização desenvolveu-se como uma tentativa de esclarecer o lugar cultural dos problemas centrais legados pela tradição, mas também se estende parcialmente a outras formas quaisquer de indagação filosófica. Tal abrangência só se tornou possível por se tratar de uma teoria formulada sob uma perspectiva externa a essas formas, o que permite um olhar histórico-cultural mais amplo do que o oferecido por qualquer metafilosofia específica. A ideia geral que apresentarei a seguir não é inédita, mas o que importa é sua exploração. Afinal, ter um caso suficientemente duradouro e aprofundado com uma ideia não é o mesmo que ter tido um encontro meramente casual com ela.

     A teoria que desenvolvo neste livro nasceu de uma investigação das conexões entre a filosofia e três atividades culturais mais fundamentais: ciência, religião e arte. Ao considerar essas relações, a filosofia é concebida como uma atividade cultural derivada – uma amálgama de elementos originalmente presentes no compromisso com a busca da verdade que se espera do pensamento científico, no ímpeto holístico inerente à religião e nos recursos metafóricos e polissêmicos próprios da arte.

     Talvez o exemplo mais emblemático dessa amálgama seja a filosofia de Platão. Em sua obra, revela-se uma busca pela verdade, em um esforço que se expressa nos argumentos que visam compreender nosso estar no mundo, incluindo momentos de severa autocrítica, como ocorre na primeira parte do diálogo Parmênides. Também em Platão encontramos uma dimensão místico-totalizante, manifesta em seu aceite de um reino transcendente das ideias e no apelo aos mitos órficos. Por fim, sua filosofia apresenta um forte elemento estético, evidente na estrutura dramática dos diálogos, no estilo refinado, na ironia, nas alegorias e nos mitos que permeiam sua escrita.

     Por razão de clareza, podemos representar graficamente as três atividades culturais originárias, a ciência, a religião e a arte, como situadas sobre os vértices de um triângulo metafilosófico no interior do qual se encontra a filosofia, como no gráfico abaixo:

 

                                                   CIÊNCIA

 

 

 

                                                 FILOSOFIA

 

     RELIGIÃO                                                                      ARTE

 

Dependendo da posição que uma filosofia ocupa no interior do triângulo, podemos identificar diferentes formas de filosofia: a de Platão, por exemplo, mais próxima do centro; a de Locke, algo mais próxima do vértice científico; a de Hegel, mais próxima do vértice religioso; a de Nietzsche, mais próxima do vértice artístico. A de Heidegger mais próxima do lado religioso-artístico. A mesma coisa vale para as tradições filosóficas: de modo geral, a filosofia anglo-americana tende a se aproximar do vértice científico; a filosofia alemã, do vértice religioso; e a filosofia francesa, do vértice artístico.

     Como estratégia, foram investigadas as semelhanças e diferenças entre a filosofia e essas outras formas de atividade cultural. Em sua proximidade com a ciência, a filosofia revelou-se um esforço direcionado à aproximação da verdade e de resultados efetivos, ainda que, por sua própria natureza, não possa alcançar uma forma plena sem transformar-se em ciência.

     Em sua relação com a religião, ela mostrou-se inclinada a ampliar ao máximo a abrangência, profundidade, elevação e direcionamento de suas sínteses, incorporando elementos especulativos que inevitavelmente extrapolam os limites da investigação racional.

     Por fim, em sua afinidade com a arte, a filosofia pôde ser concebida como uma “arte da razão”, por sugestão: uma prática que integra – ou tensiona – elementos conceituais, recorrendo à criatividade, à liberdade e à flexibilidade proporcionadas pela força metafórica e polissêmica própria da atividade artística.

     As relações entre filosofia, religião e arte foram concebidas como dinâmicas, sujeitas a transformações ao longo da história. A filosofia ocidental nasceu na Grécia antiga, em substituição às respostas mitológicas, o que não demonstra que ela própria não possa ser substituída. Aqui pode-se notar que, com o gradual, mas constante, e hoje exponencial desenvolvimento da ciência, a filosofia tem, aos poucos, se aproximado mais da ciência e perdido parte de seus elos com a religião e com a arte, além de ceder à ciência parcelas que outrora lhe eram constitutivas.

     O caráter dinâmico da relação entre filosofia e ciência me levou a supor que grande parte da filosofia possa ser concebida, mesmo em seus núcleos historicamente centrais, como um esforço conjectural ou especulativo antecipador da ciência – aquilo que denominei “protociência”. Essa hipótese é reforçada pelo fato de que as ciências básicas, como a física, a química e a biologia, foram todas especulativamente antecipadas pela filosofia.

     Contudo, a concepção da filosofia como um simples berçário das ciências tem sido frequentemente apresentada como limitadora e empobrecedora de nossa compreensão da atividade filosófica. Essa crítica revela-se pertinente sempre que temos em vista uma concepção estreita, de cunho cientificista e reducionista, do que se entende por ciência ou mesmo por filosofia.

     Não obstante, o conceito de ciência por mim adotado é suficientemente liberal e flexível para evitar tais dificuldades. A ideia central pode ser encontrada em John Ziman, um físico que investigou o funcionamento social da ciência do ponto de vista do que os cientistas realmente chamam de ciência, definindo-a como conhecimento público passível de consenso.

     Desenvolvendo a linha proposta por Ziman, defendi que a concepção mais intuitiva e plausível da natureza da ciência é aquela que a define como qualquer investigação cujos resultados são verdades susceptíveis de legitimação consensual por uma comunidade crítica de ideias. Essa comunidade é entendida como aquela que satisfaz, de forma suficiente, exigências como as de competência, veracidade, transparência e liberdade – condições essenciais para a obtenção de consenso legítimo quanto à verdade de suas conclusões.

    Esse consenso legítimo, por sua vez, só pode ser alcançado quando o objeto da investigação atende a condições mínimas de objetividade, como o reconhecimento consensual, por parte da comunidade científica, do que se conta como dados elementares e dos procedimentos válidos para a aproximação da verdade – condições que irão variar muito de ciência para ciência. Uma vez satisfeitos tais requisitos, torna-se possível formar uma comunidade crítica de ideias capaz de produzir acordos consensuais legítimos acerca da verdade ou falsidade dos resultados obtidos – um privilégio que pseudociências como a astrologia não possuem.

     Diante de uma concepção tão liberal e flexível de ciência, torna-se natural reconhecer a possibilidade de que grande parte da tradição filosófica revele um caráter antecipador daquela. A filosofia configura-se aqui, por contraste, como uma indagação voltada para a verdade que, embora desenvolvida sob a pressuposição de uma comunidade crítica de ideias – aqui entendida como o resultado de uma tradição de pensamento com um lastro crítico cumulativo – não se mostrou, em seu tempo, capaz de alcançar a possibilidade de obter acordos consensuais legítimos sobre a verdade ou a falsidade dos seus resultados.

     A assimetria complementar entre filosofia e ciência, nesse contexto, é evidente, embora tenda progressivamente a se dissipar, sobretudo ao reconhecermos que ciências básicas foram especulativamente antecipadas pela filosofia.

     Uma consequência importante de adotar a concepção de filosofia como conjectura que, naquilo que possui de verdadeiro, pode antecipar um conhecimento passível de legitimação consensual, é a relativização – e não a simples refutação – da ideia de que a filosofia consiste em uma atividade de análise conceitual. Essa ideia, quando examinada com atenção, remonta às indagações socráticas do tipo “O que é X?”, nas quais X representa um termo conceitual a ser analisado – em geral, termos como ‘coragem’, ‘amizade’, ‘conhecimento’, ‘justiça’, ‘o bem’. No presente caso, o X é a palavra ‘filosofia’. Daí que os métodos que empregarei para analisar o conceito de filosofia não são, realmente, mais do que uma forma de fazer o que, desde Sócrates, constitui o modus operandi da prática filosófica.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                            I

 

INTRODUÇÃO: OBJETIVOS E METODOLOGIA

 

Philosophy is not at its most interesting when it is talking about itself.

[A filosofia não é a mais interessante quando fala de si mesma.]

Bernard Williams

 

 

Entre os muitos problemas filosóficos, o da natureza da filosofia não é certamente o mais importante nem o mais instigante. Não obstante, ele é o mais desconfortável para o filósofo. Afinal, como pode alguém pretender produzir algo que chama de ‘filosofia’, ou mesmo praticá-la corretamente, se não é sequer capaz de nos dizer o que está tentando fazer?

     Esse livro se propõe a explicar o que podemos entender com a palavra ‘filosofia’; esclarecer a natureza de seu questionamento, não sob uma perspectiva particular, mas com base em um exame abrangente das conexões da filosofia com outras atividades culturais, levando em conta também sua existência como fenômeno sócio-histórico.

     Uma objeção recorrente à tentativa de prover uma explicação unificada da natureza da filosofia é que se trata de uma disciplina tão multifacetada e mutável que qualquer tentativa de ajustá-la a um arcabouço teórico apropriado estaria sempre fadada ao fracasso. Afinal, as nuvens não se classificam por suas formas. No entanto, seria mesmo impossível investigar a filosofia teoricamente? Talvez, se partíssemos de critérios oriundos de uma perspectiva suficientemente genérica e flexível, pudéssemos delinear seus contornos com alguma sistematicidade? Afinal, de uma forma suficientemente vaga, a meteorologia já de há muito classifica as nuvens, genericamente, por suas formas.

     Nos capítulos seguintes, pretendo demonstrar que é possível construir uma abordagem teórica geral da natureza da filosofia. Ao longo deles, uma sequência de argumentos será articulada para elaborar um arcabouço conceitual suficientemente amplo e robusto para identificar e mapear as regiões mais relevantes do território filosófico. Antes de avançarmos, contudo, algumas considerações metodológicas preliminares se justificam.

 

 

1. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

 

Há dois aspectos metodológicos que merecem consideração. O primeiro refere-se à distinção entre duas abordagens distintas da natureza da filosofia: a prescritivista e a descritivista.

     A abordagem prescritivista ambiciona definir o que a filosofia deveria ser. Ela é uma proposta normativa sobre o que merece ser chamado por esse nome. Para ilustrar essa diversidade de concepções, reuni aqui algumas entre as muitas já apresentadas ao longo da história.

     Durante o conturbado período helenista (povoado por guerras, levantes e incertezas), em escolas como a epicurista, a cética, a cínica e a estoica, a filosofia era sobretudo imbuída de um caráter prático. Ela era, acima de tudo, um exercício espiritual voltado à conquista de uma vida de sabedoria, capaz de nos proteger dos males que nos afligem.[1]

     Para Plotino, filósofo de forte inclinação mística, a filosofia era “o supremamente precioso”: um exercício dialético de ascensão espiritual da alma rumo à união com o princípio inefável que ele denominava “Uno”.

     Saltando quase dois milênios, Edmund Husserl, fundador da fenomenologia, propôs que a filosofia deveria ser uma ciência rigorosa das estruturas essenciais da consciência.[2] Já seu discípulo rebelde, Martin Heidegger, via a filosofia como uma investigação do “sentido do Ser” (was der Sinn von Sein überhaupt ist), entendido como aquilo que torna possível qualquer ente.[3]

     Ludwig Wittgenstein, um dos introdutores da filosofia analítica, concebia a filosofia como um método para alcançar clareza conceitual, capaz de apaziguar nossas inquietações — uma espécie de terapia contra o enfeitiçamento do entendimento pelos meios da linguagem.[4]

     Para os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, a filosofia é a arte de inventar e criar conceitos que nos permitam pensar o novo.[5] Em franco contraste, o positivista lógico Rudolf Carnap defendeu que a filosofia deveria limitar-se à investigação da sintaxe lógica da linguagem científica.[6]

     O problema das prescrições filosóficas é que refletem apenas aquilo que determinados filósofos acreditavam que a filosofia deveria ser, com base em suas próprias concepções. Isso, entretanto, não oferece qualquer garantia de que tais definições possam ser generalizadas para outros casos ou tradições que também reivindicam o nome de filosofia.

     Uma abordagem prescritivista não pode ser dita verdadeira ou falsa simplesmente por ser comparada à prática histórica da filosofia, posto que não é uma abordagem destinada a esclarecer essa prática. Com relação à história efetiva da filosofia, a abordagem prescritivista só pode ser bem-sucedida se for adotada, e mal-sucedida se for ignorada.

   Embora a não-adoção seja, em geral, a regra, algumas prescrições filosóficas alcançaram considerável êxito. O existencialismo, por exemplo, que coloca o indivíduo, em sua experiência de estar no mundo, no centro da reflexão, foi inaugurado por Sören Kierkegaard e exerceu profunda influência sobre filósofos como Heidegger, Sartre e Camus. No entanto, acabou sendo deflacionado pelos estruturalistas, especialmente pelo anti-humanismo de Michel Foucault.

