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sexta-feira, 11 de maio de 2012

CAUSALIDADE (texto introdutório)

Texto introdutório extraído do livro Cartografias Conceituais: uma abordagem da filosofia contemporânea (Natal, Edufrn 2008) - C.F. Costa




                                                      REGULARIDADES CAUSAIS


     Dizemos que a causa da porta do elevador ter-se aberto é que apertei o botão, que a causa da vidraça se ter quebrado foi uma pedrada. Podemos dizer que a causa da conclusão do médico de que o seu paciente está com gastrite são considerações acerca de sensações de queimação no estômago ou que a causa da extinção dos dinossauros teria sido a queda de um grande asteróide, ou ainda, que as principais causas da queda do império soviético foram um enfraquecimento interno do regime, adicionado à política de distensão mantida por políticos conservadores ocidentais, como Ronald Reagan...
     Como se vê, o conceito de causalidade possui uma extensão muito ampla, sendo aplicado praticamente a cada momento de nossas vidas como seres pensantes. Isso revela a importância de se questionar a sua natureza. Quero começar, porém, com uma breve exposição da antiga classificação aristotélica dos tipos de causa.
     A doutrina aristotélica das quatro causas
     Aristóteles foi talvez o primeiro a se interessar seriamente pelo assunto, tendo proposto a existência de quatro tipos de causa: eficiente, material, final, e formal(1). A causa eficiente é aquela pela qual alguma mudança é efetuada. Por exemplo: a atividade de um escultor é a causa eficiente da produção da estátua de bronze. A causa material é aquilo em que a mudança é efetuada. A peça de bronze a ser esculpida é, no exemplo considerado, a causa material. A causa final consiste na finalidade da ação, que é a de produzir uma estátua do deus Apolo. A causa formal, finalmente, é a idéia da estátua do deus Apolo, que será realizada na forma da estátua, quando esta ficar pronta. Para Aristóteles, filósofos anteriores a ele haviam enfatizado unilateralmente uma ou outra causa. Assim, o milesiano Tales estava interessado na causa material quando propôs ser a água o princípio originador e sustentador de todo o universo. Já Empédocles, que sugeriu serem as forças do amor e do ódio causas de tudo, estava enfatizando a causa eficiente. E Platão, com a sua doutrina das idéias, enfatizava a causa formal.
     Hoje a doutrina das quatro causas é considerada arcaica e o conceito de causa eficiente é o que se destacou, por ser aquele que costuma ser pensado quando falamos de causação. Assim mesmo, Aristóteles considerou coisas que se inter-relacionam. A causa material faz parte do complexo de circunstâncias causais que acompanham a causa eficiente, as quais, caso fossem diversas, poderiam invalidar o processo causal. E a causa final pode sobreviver como parte da causa eficiente, quando o elemento causal considerado é de ordem mental. Podemos dizer, por exemplo, que a causa (eficiente) do estudante ter passado a noite estudando é que ele tinha a intenção de ser aprovado no exame (causa final).