    Outras prescrições não só tiveram êxito, como também exerceram influência crucial e duradoura. A virada epistemológica imprimida à filosofia moderna por Descartes, por exemplo, substituiu o ponto de partida metafísico da tradição antiga e medieval por um ponto de partida constituído pela rigorosa investigação da natureza e dos limites de nossa capacidade de conhecer – para só então ousar desenvolver uma metafísica fundada no que pode ser efetivamente conhecido. Esta prescrição revelou-se extremamente bem-sucedida, tornando-se a base das filosofias de Locke, Hume e Kant. Mais tarde, porém, os idealistas alemães, Fichte, Schelling e Hegel, encarregaram-se de deflacioná-la ao propor um novo e insólito ponto de partida holístico e, novamente, metafísico. Afinal, que importância tem a questão de nosso acesso epistêmico ao mundo externo, se tudo é concebido como ideias constitutivas do evolver dialético do absoluto?

     Algo semelhante pode ser dito sobre a virada linguística promovida por Frege, Russell e Wittgenstein na primeira metade do século XX – uma transformação que ainda hoje preserva boa parte de sua influência. Ao propor o que a filosofia deveria ser, a abordagem prescritivista permanece desinteressada da prática filosófica passada. Em termos figurados, ela “olha para o futuro”.

     A abordagem descritivista, por sua vez, olha para o passado. Ela não pretende dizer o que a filosofia deveria ser, mas sim esclarecer o que a filosofia tem sido ao longo da história. Essa abordagem busca tornar explícitas as condições criteriais que a comunidade filosófica, de modo tácito, sempre admitiu como meio de identificar o que se entende por filosofia – seja ao longo de toda a trajetória da disciplina, seja em segmentos históricos ou regionais mais delimitados.

     Explicações descritivistas são mais comumente encontradas em dicionários de filosofia e em livros-texto do que nas doutrinas dos próprios filósofos, posto que, como já notei, os últimos costumam estar comprometidos com o avanço de suas próprias perspectivas, muitas vezes de caráter revisionário.

     Ainda assim, esforços para sustentar um paradigma descritivista também podem ser encontrados em algumas doutrinas filosóficas. Aristóteles, por exemplo – numa época em que não havia qualquer separação explícita entre filosofia e ciência – entendia a filosofia como decorrente do thauma (θαῦμα), termo grego que pode ser traduzido como espanto, admiração, perplexidade, assombro diante do mundo.[7] No que diz respeito à sua filosofia primeira, a metafísica, ele a concebia como a investigação do “ser enquanto ser”[8], definição parafraseada à perfeição por E. A. Taylor, um século atrás, como a busca dos “princípios estruturantes universais sem os quais não poderia existir nenhum sistema ordenado de objetos conhecíveis.”[9] Esse domínio da investigação filosófica tem sido investigado, ainda nos dias que correm, pela metafísica analítica.

     De modo mais abrangente, filósofos clássicos – de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, passando por Spinoza e Leibniz, até Kant e Hegel – viam a filosofia como aquilo que Wilhelm Dilthey[10] chamou de visão de mundo (Weltanschauung). Entendiam-na de forma ampla, como a busca por uma concepção geral do mundo e do lugar que o homem nele ocupa – um modo de ver abrangente que, mesmo em formas menos ambiciosas, ainda hoje conserva seu apelo.[11] No domínio da filosofia analítica, Ernst Tugendhat, já na segunda metade do século XX, escreveu que “o objetivo da filosofia é a elucidação da rede formada pelos conceitos constitutivos de nosso entendimento do mundo como um todo”.[12] Uma formulação linguisticamente enfatizada e menos ambiciosa, mas que reafirma em essência uma concepção abrangente da tarefa filosófica.

     O que unifica e confere legitimidade a todas essas caracterizações é o esforço descritivista visando cobrir, tanto quanto possível, a extensão do que tem sido centralmente chamado de filosofia na tradição ocidental.

     O tempo parece trabalhar a favor das abordagens descritivistas. É possível que, com o avanço da história, o espaço para prescrições filosóficas se torne progressivamente menor, enquanto as abordagens descritivistas ganhem cada vez mais relevância. Se um dia a filosofia chegar ao fim, não haverá mais espaço para prescrições, apenas para descrições do que ela já foi. Hoje, diante de diagnósticos que apontam para a decadência da filosofia[13], ou mesmo para seu fim,[14] a abordagem descritivista, que será adotada nesse livro, revela-se particularmente interessante, razão pela qual será adotada.[15]

     Também é oportuno esclarecer em que sentido empregarei o termo ‘filosofia’ sob uma perspectiva descritivista. A investigação aqui proposta concentrar-se-á na tentativa de esclarecer o sentido mais próprio, acadêmico, erudito ou tradicional da palavra – aquele que a tradição filosófica ocidental tem historicamente utilizado para referir-se a si mesma, e que se encontra exemplarmente ilustrado nas obras de seus mais proeminentes filósofos.

     Espero poder tornar esse sentido tradicional mais explícito, por meio do esclarecimento dos critérios que orientam o uso referencial da palavra ‘filosofia’, de modo a identificar o que lhe pertence de forma mais legítima e o que dela se afasta. Nesse sentido amplo, manterei consonância com o método de análise conceptual promulgado por filósofos como o último Wittgenstein, agora aplicado ao conceito de filosofia tal como foi geralmente empregado na tradição filosófica ocidental.

     Mas o que nos autoriza a esperar que seja possível oferecer uma explicação unificadora da natureza da filosofia por meio da análise conceptual? A tarefa parece, prima facie, plausível – não apenas porque temos (talvez enganosamente) o sentimento de que o termo ‘filosofia’ possui algum sentido tradicional ou acadêmico relativamente unificado, mas também porque pessoas devidamente treinadas demonstram-se capazes de identificar e distinguir, com razoável segurança, o que conta mais ou menos como filosofia nesse sentido.

     Dessa constatação segue-se que, por meio de um exame cuidadoso das aplicações históricas do termo, nós devemos, em princípio, ser capazes de tornar explícitas as condições que têm guiado nossas decisões de empregá-lo ou não, organizando-as sob a forma de uma caracterização metafilosófica abrangente.

   A pretensão de atribuir um sentido unívoco ao termo conceitual ‘filosofia’ é, certamente, ilusória. No entanto, adotarei aqui, como hipótese de trabalho, a tese de que a tradição filosófica fornece um “sentido focal” desse termo – uma hipótese que será avaliada com base nos resultados que virá a produzir.

     Nesse ponto, algumas considerações sobre a análise conceitual podem ser introduzidas à guisa de esclarecimento. É fato que, em grande medida, somos inconscientes dos critérios que aplicamos para identificar os designata dos termos gerais centrais de nossa linguagem natural – especialmente aqueles de interesse filosófico, como ‘conhecimento’, ‘verdade’, ‘existência’, ‘causalidade’, ‘bem’, ‘justiça’ e mesmo ‘significado’.

    A razão fundamental dessa falta de consciência é análoga àquela que nos permite falar corretamente o português, mesmo que não tenhamos estudado as regras de sua gramática. Como observou P. F. Strawson,[16] quando a primeira gramática do castelhano foi apresentada à rainha Isabela I de Castela, ela queria saber qual utilidade isso poderia ter, já que todos falavam corretamente o idioma. Afinal, a gramática foi elaborada com base no que pessoas cultas, como ela própria, já falavam e escreviam. O que a rainha não percebeu foi que o conhecimento que possuíam das regras da língua era automatizado, implícito, tácito. O que os gramáticos fizeram foi apenas tornar essas regras explícitas – o que, sem dúvida, também aprimora a capacidade de detectar desvios e erros.

   A ideia central dos defensores da filosofia como análise conceitual é semelhante: temos conhecimento inconsciente ou implícito das regras conceituais que conferem significado a termos centrais para o nosso entendimento do mundo, como ‘conhecimento’, ‘verdade’, ‘justiça’, ‘bem’ – mas não sabemos articulá-los explicitamente. E a razão disso, como bem salientou Ernst Tugendhat, é que essas regras conceituais são aprendidas ainda na infância, não por meio de definições formais, mas pela correção interpessoal, feita com auxílio de exemplos positivos e negativos.[17]

     Considere, por exemplo, um termo conceitual bastante simples como ‘cadeira’. Todos sabemos usar essa palavra corretamente, pois aprendemos a usá-la desde a infância por meio de exemplos. No entanto, quando somos desafiados a dizer o que entendemos por ‘cadeira’, deixamos de nos sentir seguros. Como sou um verdadeiro especialista no conceito de cadeira, posso lhe assegurar que a seguinte definição explicitadora de seu sentido é correta:

 

Uma cadeira é um banco não-veicular provido de encosto, feito para uma só pessoa se sentar de cada vez.[18]

 

Essa definição se aplica a cadeiras de mesa, de praia, de balanço, de rodas, cadeiras elétricas e tronos, ao mesmo tempo que exclui bancos (sem encosto), sofás (feitos para mais de uma pessoa se sentar), assentos veiculares (como os de carros ou aviões) e formações naturais esculpidas na rocha pelas intempéries (que podem parecer cadeiras, mas não são artefatos). Se uma cadeira normal for transferida para um país onde as pessoas são extremamente magras e mais de uma delas puder se sentar nela ao mesmo tempo, ela continua sendo uma cadeira, pois, como artefato, foi feita para uma só pessoa se sentar. Se, em alguma circunstância, for decidido que só uma determinada pessoa poderá se sentar em um determinado sofá, ele não será, por isso, transformado em cadeira, pois não foi feito para que uma só pessoa se sentasse nele de cada vez.  

     Se já enfrentamos dificuldades para definir explicitamente algo tão cotidiano quanto uma cadeira, imagine o desafio envolvido na explicitação de conceitos centrais ao nosso entendimento do mundo – como os de conhecimento, verdade, justiça e bem – cuja estrutura definicional deve ser muito mais complexa!

     Filósofos como J. L. Austin perceberam que muitos termos de importância filosófica, como conhecimento, verdade e justiça, exprimem estruturas conceituais permanentes, originariamente incrustadas em nossa compreensão do mundo desde tempos imemoriais. Mas que dizer do termo conceitual ‘filosofia’? Aqui poderia surgir a objeção de que ele não pertence à classe dos conceitos centrais ao nosso entendimento do mundo, sendo de surgimento e de desenvolvimento muito mais recentes. Daí que não há, associadas a ele, regras criteriais implícitas a serem resgatadas.

     Contudo, a objeção acima é insuficiente, primeiro porque a estrutura conceitual expressa pela palavra ‘filosofia’ é certamente muito mais complexa do que a expressa por uma palavra como ‘cadeira’, que, mesmo assim, já é capaz de confundir-nos. Depois, porque somos inconscientes dos critérios de aplicação de muitos termos técnicos relativamente recentes, como ‘explicação’, ‘previsão’, ‘observação’ e ‘lei da natureza’, tal como são usados nas ciências particulares. Se perguntarmos a um cientista, filosoficamente não informado, o que significa ‘explicação científica’, ele poderá sentir dificuldade em encontrar uma resposta inequívoca, sendo forçado a apelar a exemplos. É tarefa do filósofo da ciência tornar explícitos os complexos significados desses termos.

      Ora, por que essa mesma ideia não poderia aplicar-se também à palavra ‘filosofia’? Afinal, o conceito de filosofia foi introduzido em nossa cultura acadêmica já há muito tempo, tendo passado por um desenvolvimento interno subsequente, sustentado pela natureza própria da atividade filosófica e pelos novos objetos que, gradualmente, lhe foram atribuídos como temas de investigação.

     Se formos capazes de expor os critérios que permitem identificar o que chamamos de filosofia de maneira suficientemente esclarecedora, justificando, assim, o emprego da palavra ao longo da história da filosofia ocidental, estaremos diante de uma análise filosoficamente interessante desse conceito. Em outras palavras, elaboraremos uma teoria da natureza da filosofia. É possível que, por esse meio, não apenas compreendamos melhor o que o filósofo busca realizar, mas também estejamos mais aptos a evitar práticas enganosas que se apresentam sob o nome de filosofia.

     O segundo ponto que desejo abordar refere-se a dois vícios opostos que podem afetar tanto as nossas teorias metafilosóficas quanto as filosóficas: o ampliacionismo e o reducionismo. Eis como podemos defini-los:

 

Ampliacionismo: uma postura procedimental que tende a produzir arcabouços teóricos que incluem mais do que são capazes de sustentar.

Reducionismo: ao contrário, define-se como uma postura procedimental que tende a produzir ideias e teorias que excluem mais do que seria razoável.

 

Embora possam ser considerados defeitos, esses expedientes podem ser úteis e inevitáveis. A escolha pode tornar-se inevitável em termos de custo-benefício, posto que há obras ampliacionistas extraordinárias, como a filosofia de Hegel, que tenta abarcar o absoluto por meio da razão dialética, ou a fenomenologia de Husserl, que busca fundar todo o saber na experiência vivida. Por outro lado, há contribuições reducionistas igualmente notáveis, como a teoria da referência de Saul Kripke[19], que reformula questões centrais da teoria da referência com precisão lógica, para tal precisando simplificar e distorcer elementos cognitivos e comunicacionais indispensáveis[20]; ou a abordagem analítica de W. V. O. Quine, que produziu desafios frutíferos como os da inescrutabilidade da referência e da indeterminação da tradução, os quais, no entanto, excluem fatores socioculturais e intencionais inevitavelmente envolvidos. Também vale mencionar o Wittgenstein tardio, cuja filosofia “terapêutica” visava, sobretudo, dissolver problemas filosóficos por meio de sua decomposição em usos linguísticos cotidianos — uma forma de reducionismo, uma vez que nem todos os problemas filosóficos se deixam reduzir a confusões linguísticas.

     Essas não são críticas aplicáveis a Aristóteles, cuja filosofia parece escapar à dicotomia mencionada ao ajustar seu arcabouço conceitual à amplitude temática, sem sacrificar a profundidade analítica nem a abrangência especulativa.

     Em metafilosofia, a definição de filosofia como uma explicação do mundo como um todo e do lugar que o ser humano nele ocupa é ampliativa: embora extremamente inclusiva, é, por certo, excessivamente vaga e pouco informativa. Ao examiná-la mais de perto, percebemos que ela falha em oferecer sequer uma condição necessária — afinal, muitas obras filosóficas relevantes estão longe de alcançar tal abrangência — e tampouco fornece uma condição suficiente, já que a religião também se propõe a realizar o mesmo intento. Trata-se, portanto, de uma definição demasiadamente ampla.

     Na tentativa de escapar dessa limitação, frequentemente optamos pelo caminho oposto: o reducionismo. Por meio dele, conseguimos formular definições mais precisas, mas à custa da generalidade. Um exemplo emblemático, no campo da metafilosofia, é a notória definição carnapiana da filosofia como investigação da sintaxe lógica da linguagem. Trata-se de um caso extremo de reducionismo, pagando pela vantagem da precisão um exorbitante preço em exclusão.

     A teoria descritivista abrangente da natureza da filosofia a ser desenvolvida nesse livro busca preservar a extensão do objeto de investigação sem incorrer nas limitações de uma caracterização insuficientemente informativa. O propósito é evidenciar o lugar da filosofia no território mais amplo da cultura.

     Nesse sentido, uma sugestão prima facie plausível é a de que a filosofia tradicional é um produto derivado, que emergiu da confluência de três atividades culturais fundamentais: ciência, religião e arte. Encontrei essa ideia expressa em Johannes Hesse:

 

Se desejamos definir resumidamente a posição da filosofia no sistema da cultura, devemos dizer o seguinte: a filosofia tem duas faces; uma dirige-se à religião e à arte, a outra à ciência. Tem de comum com aquelas o dirigir-se ao conjunto da realidade; com esta, o seu caráter teórico.[21]

 

Sendo um pastor erudito, Hessen associou religião e arte como expressões de uma mesma dimensão espiritual, o que nos lembra a conhecida tese de Hegel, segundo a qual ambas são manifestações do absoluto – a arte como forma sensível e a religião como forma representacional. A mesma ideia encontrei também em Wilhelm Dilthey:

 

Metafísica é um estranho anfíbio... Uma de suas faces está voltada para a religião e a poesia, a outra, para a ciência. Mas não é nem ciência nesse sentido, nem arte nem religião.[22]

 

Certamente, a ideia é intuitiva o suficiente para poder ser encontrada em outros textos e ter origens mais remotas.

   Feitas essas considerações, proponho, como hipótese de trabalho, a suposição de que a filosofia possui uma determinação cultural tríplice – ciência, religião e arte –, com o objetivo de desenvolver, ao longo desse livro, a vaga intuição que nela se inscreve, tornando-a mais tangível e conceptualmente robusta.

   Antes disso, porém, dado que nossos resultados dependerão de uma análise conceitual suficientemente rigorosa, é oportuno examinar, com alguma atenção, a natureza do método analítico a ser adotado. Esse será o tema do próximo capítulo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                            II

 

FILOSOFIA COMO ANÁLISE CONCEITUAL

 

Eine ganze Wolke von Philosophie kondensiert zu einem Tröpfchen Sprachlehre.

[Toda uma nuvem de filosofia se condensa em uma gota de gramática.]

                               Wittgenstein

 

 

Quando, na condição de metafilósofos descritivistas, lançamos um olhar sobre a história da filosofia, deparamo-nos com explicações de sua natureza que somos tentados a rejeitar sem maiores considerações. É o caso, por exemplo, de toda tentativa de fundamentar a filosofia em um objeto ou em um método próprio. Afinal, há quase tanta diversidade de objetos e métodos quanto de filosofias e movimentos filosóficos.[23]

     Além disso, as muitas subdivisões da filosofia teórica (voltada para o input do mundo sobre o sujeito) e da filosofia prática (voltada para o output do sujeito sobre o mundo) parecem corresponder a uma variedade igualmente ampla de objetos específicos, com metodologias que variam conforme as exigências de cada domínio.

     Somente o metafilósofo de orientação prescritivista ainda pode nutrir a esperança (ou a fantasia) de delimitar o objeto de investigação próprio da filosofia. Já o metafilósofo descritivista tenderá a ver tais tentativas como inerentemente reducionistas ou ampliativas, por estreitarem ou alargarem as fronteiras da filosofia para além dos limites que lhe seriam os mais adequados.

     Como minha intenção é mais construtiva do que crítica, concentrar-me-ei no exame das metodologias analíticas em filosofia. A concepção subjaz a desenvolvimentos particularmente relevantes da filosofia do início do século XX, em especial à ideia extraordinariamente influente de que o método próprio da filosofia é o da análise conceitual e de que o objeto próprio da filosofia é a estrutura conceitual ou, como Ernst Tugendhat descreveu, a estrutura dos conceitos mais centrais ao nosso entendimento do mundo.[24]

     Uma tal concepção foi, de maneiras diversas, sustentada por filósofos como Wittgenstein, Bertrand Russell, G. E. Moore, Friedrich Waismann, A. J. Ayer, P. F. Strawson, Michael Dummett e R. E. Brandom, entre muitos outros. Além disso, como veremos, ela pode ser estendida à tradição filosófica se nos lembrarmos do Sócrates dos diálogos platônicos – cuja indagação recorrente assumia a forma “O que é X”, em que o X vinha no lugar de termos conceituais como ‘amizade’, ‘amor’, ‘beleza’, ‘justiça’, ‘conhecimento’, etc.

     A concepção da filosofia como análise conceitual foi seriamente desafiada pela assim-chamada “virada naturalista”, inicialmente promovida por W. V. O. Quine, sob uma perspectiva deflacionária.[25] Para ele, a filosofia não se reduz à mera investigação linguístico-conceitual, pois ela não se distingue essencialmente da ciência empírica.

   Aliás, em seu entendimento, não há sequer uma distinção real a ser traçada entre ambas: a filosofia forma um continuum com a ciência, e as distinções que podem ser traçadas são meramente artificiais, como as fronteiras entre os diversos estados de um mesmo país.[26]

     Quaisquer que sejam as vantagens desse ponto de vista, persiste o problema de que nenhum advogado da ideia de que a ciência e a filosofia se distinguem apenas arbitrariamente é capaz de explicar por que nos sentimos tão relutantes em conceber as fronteiras entre a ciência e a filosofia como resultado de acordos arbitrários. A tese quineana – segundo a qual a distinção entre filosofia e ciência decorre de uma decisão artificial – tampouco esclarece por que resistimos tão fortemente à ideia de modificar essas fronteiras – como ao reclassificar como ciência o que tem sido chamado de filosofia, e vice-versa. Mais ainda, e esse ponto me parece decisivo, essa tese tampouco explica por que somos capazes de identificar uma nova teoria como filosófica ou científica sem recorrer a nenhum acordo convencional.

     A concepção da filosofia como análise conceitual tinha, ao menos, o mérito de tentar responder a essas questões por meio da explicitação dos traços distintivos da prática filosófica. Além disso, reconhecer que a filosofia se distingue da ciência por seus próprios meios não implica, necessariamente, a admissão do que Timothy Williamson chamou de excepcionalismo – a ideia de que os métodos da filosofia seriam intrinsecamente próprios, essencialmente distintos e, supostamente, superiores aos da ciência.[27]

     Embora exista uma variedade de versões da concepção de filosofia como análise conceitual, proponho reduzi-las aqui de modo um tanto artificial a duas formas gerais, no intuito de melhor evidenciar as qualidades e limitações intrínsecas a essa concepção. Chamarei essas duas variantes de filosofia de:

 

a) crítica da linguagem e de

b) análise da linguagem.

 

Pela crítica da linguagem, buscamos analisar ou elucidar conceitos com o intuito de dissolver confusões filosóficas. Já, pela análise da linguagem, o objetivo é examinar os conceitos, visando a uma compreensão mais profunda de nossa arquitetura conceitual. A seguir, explicarei o que entendo por cada uma dessas formas de abordagem filosófica, argumentando que, embora ambas tenham seus méritos metodológicos, elas falham em oferecer uma explicação adequada da natureza própria da filosofia.

 

 

1.     OS ATALHOS DA CRÍTICA

DA LINGUAGEM

 

A crítica da linguagem busca evidenciar falhas em argumentos filosóficos, muitos deles oriundos da filosofia tradicional. Historicamente, isso tem sido realizado de duas maneiras. A primeira consiste na aplicação de métodos formais à investigação dos termos e enunciados filosóficos – o que chamarei de análise de orientação formal. A segunda envolve um exame cuidadoso dos significados ou usos das expressões de nossa linguagem natural em seus contextos interpessoais – o que chamo de análise de orientação comunicacional.

     Utilizo essas expressões, respectivamente, em substituição a uma distinção de conotação mais limitada, a velha distinção entre a filosofia da linguagem ideal, guiada pela lógica matemática de Frege e Russell, e a filosofia da linguagem ordinária, guiada pela linguagem do cotidiano, como no segundo Wittgenstein e entre os filósofos de Oxford de meados do século passado.[28]

      Digo que essa distinção é hoje limitada porque embora ela leve em conta a distinção entre a filosofia do atomismo lógico em Russell e no Tractatus como exemplos de filosofia da linguagem ideal, e a filosofia terapêutica de Wittgenstein nas Investigações filosóficas, além do trabalho dos filósofos da de Oxford como Gilbert Ryle, J. L. Austin e P. F. Strawson, como exemplos de filosofia da linguagem ordinária, ela não contempla os desenvolvimentos posteriores dessas duas tradições, uma de orientação mais formalista, outra de viés empirista.

     Ela não leva em conta, por exemplo, a oposição entre os herdeiros da filosofia da linguagem ideal, que se utilizaram de novos instrumentos formais, como a lógica modal em Kripke, Putnam e Kaplan, além do caso dos herdeiros posteriores muito mais sistemáticos da filosofia da linguagem ordinária, como John Searle, Paul Grice e mesmo o Jürgen Habermas da pragmática universal. Daí que a distinção entre filosofias de orientação formal e comunicacional se justifica aqui pela sua maior amplitude. A primeira, propondo desafios metafísicos instigantes, mas de plausibilidade por vezes questionável; a segunda, propondo respostas mais intuitivas, mas que podem ser insuficientes e até mesmo triviais.

     A crítica da linguagem de orientação formal pode ser ilustrada por meio das investigações de filósofos analíticos, como Bertrand Russell.[29] Um exemplo ajuda a esclarecer: uma razão subjacente à criação da doutrina das ideias por Platão teria sido uma confusão decorrente da identidade superficial entre as estruturas gramaticais de sentenças como: “A beleza é agradável” e “Sócrates é calvo”.

     Induzido por essa identidade, Platão teria concluído que, desde que o sujeito de sentenças como a última é um nome próprio referindo-se a um particular, o sujeito de sentenças como a primeira também precisa ser um nome próprio, devendo ter como referência um particular que ele chamou de a-beleza-em-si-mesma. Contudo, como não é possível encontrar a “beleza-em-si-mesma” no mundo visível, ela deve habitar um mundo tão somente inteligível: o mundo transcendente das ideias.

   Contra essa conclusão, a crítica da linguagem, baseada na moderna lógica dos predicados, torna claro que as estruturas lógicas dos dois tipos de sentença são apenas aparentemente idênticas. Na verdade, a primeira sentença tem uma estrutura lógica muito diversa de sua estrutura gramatical aparente. Enquanto “Sócrates (s) é calvo (C)” tem a forma lógica “Cs”, uma sentença como “A beleza é agradável” é logicamente analisável como uma abreviação de “Para todo x, se x é belo (B), então x é agradável (A)”, ou, formalmente: “(x) (Bx → Ax)”. Nessa análise, o pretenso nome próprio ‘a beleza’ desaparece, enquanto ‘é belo’ revela-se uma simples expressão predicativa.

   Essa distinção sugere que, por desconhecer a lógica fregeana, Platão foi induzido ao erro pela identidade superficial da estrutura sujeito-predicado em ambos os tipos de enunciados. Tal confusão gramatical teria fornecido uma justificativa ilusória para sua formulação de uma ontologia de ideias transcendentes – uma construção metafísica de inegável importância histórica, mas cujos fundamentos, à luz da análise lógica contemporânea, tornaram-se passíveis de questionamento.