Análise da causa eficiente em termos de associação constanteDavid Hume realizou uma análise empirista do conceito central de causa eficiente. Quando consideramos causas e efeitos, podemos encontrar quatro condições(2): A primeira é a de contigüidade espaço-temporal; as causas apresentam contigüidade espacial e temporal com os seus efeitos. Provavelmente não existe uma verdadeira causação à distância e os supostos contra-exemplos (como o do sol fazendo os planetas orbitarem em torno de si) demonstram-se, a um exame mais próximo, aparentes (a gravitação do sol encurva o espaço ao redor). Já quando admitimos que um efeito ocorre muito tempo depois de sua causa, pode ser que estejamos apenas nos exprimindo de forma abreviada, omitindo elos causais intermediários. A segunda condição é a da sucessão: o efeito sucede a causa no tempo. A terceira é a da constância: sempre que encontramos uma causa, encontramos o seu efeito. A quarta e última condição é a da necessidade: a causa necessita o seu efeito.
     Hume pensava que as primeiras três condições podem ser efetivamente confirmadas pela experiência. O problema estava na quarta condição, a de que a causa necessita o efeito, pois nem podemos saber da satisfação dessa condição através da experiência, nem ela é uma verdade conceitual. Não experienciamos uma relação de necessidade entre, digamos, o aquecimento de um pedaço de gelo e o fato de ele se liquefazer. Além disso, que o calor faz o gelo se liquefazer não é uma verdade conceitual, como é o caso da verdade expressa pela sentença “O triângulo tem três lados”. Nossas mentes podem perfeitamente dissociar o efeito da causa. Posso imaginar o calor fazendo com que a água se congele... Considerações como essa levaram Hume à conclusão de que é apenas o hábito, originado pela experiência de uma repetição constante da associação entre causa e efeito, que nos faz pensar que existe uma relação de necessidade entre ambas. Na verdade, a necessidade é apenas psicológica: o pensamento da causa inevitavelmente nos leva a pensar no efeito, a esperar por ele. Falsamente isso induz nossa imaginação à crença ilusória na existência de uma necessidade causal objetiva.
     Alternativamente, já foi sugerido que a forma originária de causalidade seria a da ação humana, digamos, quando um evento mental como uma decisão causa um efeito físico como o de levantar do braço; nesse caso podemos realmente experienciar o poder causal, a eficácia causal, em suma, alguma forma de necessidade. Contudo, parece-nos que mesmo nesse caso um filósofo humiano não teria dificuldade em demonstrar que se trata de uma necessidade meramente psicológica, que não garante a necessidade objetiva. Considere o seguinte experimento psicológico relatado por William James(3): pede-se a uma pessoa com os olhos vendados que ela levante o braço anestesiado: ela tem a impressão de ter realizado essa ação e fica surpresa quando, tendo sido retirada a venda, encontra o braço no mesmo lugar que estava antes. Se houvesse uma necessidade objetiva ligando a decisão de levantar o braço ao ato, o braço não poderia ter permanecido no mesmo lugar.
     Teorias que partem dos resultados positivos da análise humiana costumam ser chamadas de teorias da regularidade. A forma mais ingênua dessa teoria afirma que tudo o que precisamos para definir causalidade são as primeiras três condições de Hume. Ou seja, a relação causal é a de constante contigüidade e sucessão da causa para o efeito e nada mais. Contra essa idéia simplista há uma série de objeções a considerar.

“A teoria da regularidade não permite distinguir a relação causal da mera coincidência”
Uma primeira objeção é a de que a teoria da regularidade encontra dificuldade em distinguir uma associação constante, mas meramente casual, entre eventos. Considere, por exemplo, que o dia sempre se sucede à noite, que em crianças pequenas nascem primeiro os cabelos, para depois nascerem os dentes, ou ainda, que os sinos da igreja comecem a dobrar sempre que certo ônibus estaciona à sua frente às 12 horas. Nenhuma dessas associações constantes é causal. Mas há nesses casos proximidade espaço-temporal, sucessão e associação constante entre os eventos.
      Uma resposta importante dentro do escopo da teoria da regularidade parte da observação de que as regularidades causais estão bem entrincheiradas (well entrenched), enquanto as outras não. As regularidades bem entrincheiradas podem ser definidas como as que estão em coerência com o sistema de regularidades por nós aceito, aquele que se encontra indutivamente melhor fundamentado, especialmente o que forma o sistema de constâncias (leis) responsáveis pelas explicações científicas(4). Assim, a idéia de que os dentes nascem por causa de uma determinação genética atualizada em certo estágio do crescimento é coerente com a maneira como cremos que as coisas devam estar organizadas. Já a idéia de que eles nascem por causa do nascimento dos cabelos não é respaldada por nenhuma das associações já conhecidas e aceitas. Ou seja: atribuímos necessidade causal às regularidades bem entrincheiradas no sistema de crenças por nós aceito. Essa necessidade não é absoluta, mas hipotética. Mas não é meramente psicológica, posto que empiricamente bem fundamentada.