     Vejamos agora um exemplo de crítica à linguagem de orientação comunicacional, bem próxima do que Wittgenstein chamou de “filosofia terapêutica”. Trata-se da exposição das confusões filosóficas decorrentes do argumento da ilusão. Esse argumento foi desenvolvido em oposição ao realismo direto ou ingênuo, segundo o qual temos acesso direto ao mundo externo. Seu propósito era a defesa do realismo indireto, segundo o qual nosso acesso ao mundo externo se dá pela intermediação dos sense-data (dados sensórios), ou mesmo a defesa de um idealismo fenomenalista, que nega o acesso a um mundo material externo que vá além dos sense-data.

   Esse argumento parte de casos em que objetos parecem diferentes do que realmente são, como a colher que, ao ser parcialmente imersa em um copo d’água, parece entortada. A análise desses casos parece conduzir à conclusão de que percebemos os objetos de forma indireta: o que percebemos diretamente não são os objetos materiais, mas apenas nossas impressões sensoriais deles: os sense-data.

   Opondo-se a tal conclusão, críticos da linguagem, como J. L. Austin, argumentaram que não dizemos que não percebemos diretamente os objetos, mas apenas suas representações; o que realmente dizemos é que vemos os objetos (como a colher no copo d’água) diretamente, embora não como eles realmente são. Assim, quando olho para o meu nariz com ambos os olhos, não afirmo que vejo dois narizes, mas antes que vejo o meu próprio nariz duplicado (John Searle). Do mesmo modo, quando vejo uma moeda como elíptica, não digo que estou vendo um objeto elíptico, mas sim que estou vendo um objeto redondo que parece elíptico.[30]

     Os dois exemplos recém-apresentados evidenciam as qualidades da crítica da linguagem, mas também revelam seus limites. Pois é evidente que, mesmo sem a doutrina platônica das ideias, o problema continua a existir: trata-se de explicar como podemos dizer o mesmo de muitos, ou seja, a possibilidade de predicação, ou ainda, a função dos termos gerais no âmbito do conhecimento. E também as objeções ao realismo direto (tanto na forma fenomenal quanto na forma científica) do argumento da ilusão não parecem ter sido completamente esgotadas por uma crítica puramente linguística.

     Uma razão para pensar assim é que os argumentos que sustentam a admissão de ideias como fundamento explicativo da generalidade e da predicação, bem como aqueles que defendem a admissão dos sense-data como os objetos mais imediatos da experiência (mediando inevitavelmente nosso acesso ao mundo externo), parecem ter algum conteúdo substantivo subjacente. E parece que esse conteúdo só pode ser plenamente refutado de forma definitiva por meio de considerações teóricas mais amplas.

     No caso do problema platônico de como podemos aplicar termos gerais, isso pode ser feito por meio de uma análise do que Ernst Tugendhat chamou

de regras de aplicação dos termos gerais.[31] No segundo caso – o do problema da percepção – temos o fato de que embora tenhamos acesso visual imediato aos sense-data (como demonstrado pela reprodução computacional de imagens mentais via fMRI), a mente é capaz de reinterpretar esses sense-data, “projetando-os” no mundo externo como objetos perceptuais, na medida em que eles satisfazem os diferentes critérios de realidade externa, tais como máxima intensidade sensorial, independência da vontade, intersubjetividade virtual e conformidade com leis naturais, entre outros.[32]

     Geralmente, a crítica da linguagem não é concebida como uma teoria da natureza da filosofia, mas apenas como uma maneira de fazer filosofia. No entanto, em certas passagens dos textos de Wittgenstein, essa crítica parece ter se tornado uma concepção da natureza da filosofia. Segundo alguns, ele teria concebido a filosofia como uma espécie de terapia linguística destituída de qualquer conteúdo positivo próprio.[33] Mesmo acreditando que Wittgenstein endossou apenas metodologicamente esse modo de ver, dado que também fez observações que o afastam dele, essa concepção pode ser (e de fato tem sido) retirada de seus textos, de modo que irei expô-la aqui apenas por aquilo que ela é capaz de nos ensinar.[34]

     A chamada concepção terapêutica da filosofia sustenta que tudo o que se faz sob esse nome, inclusive na filosofia tradicional, resulta de confusão linguística. Os filósofos, movidos por um irresistível anseio por generalidade (craving for generality)[35] tendem a se deixar enganar pelas estruturas superficiais da linguagem, construindo ambiciosos “castelos de carta” teóricos. E quando essas construções colapsam em contradições, esses mesmos filósofos acabam por ser reduzidos a desesperançados prisioneiros de “nós do pensamento”.

     Diante disso, a boa filosofia deveria assumir um caráter terapêutico: seu objetivo seria desmontar os castelos de cartas teoréticos do metafísico especulativo e desfazer os nós do pensamento nos quais os pensadores mais ambiciosos se enredaram. Esse trabalho não se realizaria por meio da formulação de novas teorias ou da explicação de fenômenos, mas sim por meio de descrições dos modos pelos quais efetivamente usamos nossas palavras, “trazendo-as de volta de suas férias metafísicas ao seu labor cotidiano”. Sob essa perspectiva, a filosofia torna-se um empreendimento puramente destrutivo, bem-sucedido apenas quando o filósofo, liberto de suas inquietações metafísicas, tal como um paciente psicanalítico de suas fixações neuróticas, torna-se capaz de esquecer a própria filosofia.

     Como veremos mais tarde, há muitos exemplos que demonstram que a filosofia não se reduz a uma simples terapia linguística. Contudo, há também muitos casos em que a terapia linguística é capaz de produzir bons resultados.

     Para ilustrar, considere a tese do perdurantismo na metafísica analítica. Segundo essa perspectiva, os objetos materiais são entidades tetradimensionais. Eles não se definem apenas por suas três dimensões espaciais, mas também por uma dimensão temporal: seu perdurar no tempo. Essa concepção busca explicar como um objeto material – como uma maçã ou uma pessoa – pode permanecer o mesmo, ainda que sofra mudanças significativas ao longo do tempo.

     O praticante da filosofia como terapia, por sua vez, tende a alinhar-se às intuições do senso comum e à linguagem natural, o que o levará a sugerir que o perdurantista apenas refina uma confusão primordial entre objetos materiais e eventos ou processos, que possuem realmente uma dimensão temporal que acaba de defini-los (o processo de transformação da crisálida em borboleta só ganha sentido se for considerado tetradimensional). A posição do filósofo-terapeuta, como a do crítico da linguagem, será tradicionalista e, em alguma medida, aristotélica. Ele irá dizer que os objetos materiais são tridimensionais e permanecem essencialmente os mesmos ao longo do tempo, de modo que apenas suas propriedades acidentais se modificam. O problema é que, contra a expectativa do filósofo-terapeuta, essa posição se chama endurantismo, sendo ela também teorética, apenas que não se fundamenta em um suposto equívoco linguístico, como acontece com o perdurantista.

     O problema com uma concepção estritamente terapêutica da filosofia é que ela corta os galhos curtos demais. Nenhuma crítica da linguagem conseguiu ser inteiramente não teórica nem explicativa. O próprio trabalho de Wittgenstein é um exemplo revelador dessa impossibilidade, embora esse fato seja geralmente ocultado pelo caráter fragmentário e elusivo de seus escritos. Como observou criticamente A. J. Ayer:

 

Sua reiterada preferência por descrição em lugar de explicação e a abstenção de teoria, que ele afirmava praticar e se regozijava diante de seus leitores, não são características de seu procedimento real em nenhum estágio de seu desenvolvimento, incluindo o das Investigações Filosóficas. Que suas explicações sejam rúnicas, isso não as reduz a descrições: suas teorias não cessam de ser tais ao serem encobertamente assentadas. [36]

 

Considere-se, para exemplificar, as observações de Wittgenstein sobre nomes próprios nas Investigações Filosóficas.[37] Elas são formuladas como uma crítica à “teoria do rótulo” dos nomes próprios, segundo a qual o significado de um nome próprio é o objeto que ele designa, sendo a relação entre o nome e o significado análoga à de um rótulo colado em uma garrafa.

     No entanto, ao rejeitar essa teoria, Wittgenstein acabou por esboçar – intencionalmente ou não – uma versão própria da teoria do feixe (bundle theory) dos nomes próprios. Segundo ele, o significado de nomes como ‘Moisés’ é determinado pelas diversas descrições definidas a ele associadas, como “o homem que conduziu os israelitas através do deserto”, “o homem que viveu naquela época e lugar e que foi chamado de ‘Moisés’”, ou ainda “o homem que, quando criança, foi retirado do Nilo pela filha do faraó”. Utilizando o vocabulário do próprio Wittgenstein, poderíamos acrescentar que essas descrições são expressões de regras que nos orientam na identificação do objeto nomeado – regras que, em conjunto, de algum modo, constituem o que queremos dizer com o nome próprio, seu sentido referencial.

     A consequência desse procedimento é que as considerações de Wittgenstein sobre nomes próprios acabam por assumir um caráter teórico, uma vez que sua eficácia terapêutica depende de uma generalização implícita de seu descritivismo para todos os nomes próprios. Além disso, essas considerações são claramente explicativas, pois de forma encoberta visam esclarecer os mecanismos pelos quais identificamos pessoas por meio de nomes próprios.

     Essa orientação teórica se torna ainda mais evidente no fato de que tais ideias foram posteriormente retomadas por J. R. Searle[38], na formulação de uma teoria do feixe para nomes próprios — uma proposta de caráter explicitamente teórico e explicativo — e, de maneira a meu ver bem mais decisiva, pelo autor do presente livro.[39]

     Exemplos como esses mostram que uma terapia filosófica, para ser efetiva, para curar a doença e não apenas para aliviar sintomas ocasionais, deve apoiar-se em generalizações dotadas de poder explicativo, mesmo que implícitas. Quando desenvolvidas, essas generalizações forçam-nos a abandonar o terreno das considerações sobre maus usos da linguagem ordinária, de onde originalmente partiram, e a avançar rumo a construções teóricas cada vez mais elaboradas.

   Crítica e teoria, concluímos, não podem ser completamente dissociadas, pois são como os lados opostos da mesma moeda filosófica. A preferência por enfatizar um ou outro aspecto tende a ser menos uma questão de princípio do que uma questão de temperamento, refletindo o estilo e a inclinação pessoal de cada filósofo.

 

 

2.     FILOSOFIA COMO ANÁLISE DA LINGUAGEM

 

O fracasso de uma concepção puramente terapêutica da filosofia leva-nos a considerar a análise da linguagem. Trata-se do lado construtivo e teorético da moeda filosófica, capaz de fornecer suporte à crítica da linguagem e até de torná-la uma aplicação de si mesma. Como já fiz notar, a análise da linguagem também pode ser feita de um modo formalmente orientado (como “filosofia da linguagem ideal”) ou de um modo comunicacionalmente orientado (como “filosofia da linguagem ordinária”).

    Um exemplo da abordagem formalmente orientada foi o esboço de uma estrutura geral da linguagem formal, evidenciado na distinção introduzida por Carnap entre regras de formação, responsáveis por especificar os símbolos e as sentenças bem formadas, e regras de transformação, responsáveis por determinar as possíveis relações lógicas entre as sentenças.[40]

   Por outro lado, um exemplo de análise da linguagem realizada sob orientação comunicacional foi a teoria dos atos de fala de J. L. Austin. Na interpretação feita por Searle dessa teoria, a estrutura de nossas ações comunicativas é geralmente reduzível à forma F(p), em que p representa o conteúdo proposicional e F representa a força ilocucionária, essa última definindo o tipo de compromisso interpessoal que o falante propõe associar ao seu conteúdo.[41] Para ilustrar: ao dizer “Peço-lhe para fechar a porta”, o proferimento possui uma força ilocucionária, a de um pedido, e um conteúdo proposicional, concernente ao ato da pessoa de fechar a porta.[42]

   Posteriormente, Searle desenvolveu uma notável teoria da intencionalidade em filosofia da mente baseada na forma internalizada desse mesmo esquema: o que temos é a intenção I relacionada a um conteúdo intencional p, produzindo I(p).[43] Por exemplo: se eu quero que a porta seja fechada, o que tenho é uma intenção (a de querer) seguida de seu conteúdo intencional (de que a porta seja fechada).

     Construções analíticas como essas são teorias gerais e diversas em escopo, além de serem desenvolvimentos capazes de conduzir-nos próximos aos horizontes da ciência. De fato, a distinção introduzida por Carnap entre regras de formação e de transformação já foi há muito incorporada a vários domínios da lógica simbólica, que se consolidou como uma ciência formal, e a teoria dos atos de fala pertence hoje ao domínio da pragmática linguística, mais do que à filosofia. Embora tais construções teóricas também possam ser empregadas como instrumentos críticos, essa não foi sua motivação principal. Seu propósito fundamental foi ampliar as fronteiras de nosso conhecimento.