“As associações não precisam ser constantes”
Outra questão diz respeito à identificação daquilo que chamamos de causa e de efeito em termos de associações repetidas de eventos. Considere o seguinte exemplo. Sabemos que a causa das Torres Gêmeas terem ruído foi que elas foram atingidas por aviões(5). Queremos dizer com isso que sempre que as Torres Gêmeas são atingidas por aviões elas caem? Certamente, não é isso o que queremos dizer, posto que este episódio foi único.
     No caso da queda das Torres Gêmeas temos uma causação singular. Então, como manter a idéia de constância da associação entre causa e efeito? Teorias da regularidade não são incapazes de contornar essa dificuldade. Sabemos, por exemplo, que os seqüestradores foram instruídos para acertarem seus aviões no início do terço superior das Torres, onde elas eram mais vulneráveis a um choque da magnitude prevista. Podemos, assim, entender tal caso como a exemplificação de uma relação causal complexa e incomum, segundo a qual sempre que um objeto com características tais e tais se choca contra certa parte de um objeto com características tais e tais, ele produzirá tal e tal efeito. Apenas que a constância dessas relações nunca foi exemplificada antes, pois a complexidade da situação e a conjunção de leis envolvidas tornam a repetição de um evento similar pouco provável. Contudo, essa constância é sabida com base em uma combinação de outras constâncias mais comuns, que exemplificam leis físicas. Compare esse caso com o fato do álcool pegar fogo quando aquecido. Aqui já vimos a relação causal se repetir certo número de vezes em uma simples reação de combustão. Concluímos que as associações causais singulares acabam sendo analisáveis como produtos de associações constantes.

“Causas também podem ser contemporâneas aos efeitos”
Pode-se ainda questionar se a causa pode vir, senão após o efeito, ao menos junto a ele. Considere o caso de uma locomotiva que empurra um vagão. Ela causa o movimento do vagão, mas não o antecede no tempo. Ou ainda, alguém assina o seu nome com uma caneta, a sua mão causa o movimento da caneta, mas o movimento da mão não se dá antes do movimento da caneta. Assim, a causa e o efeito podem vir juntos.
     Importante aqui é notarmos que não podemos conceber que todas as causas venham sempre juntas aos seus efeitos. Nos casos acima, ao menos, só dizemos que um evento é causa de outro porque podemos conceber que em outras circunstâncias a causa venha antes do efeito. Por exemplo: primeiro a locomotiva toca no vagão, então é presa a ele, e só depois ambos passam a mover-se conjuntamente; ao abrir a mão, a caneta cai no chão... Mas imagine que tais possibilidades não sejam dadas, que o vagão tenha sido soldado à locomotiva de modo a tornar-se como que uma continuação dela; nesse caso não diremos mais que ele é empurrado pela locomotiva, não mais do que diremos que a locomotiva se empurra a si mesma. Igualmente, se a caneta for cirurgicamente implantada na mão de alguém, de modo que a pena da caneta saia da ponta do seu indicador, não diremos que quando a pessoa escreve a sua assinatura, os movimentos do indicador causam o movimento da caneta. Há contra-exemplos mais resistentes, como o da correia que causa o movimento simultâneo da roldana. Contudo, embora a roldana não gire sem a correia se movimentar, se a última estiver solta ela se movimentará sem que a roldana gire até ser apertada a ponto de fazê-la girar. Assim, ambos os eventos podem, ao menos, ser separados. Isso tudo parece mostrar que a causa só é contemporânea ao efeito em um sentido derivado, pois só admitimos tais casos quando podemos dizer que ela pode deixar de ser contemporânea ao efeito, vindo então antes dele, ou que ela pode ser ao menos separada dele. Em seu sentido primário, originário e indispensável, a causa vem antes do efeito.

Um modelo mais sofisticado de teoria da regularidadeRisco um fósforo, ele acende. Dizemos que a causa do fósforo ser aceso é que ele foi riscado. Mas não diremos que a causa foi o fato de a cabeça do palito não estar molhada, embora a ausência desse fator causal contra-ativo seja uma condição necessária para que o fósforo se acenda. Nem diremos que a causa foi a presença de oxigênio no ar, embora isso seja uma condição causal necessária. Não obstante, faz todo sentido dizer que a causa da cápsula da Apolo XIII ter pegado fogo foi o fato de ela não conter ar, mas oxigênio puro, que é um gás altamente inflamável. O que essas considerações mostram é que o nosso conceito ordinário de causa eficiente é o de uma condição causal entre outras, que por alguma razão pragmática se sobressai. Essa razão pode ser a de que ela é inesperada, incomum, particularmente evidente, interessante, útil, aberta ao controle. Ou seja: há sempre um grande número de condições ou fatores causais envolvidos, e o que geralmente chamamos de causa – a causa eficiente – é aquele fator que se faz proeminente por razões como as indicadas.
     Podemos nos perguntar se não é possível ir mais além e considerar a causa como uma condição necessária para o efeito, ou como uma condição suficiente, ou como ambas? As idéias de condição necessária e/ou suficiente são bem conhecidas. Um evento X é condição necessária para um evento Y se sempre que Y ocorre X também ocorre. E um evento X é condição suficiente para um evento Y se sempre que X ocorre Y também ocorre. Seguindo Stuart Mill, o filósofo A. J. Ayer acreditava que a causa é um conjunto de condições causais antecedentes, cada qual em si mesma necessária, sendo que esse conjunto é considerado suficiente para que se dê o efeito(6). Essa é uma interessante sugestão, que foi desenvolvida em sua forma mais sofisticada no clássico livro de J. L. Mackie intitulado O Cimento do Universo(7). Podemos apresentá-la assim:

Em uma dada ocasião C é causa do efeito E ≡ nessa mesma ocasião, C é parte insuficiente, mas necessária, de um conjunto de condições causais que, como tal, é condição suficiente, mas não necessária, para o efeito.

     Essa é a famosa condição-inus (que usa as primeiras letras das palavras em itálico da frase “an insufficient but non-redundant part of an unnecessary but sufficient condition”(8)). Podemos ilustrar inus através de um exemplo: imagine que um cigarro aceso jogado sobre a palha seca provoque um incêndio em um celeiro. Há um amplo conjunto de outros fatores causais envolvidos, como a presença de oxigênio, de material inflamável etc. O que chamamos de causa, a queda do cigarro aceso sobre a palha, é isoladamente insuficiente para produzir o fogo. Contudo, ela é uma condição necessária ao conjunto de condições dadas, que como tal é suficiente para produzir o incêndio. Esse conjunto de condições, por sua vez, é uma condição que, embora suficiente, não é necessária para a produção do incêndio. Afinal, ele poderia ter sido causado por muitas outras coisas, por exemplo, um curto-circuito, a queda de um raio. Assim, dado certo campo causal F (pano-de-fundo), sendo C a causa e E o efeito, podemos estabelecer o que Mackie chama de causa completa (full cause) como tendo a seguinte forma:
   
Em F, todos {Ca1, Ca2... Can} v {Cb1, Cb2... Cbn} v… {Cc1, Cc2... Ccn} são seguidos por E, e em F todos os E são correspondentemente precedidos por {Ca1, Ca2... Can} v {Cb1, Cb2... Cbn} v… {Cc1, Cc2... Ccn}.

    Aqui, cada conjunto de condições causais é uma condição suficiente, embora não necessária. E cada condição causal C é necessária ao seu conjunto suficiente de fatores causais. Claro que não somos capazes de conhecer completamente cada conjunto, muito menos o ilimitado conjunto completo das disjunções, mas nosso conhecimento incompleto dessas coisas já é suficientemente útil.
     Como fica após tudo isso, a crítica humiana à necessidade causal? Parece que para responder a essa questão devemos primeiro distinguir entre uma necessidade lógico-conceitual (de dicto) e a necessidade empírica (de re). Por exemplo: é conceptualmente necessário que uma figura geométrica tenha três lados para que possa ser um triângulo. A marca disso é que o pensamento de um triângulo sem três lados é incoerente. Contudo, essa espécie de incoerência não aparece quando negamos a necessidade empírica. Parece empiricamente necessária a lei física afirmando que para toda ação há uma reação de igual magnitude e de direção oposta. Contudo, essa é uma necessidade que foi postulada com base na experiência e que pode ser em princípio refutada por ela (de fato, essa é uma lei de Newton que foi redimensionada pela teoria da relatividade). A necessidade causal (exemplificada por leis causais) não é lógica, mas empírica. Ela é algo que postulamos como base na experiência das regularidades. Mesmo em uma formulação como a de Mackie, a causa eficiente é vista como empiricamente necessária no sentido de ser considerada como bem entrincheirada no conjunto de fatores causais e regularidades (leis) causais que a envolvem. E o conjunto dos fatores causais é considerado suficiente para o efeito porque é considerado bem entrincheirado no campo causal que constitui parte de nosso sistema de crenças. A crítica humiana confunde necessidade conceitual com necessidade empírica: ela se aplica à crença de que possamos vir a conhecer uma necessidade causal residente no âmago da natureza, mas não a simples necessidade empírica que postulamos para regularidades bem entrincheiradas em um sistema de regularidades empiricamente bem fundamentado(9). Este seria o caminho para podermos incorporar a necessidade à teoria da regularidade sem torná-la aberta à crítica de Hume.