     No que se segue, apresentarei uma versão robusta da concepção de filosofia como análise da linguagem, que será metodologicamente pressuposta nos próximos capítulos desse livro. Trata-se de uma abordagem de orientação comunicacional que se estende aos limites da tolerância e da defensabilidade teórica. Algo semelhante pode ser encontrado, com variações individuais, nas concepções de praticantes tardios e mais refinados no uso dos métodos analíticos, como as de P. F. Strawson e de Ernst Tugendhat.

     Um pressuposto fundamental da concepção mais robusta da filosofia como análise da linguagem – conforme já foi notado no capítulo anterior – é a ideia de que não temos consciência da estrutura excepcionalmente complexa dos conceitos mais centrais de nossa linguagem, e ainda menos das relações internas que possam existir entre eles. Esses conceitos, como verdade, crença, percepção, conhecimento, causa, tempo, bem, justiça, beleza, entre outros, estão intrinsecamente relacionados, formando uma densa rede conceitual que usamos cotidianamente.

     Wittgenstein, em seu Tractatus Logico-Philosophicus, enfatizou essa perspectiva ao afirmar:

 

A linguagem corrente é parte do organismo humano e não menos complexa do que ele. Dela é humanamente impossível extrair imediatamente a lógica da linguagem. A linguagem disfarça o pensamento a tal ponto que, da forma externa de sua roupagem, não somos capazes de inferir a forma subjacente do pensamento, já que a forma externa da roupagem serve a fins inteiramente diferentes dos de revelar a forma do corpo.[44]

 

Como também já foi observado, essa ausência de consciência sobre as estruturas conceituais tem uma explicação: não aprendemos esses conceitos e suas possíveis relações por meio de definições explícitas, mas, desde a infância, por meio de uma praxis não cognitiva baseada em exemplificações positivas e negativas, às quais nosso aprendizado é repetidamente submetido à correção interpessoal. Por isso, embora pareça evidente que conhecemos os significados de palavras como ‘conhecimento’, ‘verdade’, ‘justiça’, ‘tempo’ – já que sabemos usá-las corretamente – permanecemos incapazes de explicitar as regras constitutivas de seus significados, ou seja, os contornos próprios de seus conceitos. Eis por que, embora sejamos proficientes em seu uso, com frequência sentimo-nos paralisados quando solicitados a explicar o que queremos dizer com elas.

   A falta de consciência das regras que governam o uso de palavras centrais para nosso entendimento do mundo favorece o surgimento de confusões filosóficas. Filósofos – especialmente aqueles que se ocupam de metafísica especulativa – confundiram sistematicamente os usos de nossas expressões. Ainda assim, é possível que tais confusões, como notou Wittgenstein, sejam profundas, apontando para o que, sem elas, permaneceria despercebido.

   Sob a perspectiva acima delineada, a filosofia da análise conceitual configura-se como um empreendimento crítico, uma vez que a construção de teorias que explicitem estruturas conceituais mais centrais, por si só, já contribui para dissipar confusões conceituais. Por envolverem generalizações, essas teorias também possuem valor explicativo. Seu propósito mais distintivo, contudo, deveria ser o de fornecer aquilo que, junto a Wittgenstein, poderíamos chamar de uma representação panorâmica (übersichtliche Darstellung), ou seja, uma espécie de “teorização orgânica” que nos permita visualizar as relações estruturais entre conceitos de interesse filosófico. Vale traduzir a célebre passagem central:

 

Uma fonte principal de nossa incompreensão é a falta de transparência em nossa gramática. A representação panorâmica permite ao entendimento perceber as conexões. Daí a importância de encontrar e inventar elos intermediários. O conceito de representação panorâmica é, para nós, de importância fundamental. Ele revela a forma de nossa representação, o modo como vemos as coisas. (É isso uma visão de mundo?)[45]

 

Dado que nossos conceitos filosoficamente relevantes se encontram, em alguma medida, inter-relacionados, a representação panorâmica poderia tornar explícita a relação sistemática entre eles. Seu objetivo é elucidar o que Tugendhat chamou de malha conceitual (begriffliches Netzwerk) constitutiva de nosso entendimento como um todo.[46]

     Para completar nosso quadro, é preciso mencionar um traço particularmente esclarecedor da filosofia analítica, identificado por W. V. O. Quine sob o termo ascensão semântica (semantic ascent)[47], que podemos entender como uma ênfase discursiva sobre os aspectos linguístico-conceituais. Por meio da ascensão semântica, aspectos linguístico-conceituais de nossas expressões são enfatizados, de modo a tornar explícitas distinções mais sutis e a prevenir confusões.

   Para dar exemplos, a questão “O que são números?” foi parafraseada por Frege como “O que é o significado de sentenças contendo palavras-número?”, e a asserção wittgensteiniana “O mundo é feito de fatos, não de coisas” foi parafraseada por Carnap como “A palavra-conceitual ‘mundo’ é entendida de tal maneira que por meio dela somente o sistema dos fatos, não o das coisas, pode ser referido”. Essa noção de ascensão semântica surgiu, aliás, como uma reação ao conceito carnapiano correlato de modo de dizer formal, por ele entendido como o registro adequado para tratar das questões linguístico-conceituais próprias da filosofia. No entanto, como Quine com perspicácia observou, a distinção carnapiana revela-se equivocada na medida em que ele quis torná-la caracterizadora da filosofia como tal. Como Quine bem notou, a noção de ascensão semântica difere do modo de falar formal por ser concebida como aplicável não apenas às sentenças filosóficas, mas a qualquer sentença concebível. Como ele escreveu:

 

A ascensão semântica aplica-se a todo lugar. “Há masurpiais na Tasmânia” pode ser parafraseado como “‘Masurpial’ é verdadeiro para algumas criaturas na Tasmânia”, se houver algum ponto nisso. Apenas acontece de ser a ascensão semântica mais útil nas conexões filosóficas.[48]

 

A noção de ascensão semântica, a ênfase linguístico-conceitual, pode ser explicada em maior detalhe ao considerarmos que, para prevenir erros, a filosofia analítica frequentemente apresenta seus argumentos de forma mais explícita, em uma metalinguagem que nos permite centrar a atenção nas palavras e conceitos expressos.

     Uma maneira de evidenciar a importância e a função da ascensão semântica é notar que, geralmente, ela é realizada por meio de uma metalinguagem semântica, e não apenas de uma metalinguagem sintática. Essa consideração permite responder à objeção de que a filosofia analítica, por ser um empreendimento linguístico-conceitual, inevitavelmente acabaria por deixar de fora o mundo.

     Para esclarecer esses conceitos, compare as duas sentenças seguintes:

 

(a)    ‘Cracóvia’ é uma palavra-nome com oito letras.

(b)   ‘Cracóvia” é o nome de uma cidade localizada a 50° ao norte do equador e a 20° ao leste do meridiano de Greenwich.”

 

Na sentença (a), empregamos uma metalinguagem sintática para tratar a palavra como um sinal físico. Já na sentença (b), recorremos a uma metalinguagem semântica para falar não apenas da palavra, mas também do que ela significa.

     Adotando um vocabulário fregeano, podemos dizer que, ao adotar uma metalinguagem semântica, tornamos explícitos os sentidos de nossas palavras; mas, ao fazermos isso, também falamos sobre aquilo a que elas se referem – ou seja, sobre o mundo – considerando que essas referências, sejam elas objetos ou propriedades, só são cognitivamente avaliáveis por meios conceituais.[49]

     Em síntese: por meio de uma metalinguagem sintática, falamos somente dos signos em abstração de seus significados – o que pode conduzir a um formalismo árido. Já com a metalinguagem semântica, preservamos os sentidos juntamente com suas referências, indo além dos signos: esse é o caminho propriamente filosófico, pelo qual a análise da linguagem se estende das palavras ao que se quer dizer com elas e, assim, ao próprio mundo. Desse modo, torna-se claro que a ênfase conceitual promovida pela ascensão semântica é apenas uma forma de concentrar nossa atenção na linguagem, sem excluir nada de valor que ela possa representar.

     Embora a análise de orientação formal, em boa medida praticada por filósofos como Rudolph Carnap, W. V. O. Quine, Donald Davidson, David Lewis, Saul Kripke, Hilary Putnam e David Lewis, também recorra à ascensão linguístico-conceitual, ela difere de maneira importante da concepção mais robusta de análise, sobretudo em suas posturas diante das exigências do elemento comunicacional presente no senso comum e na linguagem natural.

     Filósofos formalmente inspirados tendem a privilegiar a consistência interna de suas teorias, mesmo que isso implique renunciar à consonância com o senso comum, às evidências fornecidas pela linguagem ordinária ou mesmo pela ciência empírica. Por essa razão, estão sempre mais dispostos a sacrificar as últimas em favor da primeira, substituindo o ônus heurístico por um bônus imaginativo. A sugestão da existência de infinitos mundos possíveis, tão reais quanto incomensuráveis, proposta por David Lewis, é um exemplo disso.

     Com efeito, muitas das ideias advindas da abordagem sintaticamente inspirada de análise da linguagem encontram-se em flagrante contradição com certas intuições fundamentais. Qual seria a razão disso? Creio que a resposta não seja difícil de encontrar. Para tal, é preciso apelar para o conceito de semiótica, que tomo de empréstimo de Charles Morris.[50] A semiótica possui três dimensões: a dimensão sintática, que é a das relações entre os signos; a dimensão semântica, que é a das relações entre os signos e suas referências; e a dimensão pragmática, que é a das relações entre os signos e seus intérpretes, o que certamente deve se estender aos seus efeitos na interação comunicacional. O que pretendo demonstrar é que, de modo geral (ainda que o reverso seja, em alguma medida, possível) existe entre essas dimensões uma relação de pressuposição, na qual:

 

a dimensão da semiótica:

SINTÁTICA

é pressuposta pela dimensão

SEMÂNTICA

que é pressuposta pela dimensão

PRAGMÁTICA.

 

Ou seja: o conhecimento da dimensão pragmática entendida cono a das relações dos intérpretes com os signos na interação comunicacional, tende a exigir o conhecimento de uma dimensão semântica já previamente constituída, ou seja, das relações entre os signos e suas referências; o conhecimento da dimensão semântica, por sua vez, tende a exigir o conhecimento da dimensão sintática, ou seja, de uma base sintática já constituída de modo que as referências possam ser realizadas. Assim, a dimensão pragmática pressupõe a dimensão semântica, que pressupõe a dimensão sintática, de modo que a dimensão pragmática pressupõe as outras duas.

     Essa hierarquia tem implicações para o que denominei de robusteza teórica no âmbito da filosofia analítica, o que ajuda a justificar a sugestão de Searle de que a filosofia de orientação comunicacional (como a sua) é “mais forte”.[51] Vejamos o argumento.

     Somos perfeitamente capazes de aprender a sintaxe de uma linguagem – isto é, as regras para a combinação de seus signos, não importando quais – mesmo em estado de ignorância das referências desses signos, sem saber como usá-los em situações concretas e, portanto, sem sequer conhecer seus significados. O inverso, contudo, é muito menos concebível, pois não podemos ter acesso adequado aos significados resultantes de combinações de signos, nem compreender os modos como esses signos são usados referencialmente em contextos apropriados sem antes conhecer suas funções sintáticas – ou seja, sem saber como podem ser combinados na construção de sentenças bem formadas. (Dificilmente o oposto é concebível. Se uma bandeira vermelha significa perigo, eu posso compreender sua dimensão semântica sem compreender sua dimensão sintática, posto que ela sequer existe.)

     Isso significa que a dimensão pragmática tende a carregar consigo a pressuposição de todo o conjunto de regras semânticas da linguagem, um arcabouço articulador de nossas intuições linguístico-conceptuais, de nossas intuições de senso comum acerca dos significados de nossas expressões, a ser manifesto nos modos pelos quais as usamos, além das regras da sintaxe.

     A assimetria recém-identificada tem consequências filosóficas. Ela indica que a análise de orientação formal, enfatizando a sintaxe, é menos dependente das demais dimensões, podendo ser desenvolvida sem considerá-las com atenção e, portanto, também em maior desacordo com elas, sem perda de inteligibilidade. Daí que o analista conceitual sintaticamente inspirado se sente mais livre para desafiar as assunções que fundamentam a racionalidade da linguagem e nosso entendimento comum do mundo, sobretudo quando seu procedimento for dependente de uma livre rejeição dessas assunções. Aqui temos um espaço muito mais livre para a postura procedimental denominada no capítulo anterior de reducionismo e definida como a tendência de produzir ideias e teorias que excluem mais do que seria intuitivamente razoável.

   Essas considerações são de interesse metafilosófico porque esclarecem por que muitos argumentos desafiadores, formulados por filósofos como Quine, Kripke, Hilary Putnam, David Kaplan e David Lewis, conseguiram opor-se muito mais facilmente ao senso comum linguístico manifestado na linguagem ordinária. Em contraste, filósofos de orientação comunicacional, como John Searle, P. F. Strawson e Paul Grice, que por apresentarem teorias mais robustas só poderiam fazê-lo a custo de uma inconsistência muito mais evidente. As últimas teorias, porém, ficam mais expostas à sedução do que chamei de ampliacionismo. Tanto o reducionismo quanto o ampliacionismo são vícios; mas pode haver vantagens no vício, ao menos enquanto ele não estiver fazendo mal à saúde.