O problema das causações redundantesA teoria da regularidade encontra dificuldades com as assim chamadas causações redundantes. Um primeiro tipo de causação redundante é a superdeterminação causal (causal overdetermination). Considere a seguinte, sugerida pelo próprio Mackie(10). Um homem está para iniciar uma viajem pelo deserto. Sem que ele saiba, um de seus inimigos coloca veneno em seu cantil. E sem saber disso, outro de seus inimigos fura o seu cantil. Com o seu cantil furado o homem acaba por morrer de sede no deserto. A causa de sua morte foi o furo no cantil. Mas se o cantil não estivesse furado, o homem morreria do mesmo modo. Em tal caso temos duas causas possíveis, nenhuma delas necessária para o efeito, posto que se uma não fosse o caso a outra seria. Assim pensadas, elas não satisfazem a condição inus.
     A solução encontrada por Mackie consiste em particularizar o efeito: se ele for entendido como a morte do homem por sede e não por envenenamento, o furo no cantil passa a ser condição necessária para o efeito, que não é apenas a morte, mas a morte de sede, satisfazendo inus. Essa resposta parece-me correta: pois se sabemos que a causa da morte foi o furo no cantil, o efeito, um certo tipo de morte, está previsto na causa, permanecendo portanto no mesmo nível de particularização da última. Se sabemos apenas que ele foi morto, a causa situada no mesmo nível menor de particularização é que alguém o matou. E se sabemos apenas que ele morreu, a causa do mesmo nível ainda menor de particularização é apenas a de que há alguma causae mortis.
     Um outro exemplo de superdeterminação causal é o seguinte. Dois gangsters atiram em uma pessoa ao mesmo tempo, sendo que cada tiro teria sido capaz de, isoladamente, matá-la. Suponhamos ainda que os tiros atinjam exatamente o mesmo local, provocando a mesma espécie de morte por hemorragia interna... O problema aqui é que as duas causas, C1 e C2, parecem individualmente não ser necessárias, pois se uma não ocorresse, a outra já daria conta do recado. Como analisar esse caso?
     Aqui é impossível utilizar a estratégia de particularizar o efeito, pois ele é o mesmo. A solução, penso, é considerarmos a causa como o composto Cr, de modo que C1 + C2 = Cr. Assim, não é certo dizer que C1 causou a morte da pessoa, nem que C2 a causou, mas que elas são partes de uma causa única, Cr, que a matou. Isso é intuitivamente correto. Dizemos “Os dois tiros desferidos causaram a morte da pessoa” e não “Cada tiro causou a morte da pessoa”. De igual modo, se uma bala mata tendo o dobro do calibre de uma outra que mataria do mesmo modo, ela não se transforma por isso em duas causas. Por sua vez, Cr é uma condição necessária que satisfaz inus.
     Um outro tipo de causação redundante é o pré-esvaziamento causal (causal preemption), como o seguinte, exposto por W. C. Salmon(11). Um raio cai sobre um celeiro e provoca um incêndio; mas suponhamos também que um momento depois do raio ter provocado o incêndio, e independentemente disso, um cigarro aceso cai sobre um monte de palha, de modo que esse último evento teria realmente provocado o incêndio se o raio não o tivesse provocado. Salmon observa que a queda do cigarro aceso satisfaz a condição inus de ser a causa eficiente: ela continua a ser uma condição insuficiente, mas que é parte necessária de um conjunto de condições que são suficientes, mas não-necessárias para o efeito. No entanto, ela não é a causa do incêndio!
     Sugiro que se responda a esse contra-exemplo adicionando a inus a seguinte cláusula:

Sempre que temos duas causas independentes X e Y, ambas satisfazendo inus para o mesmo efeito E, quando X ocorre antes de Y, X se torna a causa operante de E, invalidando Y como um elemento desnecessário.

 Essa não é uma cláusula ad hoc, pois é questão de evidência o fato de que a ocorrência de X, colocando em ação um conjunto causal suficiente para o efeito E, desautoriza o conjunto de fatores causais no qual Y deveria se inserir como elemento necessário, ainda que ele esteja presente.
     Certamente, haveria muito mais para se dizer em defesa de uma adequada teoria da regularidade. Há obscuridades e pequenas armadilhas lógico-formais, a meu ver obliteráveis através de cláusulas adicionais(12). E tem sido apontada uma limitação no fato de que a condição-inus não dá conta da causação probabilística, pois esta última é sempre baseada em um conjunto de fatores que não é suficiente para o efeito... Contudo, o conceito de causação probabilística pode bem ser adventício e redutível ao conceito clássico, resultando apenas de nossa ignorância do conjunto dos fatores causais. Tomemos um exemplo: o tabagismo é considerado causa probabilística de câncer. Contudo, se soubéssemos tudo sobre a genética, a biologia e as circunstâncias de vida de certa pessoa, parece que então poderíamos prever se o fumo lhe causaria necessariamente câncer. Mais ainda: parece que quando dizemos que fumar causa câncer, o que realmente queremos dizer é que fumar aumenta a probabilidade de que, em casos particulares, o fumo efetivamente cause câncer. A causa probabilística é o fator causal que provavelmente se tornará a causa eficiente, ou seja, uma condição necessária. Parece, pois, que a concepção clássica de causalidade é a que fundamenta e dá sentido à causação dita probabilística.

Análises contrafactuais
Uma análise alternativa da causalidade é a contrafactual, colocada em circulação por David Lewis(13). Segundo uma primeira formulação, que desenvolve uma sugestão de Hume(14), C é a causa do efeito E no caso em que (em mundos possíveis próximos ao nosso) se C não fosse o caso, E não teria sido o caso. Essa análise responde a casos de coincidência, como a que existe entre a chegada do ônibus e o repicar dos sinos da igreja, pois se o ônibus não chegasse, os sinos da igreja repicariam do mesmo modo.
     Nessa forma ingênua, a análise contrafactual é insuficiente para explicar exemplos de pré-esvaziamento causal como o discutido acima: se o raio não tivesse caído, o incêndio teria ocorrido do mesmo modo, devido à causa D, o cigarro jogado na palha – o que sugere erroneamente que não foi o raio a causa do incêndio. Por isso Lewis substitui a formulação inicial pela condição de que uma cadeia de eventos contrafactualmente dependentes deve vincular C a E. Ou seja: se C causa E então há uma cadeia de eventos, digamos, e1 e e2, vinculando C a E, tal que se ~C então ~e1, se ~e1 então ~e2, e se ~e2 então ~E. Como, segundo ele, embora a relação causal seja transitiva, a relação condicional contrafactual não é transitiva (uma sugestão dubiosa), em casos como o do exemplo considerado, o fato da ausência de C ser compatível com a ocorrência de E, devido a intervenção da causa D, não impede que se ~e2 então ~E.
     Há, não obstante, contra-exemplos, chamados de pré-esvaziamento tardio, que desafiam até mesmo a formulação mais sofisticada. Imagine que a causa C seja um tiro desferido por um gângster, cujo efeito E é a morte de certa pessoa, mas que se C não acontecesse, a máfia teria enviado outros gângsters que mais tarde com tiros matariam a mesma pessoa, tornando-se isso a causa D de E. Nesse caso, supondo que a cadeia de eventos contrafactualmente dependentes vinculando C a E seja formada por e1 e e2, não poderemos mais dizer do último vínculo, entre e2 e E, que se ~e2 então ~E, pois no caso de D ser o caso, E ocorrerá sem e2. (Note-se que não há qualquer dificuldade em aplicar inus a esse caso, posto que D sequer ocorre.)
     Parece que a dificuldade com as análises contrafactuais não está no fato de sermos ou não capazes de desenvolvê-las de modo que elas se tornem sensíveis a qualquer contra-exemplo, mas na sua carência de poder explicativo. Aquilo que elas parecem evidenciar é uma característica formal indicadora da relação causal, qual seja: a forte resistência a contrafactuais. Contudo, isso não parece suficiente. Ao que parece, as análises contrafactuais são coberturas formais complementares, indicadoras daquilo que as teorias da regularidade tentam explicar em termos de conteúdo, ou seja, do que positivamente queremos dizer com causalidade. Por exemplo: dizer que o parar do ônibus não causa o repicar dos sinos, apesar da regularidade, porque a associação dos dois fenômenos não se deixa entrincheirar em nosso sistema de crenças, dado que eles fazem parte de conjuntos de crenças sobre eventos tidos como destituídos de qualquer relação ou interação causal relevante entre si... é uma maneira de trazer à evidência aquilo que está faltando para que a relação seja causal. Mas dizer que se o ônibus não parasse os sinos ainda assim repicariam não é mostrar o que uma relação precisa para ser causal, mas apenas mostrar que um elemento formal típico das associações causais – a resistência a contrafactuais – não está sendo satisfeito. Explicar a relação causal somente através de análises contrafactuais acaba por envolver circularidade, pois encerra como pressuposto inevitável um entendimento independente da natureza da causalidade. 