     Na próxima seção, serão criticamente avaliadas as consequências teóricas extraídas pelos filósofos das concepções recém-apresentadas. O objetivo será demonstrar que a concepção de filosofia como análise da linguagem e, por extensão, como crítica da linguagem, embora eficaz em indicar como a filosofia deve poder ser, é incapaz de mostrar-nos o que a filosofia realmente é.

 

3.     A FALÁCIA OBJETAL NA

FILOSOFIA ANALÍTICA

 

Como o filósofo analítico está empenhado em expor a estrutura conceitual de nossa linguagem, tanto os defensores quanto os críticos da filosofia como análise conceitual podem bem pensar que ele:

 

(a)   Não está, de modo algum, desenvolvendo hipóteses especulativas sobre o mundo, como fazia o filósofo tradicional de orientação metafísica.

 

Além disso, tende-se a pensar que ele:

 

(b)   Tampouco está formulando hipóteses empíricas sobre o mundo, como fazem os cientistas naturais – ainda que o esforço de descrever o funcionamento real da linguagem possa, de certo modo, ser considerado um empreendimento empírico[52].

 

Meu objetivo nesta seção é demonstrar que nem a asserção (a) nem a (b) são corroboradas pela prática concreta da filosofia como análise da linguagem, e que tal pretensão repousa sobre uma insidiosa falácia objetal. Ao evidenciar o caráter falacioso dessas afirmações, pretendo também mostrar que é equivocada a suposição de que, do ponto de vista do objeto de investigação, a filosofia analítica se distinguiria, de maneira essencial, de outras formas de atividade investigativa. Afinal, embora tenha como finalidade o esclarecimento de estruturas conceituais, vimos que isso não implica abdicar de qualquer pretensão explicativa acerca do mundo.

     O comprido argumento que apresentarei para sustentar esse ponto não é, reconheço, um modelo de linearidade ou transparência. Ainda assim, aqui vai:

     Para demonstrar que o analista conceitual não é bem-sucedido em assegurar que sua análise tenha um objeto de investigação distinto daquele da filosofia tradicional ou mesmo da ciência em geral, precisamos começar pela consideração de sua prática efetiva. As teses (a) e (b) poderiam, de fato, ser mantidas de forma consistente se o analista conceitual se limitasse à análise lógica da estrutura das sentenças ou a uma tediosa, quasi-lexicográfica descrição dos usos ou significados das palavras-conceituais filosoficamente relevantes de nossa linguagem natural, como ocorreu com muito da assim-chamada filosofia da linguagem ordinária.

   No entanto, não foi isso o que realmente aconteceu. Para alcançar relevância filosófica, o analista conceitual sempre precisou ir além: foi necessário inquirir nossa praxis real de pensamento sobre as coisas, chegando inclusive a identificar, nessa praxis, conceitos para os quais ainda não havia palavras na linguagem. Tais conceitos são selecionados com base em critérios como o aumento da coerência e do poder explicativo de seus esboços teoréticos.

   Como esses conceitos recém-descobertos só podem ser expressos por meio de novas combinações de palavras, o analista conceitual é frequentemente levado a substituir essas combinações por termos de arte, criados por razões de economia discursiva. Alguns exemplos ilustram esse procedimento: o proponente de uma teoria das ações comunicativas pode analisar nossos “atos de fala” à luz de sua “força ilocucionária”; alguém envolvido com filosofia do conteúdo pode buscar entender a função representacional das sentenças declarativas, seu “significado cognitivo” em termos de “regras de verificação”; um teorista da referência pode distinguir o nome próprio das descrições definidas a ele associadas por ser ele um “designador rígido”; um epistemólogo pode propor uma análise do conceito de conhecimento proposicional (knowing that) como “crença verdadeira justificada enquanto a justificação puder ser independentemente considerada suficiente para torná-la verdadeira.”[53]

     Ao refletirmos sobre a questão, um primeiro ponto a considerar é que o procedimento supostamente analítico pode envolver momentos de síntese, Para ilustrar: quando percebemos que os conceitos C1 e C2 se encontram internamente relacionados, ou que ambos são constituintes da análise de C3, estaremos realizando uma síntese. Além disso, estruturas conceituais profundas podem ser inicialmente descobertas para, só então, serem analisadas e nomeadas. Nesse processo, o filósofo já realiza um trabalho de generalização. Em outras palavras, ele pode buscar trazer à tona os intermediários que (ao menos para o analítico pragmaticamente orientado) já devem estar implicitamente presentes no uso da linguagem.

     Um problema reside no fato de que a adequação desses conceitos unificadores, supostamente descobertos, pode ser altamente hipotética. Isso se evidencia na controvérsia recorrente que envolve os significados dos termos gerais empregados para explicar uma nova unidade conceitual. Muitas vezes, o filósofo pode estar empenhado em estabelecer conceitos e relações conceituais inéditos, buscando justificá-los por sua consistência com o sistema de crenças mais geral por ele aceito. Tal empreendimento é inevitavelmente conjectural. Ainda assim, nessa busca por equilíbrio reflexivo, o filósofo é capaz de propor hipóteses potencialmente frutíferas.

     Vejamos alguns exemplos dessas hipóteses conceituais formuladas no âmbito da filosofia analítica. Elas dizem respeito: (i) à estrutura empírica da linguagem, como na teoria dos atos de fala; (ii) à função representacional de nossos enunciados, como no caso mais especulativo do princípio da verificabilidade, segundo o qual o significado cognitivo de uma sentença declarativa consiste, conforme a exposição de Wittgenstein, em múltiplos modos de verificação mais ou menos fortes[54]; (iii) à forma pela qual a mente avalia o nosso “saber que p” na definição do conhecimento proposicional. Todos esses casos podem ser considerados, em certa medida, análogos ao trabalho de descoberta de leis naturais nas ciências empíricas – isto é, análogos a algo capaz de explicar uma multiplicidade indeterminada de casos individuais a ser posteriormente confirmado pela experiência, mesmo que esta diga respeito às regras de interação linguística, no primeiro caso, ou à estrutura de certos processos essencialmente cognitivos, nos dois últimos.

     Penso que um filósofo de orientação comunicacional não terá grande dificuldade em aceitar essas conclusões. Ainda assim, ele tenderá a insistir que, embora seu procedimento analítico concreto seja precedido de um momento hipotético de síntese, seu esforço estará sempre voltado para tornar explícito aquilo que já pertence ao nosso sistema conceitual, e não, como o cientista empírico ou o filósofo especulativo, para ultrapassá-lo mediante a elaboração de hipóteses sobre o mundo empírico real.

     Contudo, ao examinarmos os exemplos disponíveis, percebemos que muito do que os filósofos analíticos dizem também pode ser interpretado como tratando de fatos empíricos, mesmo que sejam muito gerais ou digam respeito, sobretudo, ao modo como nossas representações se relacionam ao mundo, mais do que ao mundo em si mesmo.

     Com efeito, ao examinarmos exemplos de análise que vão além da filosofia da linguagem, como os encontrados na filosofia da mente ou na metafísica analítica, percebemos que podem muito bem referir-se a constituintes gerais do próprio mundo empírico. Coisas como propriedades, indivíduos, causas e efeitos, espaço e tempo, são constituintes muito gerais no mundo empírico, e a investigação de sua natureza não deixa de ser empírica.

   Tomemos, para exemplificar, o caso da análise do conceito de consciência em filosofia da mente. Restrinjo-me aqui a uma das primeiras, dentre as muitas teorias da consciência desenvolvidas nas últimas cinco décadas: a teoria proposta por D. M. Armstrong em 1978, filósofo de formação analítica.[55]  Ela introduziu uma distinção fundamental entre duas formas principais de consciência: a consciência perceptiva, que corresponde ao estado de vigília e à percepção do mundo, e a consciência introspectiva, que consiste na submissão de estados mentais ditos “conscientes” à introspecção ou à cognição de segunda ordem sobre esses estados. Embora essa distinção possa ser dita conceitual, ela também se refere a classes de fenômenos empíricos, ou seja, a fenômenos mentais difusamente situados no espaço e no tempo.

   No domínio da metafísica analítica, destaca-se atualmente a amplamente debatida teoria ontológica dos tropos, introduzida em 1953 pelo metafísico Donald Williams. Essa teoria renova a análise do conceito fundamental de propriedade. Em oposição às análises realistas tradicionais, que concebem as propriedades como universais abstratos, Williams propôs uma alternativa: para ele, o mundo é basicamente constituído por propriedades espaço-temporalmente localizáveis, às quais deu o nome de tropos.[56]

     Vimos que, embora a ideia de que o analista conceitual possa expor estruturas empíricas possa parecer estranha a princípio, há respostas convincentes em defesa disso. Também A. J. Ayer se posicionou favoravelmente a essa perspectiva:

 

A distinção entre ‘sobre a linguagem’ e ‘sobre o mundo’ não é de modo algum abrupta, pois o mundo é o mundo que descrevemos, o mundo como ele figura em nosso sistema conceitual. Ao explorar nosso sistema conceitual, você está, ao mesmo tempo, explorando o mundo.[57]

 

A resposta de Ayer torna-se especialmente convincente à luz de nossas considerações anteriores sobre ênfase conceitual e o uso de uma metalinguagem semântica. Ela aponta, ainda que implicitamente, também para o fato de que não podemos distinguir o objeto de investigação próprio da filosofia apenas com base na análise de nossas estruturas conceituais. Afinal, em sentido análogo, também se poderia argumentar que tanto o cientista empírico quanto o metafísico especulativo estão realizando um trabalho de “análise conceitual”. A diferença é que o cientista empírico não precisa de recursos como o da ascensão semântica ou da metalinguagem semântica em seu trabalho. Esse último ponto pode ser ainda mais bem esclarecido se examinarmos separadamente as objeções levantadas contra as teses (a) e (b).

     Considere-se a tese (a): segundo ela, diferentemente dos filósofos especulativos, os filósofos analíticos não fazem asserções conjecturais sobre o mundo. Contra essa tese, é importante ressaltar que a história da filosofia tem mostrado que todos os domínios e posições da filosofia tradicional podem ser encontrados no trabalho de filósofos considerados analíticos (por alguns até mesmo chamados de “pós-analíticos”). Sequer faz sentido defender que a filosofia analítica não é especulativa, pois a própria história revela que as distinções mantidas por diferentes filósofos entre:

 

     Filosofia crítica                  e      Filosofia especulativa

     (ocupada com a defini-              (objetivando alcançar conclusões gerais

     ção e análise crítica                    sobre a natureza do universo e sobre

     dos conceitos de nossa               nosso lugar e expectativas nele)

     vida diária e ciências)                 (Por C. D. Broad);     

  

     Metafísica imanente            e     Metafísica transcendente

     (limitando-se ao mundo             (objetivando ir além dos sentidos,

     dos sentidos)                               relacionando-se com o mundo

                                                         supra-sensível)

                                                         (Por W. H. Walsh);

 

     Metafísica descritiva            e     Metafísica revisionária

     (ocupada com a descrição           (tentando criar uma nova

      de nossas estruturas reais            estrutura de pensamento)

      de pensamento)                           (Por P. F. Strawson);

 

encontram um paralelo no domínio da filosofia analítica, na distinção entre:

 

      os resultados da análise       e    os resultados da análise da linguagem

      da linguagem de orien-              de orientação formal.

      tação comunicacional               (filosofia sintática e semanticamente

      (filosofia pragmática-                orientada)

      mente orientada)

 

Embora esse paralelo não seja rigoroso, há uma razão profunda para sua existência. A dependência das intuições de senso comum – frequentemente refletidas nas intuições linguísticas –, geralmente preservada pela filosofia crítica e pelas metafísicas imanentes e descritivas, encontra equivalente na postura do analista conceitual comunicacionalmente inspirado. Em contrapartida, vimos que o analista conceitual formalmente orientado demonstra pouca ou nenhuma preocupação em preservar essas intuições ordinárias, estejam elas espelhadas na linguagem ou não, o que facilita um trabalho muito mais especulativo. Considere, como exemplos de análise conceitual de orientação formal, o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, com sua teoria dos nomes atômicos referindo-se a objetos absolutamente simples como seus significados; a teoria causal-histórica da referência, proposta por Saul Kripke, segundo a qual nomes próprios identificam seus referentes ao final de uma por vezes imensa cadeia causal externa iniciada por um batismo[58]; e ainda o realismo modal de David Lewis, que ousou postular a existência de uma infinidade de mundos possíveis reais e mutuamente incomensuráveis.

     Essas observações demonstram que a distinção entre filosofia analítica e tradicional não se aplica ao objeto de investigação. De fato, se formos suficientemente imaginativos, toda a metafísica especulativa pode ser reformulada em um modo de discurso conceitualmente acentuado, ou seja, na forma de ascensão semântica que empregue uma metalinguagem capaz de legitimar a pretensão do filósofo especulativo de realizar análise filosófica nos mesmos termos do analista conceitual.

   Considere, como exemplo radical, o conceito de eu puro no idealismo fichteano. Trata-se de uma entidade acessível apenas intelectualmente, que põe (setzt) o mundo externo para pôr-se a si mesma (por Selbstsetzung), estabelecendo, simultaneamente, uma necessária oposição a ele, de onde se seguirá, como síntese, o mundo finito externo e interno. Ora, não seria nem um pouco surpreendente se algum filósofo analítico contemporâneo, simpático ao idealismo, decidisse traduzir tais afirmações em uma análise do conceito de “eu elusivo”, entendido como constituído e como sendo constituído pela realidade social sob assunções antirrealistas.

     Mesmo que tal antirrealismo se revele, em última instância, tão escassamente inteligível e especulativo quanto o próprio modelo fichteano, ele não será menos defensável do que algumas ideias do construtivismo social contemporâneo em filosofia da ciência.[59]

     Embora esse tipo de estratégia possa ser facilmente concretizado pelo analista conceitual formalmente inspirado, já vimos que ele exigiria maior esforço por parte do analista conceitual de orientação comunicacional, uma vez que tende a entrar em conflito com as intuições de senso comum que a linguagem ordinária espelha, sem apresentar razão suficiente para semelhante ruptura.[60]

     Mesmo nesse caso, a estratégia não é inviável: o analista comunicacionalmente orientado pode sustentar que o desacordo com nossas intuições é apenas aparente, buscando demonstrar que suas afirmações podem ser harmonizadas com o pano de fundo de nossas crenças ordinárias. Afinal, o bispo Berkeley, ao defender a ideia de que nosso mundo é constituído apenas por ideias e espíritos, antecipou essa estratégia ao afirmar que seu imaterialismo nada mais fazia do que refletir as verdadeiras expectativas do senso comum – aquelas mantidas por pessoas ainda intocadas pela filosofia!

     Para resumir: o trabalho dos filósofos analíticos inclui momentos de síntese hipotética, nos quais novos conceitos são concebidos e explorados em suas possíveis inter-relações. Seu trabalho é capaz de conter (mesmo que de forma indireta) inesperadas especulações metafísicas, que podem ter consequências até mesmo no modo como fundamos nossa apreensão da realidade empírica.

     Já o analista conceitual de orientação formal tende a realizar tais especulações com maior desenvoltura, pois terá mais facilidade para sacrificar o alinhamento às expectativas intuitivas acerca do mundo, sem, com isso, comprometer a inteligibilidade de seus argumentos. Isso se deve ao fato de que, para ele, a inteligibilidade repousa sobretudo na coerência formal interna de sua análise.

     À luz dessas considerações, torna-se evidente que todos os domínios da metafísica tradicional podem, de um ou de outro modo, ser abordados por alguma forma ampliada de análise linguístico-conceitual capaz de promover algo tão trivial quanto a ascensão semântica. A conclusão é inevitável: sustentar que há alguma distinção substancial entre filosofia como análise conceitual e filosofia tradicional – mesmo em suas vertentes mais especulativas – é hipostasiar o papel meramente instrumental da ênfase linguístico-conceitual ou, digamos, da lógica fregeana ou da semântica dos mundos possíveis.

     Um argumento semelhante se aplica à tese (b), segundo a qual a filosofia difere das ciências empíricas por se limitar à investigação conceitual.

     Que essa tese é falsa já deve ter ficado evidente, uma vez que nosso último exemplo de análise conceitual envolveu também o mundo natural, mesmo que de forma indireta. Mas o ponto em questão pode ser formulado de forma mais dramática.

     Suponha, primeiramente, a existência de um analista conceitual plenamente consequente, que, ao adotar a concepção ampla de análise já descrita, considere os conceitos e suas relações como os verdadeiros objetos de investigação da filosofia, capaz de distingui-la de outras áreas do saber. Então, como ele veria a ciência?

     Não lhe seria difícil perceber que Einstein, ao concluir que a velocidade da luz é constante para todos os observadores, precisou analisar o conceito de simultaneidade aplicado a observadores em movimento relativo a velocidades próximas à da luz, pois é certo que ele não estava tentando analisar o movimento relativo de carros de pessoas, carros e trens ao nosso redor.

   Quanto ao trabalho do cosmologista Stephen Hawking, nosso analista conceitual facilmente notaria que o cientista não estava envolvido em nenhuma dissecação dos buracos negros em si mesmos, mas sim em análises astrofísicas rigorosas sobre as implicações do conceito de buraco negro – implicações necessárias para uma interpretação coerente do fenômeno.

     Do mesmo modo, o conceito de evolução natural – como logo notaria nosso analista conceitual perfeitamente consequente – foi primeiramente formulado e adequadamente analisado por Charles Darwin, a partir de reflexões fundamentadas em observações zoológicas e botânicas. Gregor Mendel analisou o conceito de gene, Watson e Crick analisaram o conceito de DNA, abstraindo o processo de reprodução. O psicólogo Carl Jung vislumbrou e analisou o conceito de inconsciente coletivo: seus arquétipos já estavam presentes em seus pacientes – bastava nomeá-los. E o sociólogo Thorstein Veblen, analisou os conceitos que ele próprio explicitou: o de classe ociosa (que se orgulha de não precisar trabalhar) e o de consumo ostensivo (o hábito das elites de consumir bens e serviços caros e supérfluos como forma de exibição).

     Estavam todas essas pessoas fazendo filosofia?

    Aceitando, como o faz nosso analista conceitual inteiramente consequente, que o mundo conceitual constitui o verdadeiro objeto da filosofia, ele não poderá evitar uma resposta afirmativa. De fato, todo trabalho teórico parece, nesse horizonte, tornar-se – de um modo ou de outro – um trabalho de análise conceitual, embora certamente não-filosófico.

     Contudo, é possível imaginar a situação oposta: suponha que tenhamos junto a nós um empirista radical, que parte da premissa de que o conhecimento científico empírico não é essencialmente conceitual, ainda que só possa ser acessado por meio de conceitos, uma vez que esses conceitos se aplicam a fatos empíricos, mesmo que muito abrangentes. Como esse empirista consideraria a maioria das questões levantadas pela filosofia?

   Voltando aos nossos exemplos: a teoria dos atos de fala trata de ações comunicativas humanas em contextos reais; a análise verificacionista dos sentidos factuais ou cognitivos de nossos enunciados diz respeito aos modos como nossas mentes estabelecem verdades sobre o mundo; e o realismo sobre leis científicas é uma tese sobre a constituição possível da realidade. Diante disso, o analista será levado a conceber grande parte da filosofia como tratando de fenômenos empíricos, ainda que difusos e abrangentes, a serem abordados pela ciência empírica.

     O caso do analista conceitual plenamente consequente mostra que uma investigação que não versa diretamente sobre conceitos, como a da ciência empírica, pode sempre ser interpretada como envolvendo conteúdos conceituais. Por outro lado, o caso do empirista radical revela que uma investigação usualmente concebida como centrada em conceitos – como aquela praticada por filósofos ditos analíticos – pode, em muitos casos, ser interpretada como uma indagação que transcende os limites conceituais e adentra o campo do conhecimento empírico.

     Que conclusões podemos extrair de tudo isso? A primeira é que os objetos da filosofia analítica não precisam diferir, por natureza, daqueles da filosofia especulativa tradicional e tampouco dos da ciência. Afinal, a filosofia analítica não pode reivindicar uma distinção essencial em relação a esses empreendimentos apenas por enfatizar o trabalho com estruturas conceituais.

   Dessa forma, nossos dois casos demonstram, de maneira inequívoca, que a pretensão de restringir o objeto de investigação filosófica ao exame da estrutura de nossos conceitos, quando indevidamente considerada, acaba por inviabilizar qualquer distinção objetal entre a filosofia analítica e outros empreendimentos teoréticos.

 

4.     CONCLUSÃO: UM PARALELO COM O

     ORGANON ARISTOTÉLICO

 

Qual é, então, a diferença real entre, de um lado, a filosofia como análise conceitual e, de outro, a filosofia especulativa tradicional ou a ciência, uma vez que a diferença não se resume ao objeto de investigação?

     A resposta é que os filósofos analíticos submetem suas investigações a um controle metodológico significativamente mais rigoroso. Em parte, isso se deve ao fato de formularem suas concepções em uma metalinguagem semântica, mas também, cada vez mais, ao fato de submetê-los a novos instrumentos formais. Além disso, e de modo cada vez mais relevante, essas concepções são constantemente confrontadas com o pano de fundo de nossa visão de mundo contemporânea, profundamente informada pelos avanços da ciência.[61]

     Conclui-se, portanto, que a filosofia analítica, principalmente aquela que já foi denominada “filosofia da análise linguística”[62] – é, em essência, apenas o nome que atribuímos a uma maneira mais refinada de fazer filosofia desenvolvida ao longo do século XX. Essa abordagem exige ênfase particular no meio linguístico-conceitual, sobretudo por razões de rigor metodológico.

     Considerando que a filosofia pode ser vista como um jogo argumentativo, indiretamente voltado à busca da verdade, realizado por meio de lances com um material simbólico-linguístico, torna-se compreensível por que o emprego de novos instrumentos procedurais passou a ser uma característica distintiva da filosofia posterior a eles. Tal traço se evidencia especialmente em suas áreas teóricas mais centrais, como a epistemologia e a metafísica, além de outras, como as filosofias da linguagem, da ciência, da matemática e da lógica.

     Um paralelo revelador pode ser traçado entre a assimilação histórica das doutrinas propedêuticas do Organon aristotélico e a incorporação de novos procedimentos formais nos domínios centrais da filosofia contemporânea.

     Aristóteles via nas novas doutrinas lógicas e metodológicas contidas em seu Organon um instrumento indispensável para o adequado exercício do raciocínio filosófico e científico. O Organon incluía uma teoria da proposição e de seus constituintes, uma teoria do raciocínio dedutivo (a silogística), reflexões sobre a natureza das definições, rudimentos de uma teoria da indução, da explicação e da predição científicas, além de uma classificação das falácias.

     A assimilação dessas doutrinas foi lenta. Mas, aos poucos, ela acabou por transformar decisivamente os modos de se fazer filosofia teórica. Os instrumentos aristotélicos de investigação foram aperfeiçoados nas universidades da Baixa Idade Média, especialmente sob a denominação de dialética, estabelecendo novos e irreversíveis padrões argumentativos em filosofia que, uma vez adotados, jamais puderam ser totalmente ignorados, ao menos nos âmbitos de investigação aos quais se aplicavam.

     Ora, a assim chamada filosofia analítica deixa-se explicar como a consequência de uma revolução metodológica análoga. Desde o final do século XIX, surgiram desenvolvimentos extremamente relevantes em domínios semelhantes aos cobertos pelo Organon aristotélico. Alguns dizem respeito à estrutura das proposições (como no caso da semântica fregeana), outros à lógica dedutiva (como a lógica dos predicados de primeira e segunda ordem e, mais tarde, a lógica modal...), ao raciocínio indutivo (teorias da probabilidade, teoria descritiva da decisão...), à pragmática (teoria da verificação, a teoria dos atos de fala...) e ao domínio da filosofia da ciência (teorias da explicação, da confirmação...).

     Seria deveras surpreendente se a linguagem filosófica, ao menos em muitos de seus domínios, não acabasse por ser profundamente modificada por tais desenvolvimentos, capazes de estabelecer padrões superiores de claridade e rigor, além de aumentar notavelmente seu potencial heurístico, ao menos enquanto devidamente aplicados. A incorporação desses novos procedimentos em uma investigação cientificamente informada deve inevitavelmente possibilitar uma visão mais nítida, em uma revolução comparável àquela que a descoberta do telescópio representou para a astronomia. (Mas, como percebeu Gottlob Frege, somente quando o que está em questão é a investigação dos astros; não para o que se encontra ao nosso redor.)

     Recapitulando os principais resultados: a razão profunda pela qual a filosofia analítica já pareceu ter somente a linguagem como objeto reside em sua preocupação propedêutica com o elemento linguístico-conceitual; uma preocupação que se tornou especialmente evidente com o emprego do que Quine chamou de ascensão semântica. Esse enfoque levou os filósofos analíticos, inicialmente, a confundir os novos instrumentos e procedimentos de abordagem – que também podem ser aplicados em outros lugares – com o método peculiar da filosofia, levando-os ao erro subsequente de tomar o objeto de aplicação desses instrumentos pelo objeto próprio da filosofia.

     O fato de que, em filosofia, recorremos frequentemente a uma metalinguagem semântica para promover um tratamento mais rigoroso das estruturas linguístico-conceituais não implica ignorar seus sentidos e referências – concebidas, aliás, por meio desses mesmos sentidos. E tampouco nos obriga a renunciar ao acesso ao mundo. Esse recurso, como outros, é um elemento constitutivo do que, de maneira um tanto enganosa, já foi chamado de “filosofia analítica da linguagem”, a qual, ao incluir representações panorâmicas, também incorpora um inevitável componente de síntese teorética.

     De fato, se “análise conceitual” é o nome de algo, então designa os modos de investigação que incorporam uma consciência semiótica mais refinada, aliada a procedimentos heurísticos que se tornaram comuns nos domínios centrais da filosofia ao longo do século XX, iniciando com Gottlob Frege (para Searle, “o inventor da filosofia analítica”). Em termos mais amplos, pode-se dizer que a filosofia dita analítica resultou, em grande medida, do desenvolvimento das “ciências semióticas” aplicadas à filosofia, o que nada tem a ver com o método próprio e inalienável da filosofia.

     Em suma: “análise conceitual” é o nome atribuído aos traços procedurais mais salientes de um estado da arte historicamente contingente – trata-se, se quisermos, de um estilo que procuraremos preservar ao longo de nossa investigação.

    Se, com esse fastidioso capítulo, não avançamos significativamente, pelo menos livramo-nos de algumas preocupações.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Ver Pierre Hadot: Philosophy as a Way of Life: Spiritual Exercises from Socrates to Foucault, cap. 11.

[2] Edmund Husserl, Ideen zu einer reinen Phänomenologie und zu einer phänomenologischen Philosophie, Cap. 1, sec. 3.

[3] Cf. Michael Inwood, A Heidegger Dictionary, p. 164.

[4] Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, sec. 109.

[5] Gilles Deleuze & Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?

[6] Rudolph Carnap, “On the Character of Philosophical Problems” in R. C. Rorty (ed.) The Linguistic Turn, p. 54.

[7] Metafísica I, 982b

[8]  “Foi o espanto que levou os homens, agora como no princípio, a filosofar.” Aristóteles, Metafísica, 982b 12.

[9] A. E. Taylor, Aristotle (1916), p. 42. Em consonância com Aristóteles, G. E. Moore definiu a filosofia como uma tentativa de oferecer uma descrição geral das mais amplas categorias de coisas no universo e das relações entre elas. “What is Philosophy?”, p. 23.

[10] Wilhelm Dilthey, Die Typen der Weltanschauungen und ihre Ausbildung in die metaphysischen Systemen.

[11] Ver John Kekes, The Nature of Philosophy. O tema é considerado criticamente em C. D. Broad “Critical and Speculative Philosophy”, sendo reconsiderado como uma espécie de ideial por Wittgenstein em sua sugestão de que a filosofia deva buscar uma reprentação sinóptica de nossa linguagem (übersichtliche Darstellung) talvez refletindo uma visão de mundo (Weltaschauung).

[12] Ernst Tugendhat, “Die Philosophie unter sprachanalytischer Sicht“, in Philosophische Aufsätze (1990), p. 268.

[13] Susan Haack,The Fragmentation of Philosophy: The Road to its Reintegration, cap. 1.

[14] Segundo o físico Stephen Hawking, a filosofia morreu por não ter sido capaz de acompanhar a ciência... The Great Design, p. 5

[15] Uso o termo ‘metafilosofia’ no sentido de filosofia da filosofia. A palavra ‘metaphilosophy’ foi, ao que consta, criada por Morris Lazerovitz em 1940, significando a mesma coisa que uma investigação filosófica sobre a natureza da filosofia. Ver seu “A Note on Metaphilosophy”, no primeiro número da revista Metaphilosophy. Para isso, como notaram S. Overgaard, P. Gilbert e S. Burwood (Introduction to Metaphilosophy, p. 10), não chega a ser necessário seguir o conselho de Timothy Williamson, substituindo a palavra ‘metafilosofia’ pela expressão ‘filosofia da filosofia’, como se ‘metafilosofia’ significasse algo que está “olhando para a filosofia além dela, de cima para baixo”. Cf. Williamson, The Philosophy of Philosophy, p. xxx.

 

[16] Analysis and Metaphysics, p. 5.

[17] Ernst Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die Sprachanalytische Philosophie. cap. 11.

[18] Claudio Costa, Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy, cap. II, sec. 7

[19] Saul Kripke, Naming, and Necessity.

[20] Para uma crítica ao reducionismo da teoria causal-histórica da referência em Kripke, ver Claudio Costa: How Do Proper Names Really Work? Cap. II.

[21] Johannes Hessen: Teoria do conhecimento, p. 18.

[22] The Nature of Philosophy”, in Dilthey: Selected Writings, p. 122.

 

[23] Sobre a extraordinária variedade de recursos metodológico-heurísticos mobilizados pelos filósofos contemporâneos, vale consultar The Oxford Handbook of Philosophical Methodology, editado por Herman Cappelen et all (2016). Embora útil, o livro exemplifica uma limitação recorrente na filosofia presente: confiança subserviente na sabedoria herdada da filosofia analítica anglófona das últimas cinco ou seis décadas. Filósofos emblemáticos como Wittgenstein, Russell, Husserl e mesmo Gottlob Frege, são raramente mencionados. Críticos relevantes, como John Searle, opositor do formalismo, e Susan Haack, crítica severa do estado atual da filosofia analítica, são virtualmente silenciados.

[24] Ernst Tugendhat, Die Philosophie unter den sprachanalytischen Sicht, p. 268.

[25] W. V. O. Quine, Word and Object, p. 270 ss.

[26] W. V. O. Quine, “A Letter to Mr. Ostermann.”

[27] Ver Timothy Williamson: The Philosophy of Philosophy, cap. 1.

[28] J. O. Urmson Philosophical Analysis: Its Development between the Two World Wars.

[29] Ver argumento desse gênero em Bertrand Russell, A History of Western Philosophy, p. 127.

[30] A clássica crítica da linguagem ordinária ao argumento da ilusão é encontrada no livro Sense and Sensibilia, de J. L. Austin. Uma crítica muito aguda, embora esquemática, ao argumento da ilusão, pode ser encontrada no livro de J. R. Searle, Language, Mind and Society: Philosophy in the Real World, cap. I, p. 28 ss. A última palavra de Searle em defesa do realismo direto encontra-se em seu muito recomendável livro Seeing Things as they Are (2015).

[31] Ver Claudio Ferreira-Costa, How do Proper Names Really Work?, pp. 220-241

189-190.  

[32] Cf. Claudio Ferreira-Costa, How do Proper Names Really Work?, pp. 189-190.

[33] Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen I, sec. 109, 118, 119... Uma tentativa bem articulada, mas interpretativamente objetável, de defender essa interpretação deflacionária de Wittgenstein encontra-se em Paul Horwich, Wittgenstein’s Metaphilosophy.

[34] Prefiro pensar que, ao escrever sobre “terapia”, Wittgenstein estava falando de seu modo pessoal e minimalista de trabalhar com conceitos filosóficos, e não que ele estava propondo o único e próprio método de filosofar. Só isso explica por que ele também manteve ideias diferentes e aparentemente incompatíveis com isso, como foi apontado por seus melhores intérpretes. Ver, por exemplo, Anthony Kenny, “Wittgenstein and the Nature of Philosophy”. Para uma tentativa de compatibilizar essas duas concepções, ver meu livro, A Linguagem Factual, cap. II, que contém um resumo de minha tese doutoral intitulada Wittgensteins Beitrag zu einer Sprachphilosophischen Semantik.

[35] Wittgenstein, The Blue Book, pp. 17-18.

[36] A. J. Ayer, Ludwig Wittgenstein, p. 137.

[37] L. Wittgenstein, Investigações Filosóficas, sec. 79.

[38] J. R. Searle, “Proper Names.”

[39] How do Proper Names Really Work?

[40] R. Carnap, Logische Syntax der Sprache, parte I.

[41] J. R. Searle, Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World, p. 138.

[42] Ambos os componentes podem vir implicitos alternadamente: posso dizer “Feche a porta” e o contexto se encarregará de indicar se se trata de um pedido ou de uma ordem. Posso dizer “Por favor” e o contexto mostrará ao ouvinte que se trata de um pedido de fechar a porta.

[43] J. R. Searle, Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind, cap. 1.

[44] Tractatus Logico-Philosophicus 4.002.

[45] Philosophische Untersuchungen I, sec. 122. Sobre o conceito de representação panorâmica (übersichtliche Darstellung), ver os comentários de G. P. Baker & P. M. S. Hacker, em Wittgenstein: Understanding and Meaning, p. 489. (Refiro-me à primeira edição do texto, que prefiro à versão revisada apenas por Hacker após o falecimento de seu coautor.)

[46] Ernst. Tugendhat, “Die Philosophie unter den sprachanalytischen Sicht“, p. 268.

[47] W. V. O. Quine: World and Object, p. 270 f.

 

[48] W. V. O. Quine, Word and Object, pp. 271-272.

[49] Frege chamou de sentido de um nome de Art des Gegebenseins eines Gegenstandes: o “modo de se dar do objeto”, mas não chegou a fazer uma análise do sentido da expressão predicativa, supostamente por ter resistido a identificar seu sentido com o conceito.

[50] Como introdução, ver Charles Morris, Foundations of the Theory of Signs.

[51] Searle observou em aula que sua aproximação (pragmático-comunicacional) das questões é “mais forte” (stronger) do que uma aproximação de inspiração puramente formal.

[52] Kai Nielsen sublinhou o fato óbvio, mas ainda assim notável, de que quando filósofos descrevem os usos de nossas expressões, “eles estão fazendo observações empíricas sobre como a linguagem funciona.” What is Philosophy?”

[53] Essa ideia antiga foi pela primeira vez adequadamente aprofundada por Robert Fogelin no capítulo I de seu livro Pyrrhonian Reflection on Knowledge and Justification. Ela foi refinada de maneira que considero definitiva no capítulo V de meu livro Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions. Voltarei a ela mais tarde.

[54] A sugestão original de que o significado de uma sentença declarativa se constitui em seus procedimentos de verificação foi feita por Wittgenstein e tem muito pouco a ver com as soluções formalistas insustentáveis tentadas mais tarde pelos membros do Círculo de Viena – um boneco de palha que eles criaram para, com toda razão, depois rejeitar. A sugestão original de Wittgenstein requer um desenvolvimento pragmático que, pelo que sei, nunca foi seriamente tentado. Ver Wittgenstein’s Lectures, pp. 28-29 (sec. 24). Para uma discussão mais detalhada, ver Claudio Costa, Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy, cap. V.

[55] Ver o resumo da teoria em D. M. Armstrong: The Mind-Body Problem: an Opinionated Introduction, cap. 10. Pessoalmente, acredito na possibilidade de uma teoria filosófica integradora e diferenciadora dos subconceitos de consciência. Ver meu Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions, cap. 10.

[56]  Donald Williams, “The Elements of Being”, partes I e II. A teoria tem sido aos poucos diluída pelo escolasticismo contemporâneo, de modo que é aconselhável voltar ao original.

[57] A. J. Ayer, em entrevista com Brian Magee (Men of Ideas, p. 127). A objeção de Magee a essa observação de Ayer e a observações similares feitas na entrevista com Searle – uma objeção à qual respondo aqui de modo mais detalhado – é que a indagação analítica, como qualquer indagação metalinguística, inevitavelmente deixa o mundo real de fora (ver Brian Magee in Confessions of a Philosopher, pp. 74-76). Outros, como John McDowell, também perceberam isso, mas sob a admissão de um descabido externalismo semântico (Mind and World, p. 27). Contudo, a palavra ‘significado’ significado pertence à linguagem tanto quanto a palavra ‘verdade’. Dizemos que a Revolução Industrial teve grande significado para a evolução da humanidade, mas aqui a palavra ‘significado’ aparece apenas como substituto de ‘importância’. Minha crítica ao externalismo do significado, tal como foi desenvolvido por Hilary Putnam, encontra-se no capítulo VIII de meu livro Cognitivismo semântico: filosofia da linguagem sob nova chave.

 

[58] Note-se que essas cadeias causais externas realmente existem. O problema é que elas não possuem, enquanto tais, qualquer poder explicativo. Ver John Searle, Intentionality, cap. 9.

[59] Um espécime disso é o livro de B. Latour & S. Woolgar, Laboratory Life: The Construction of Scientific Facts. Eles tiveram a ideia (tão original quanto imatura) de investigar os cotidiano de um laboratório científico como se estivessem estudando os rituais de xamãs em uma comunidade indígena.

[60] A máxima da integridade epistêmica é aqui: “não transgredir a linguagem ordinária, a menos que você tenha razões suficientes para fazê-lo”.

[61] Uma exceção histórica parece ter sido o filósofo G. E. Moore, que pode ser considerado um herdeiro tardio da antiga escola do senso comum, convivendo com os analíticos e confundindo-se com eles.

[62] O canto de cisne que discute a filosofia comunicacionalmente inspirada na filosofia alemã foi o clássico estudo de Ernst Tugendhat de 1976, intitulado Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie, que foi traduzido para o português sob o título de “Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem”. Desde então, cada vez mais, a filosofia formalmente orientada tem se tornado quase hegemônica.