Notas:1 Aristóteles: Metafísica, livro I, sec. 3.
2 David Hume: Enquiry Concerning Human Understanding (Indianapolis: Bobbs-Merill 1955 (1748)), sec. IV pt. 1, sec. VII, partes 1-2.
3 William James: The Principles of Psychology (Dover: New York 1950), vol II, pp. 489-490.
4 Autores vários colocaram esse ponto de maneiras um pouco diversas. Assim, segundo P. F. Strawson, “ao estimar a evidência de uma tal generalização (no caso “Todo A é B”), um fator de enorme importância é a sua relação com o corpo geral de nosso conhecimento e crença; a questão de como isso se ajusta ao restante de nossas convicções gerais de cada dia e a nossas teorias científicas aceitas.” Introduction to Logical Theory (Methuen & Co.: London 1952) p. 245. Já segundo W. V. O. Quine, a regularidade é fundamentada pelo tipo e estrutura dos objetos que nelas ocorrem. Ver “Necessary Truths”, em The Ways of Paradox (Random Hause: New York 1966).
5 Segundo Richard Taylor, o fato singular de Ana Bolena ter morrido por ter tido a sua cabeça cortada apenas exemplifica a regularidade segundo a qual pessoas com cabeças cortadas morrem logo a seguir. Essa estratégia, embora simplificada, pode ser sempre seguida. Ver seu artigo “Causality”, em Paul Edwards (ed.): The Encyclopedia of Philosophy (Collier Macmillan Publishers: London 1967), pp. 56-66.
6 A. J. Ayer: Foundations of Empirical Knowledge (Macmillan: London 1940), cap. 4.
7 J. L. Mackie: The Cement of Universe: A Study of Causation (Oxford University Press: Oxford 1980), cap. 3.
8 J. L. Mackie: The Cement of Universe: A Study of Causation, ibid. p. 62.
9 Abstraio aqui a crítica de Hume à indução, atendo-me apenas à parte do problema. Faço isso por considerar demasiado certo que a indução seja um procedimento racional, apesar de não se ter até hoje conseguido refutar satisfatoriamente a crítica humiana.
10 J. L. Mackie: The Cement of Universe: A Study of Causation (Clarendon Press: Oxford 1974), p. 44.
11 W. C. Salmon: “Causation”, em R. M. Gale (ed.), The Blackwell Guide to Metaphysics (Blackwell: Oxford 2002), p. 27.
12 Ver Ernest Sosa e Michael Tooley: Causation (Oxford University Press: Oxford 1993), p. 9. Ver também Stathis Psillos: Causation & Explanation (McGill-Queens University Press: Ithaca 2002), cap. 1.
13 David Lewis: “Causation”, Journal of Philosophy 70 (1973).
14 Como escreveu Hume ao definir causa: “Podemos definir uma causa como um objeto seguido de outro, e onde todos os objetos similares ao primeiro são seguidos de objetos similares ao segundo. Ou, em outras palavras, onde se o primeiro objeto não tivesse sido, o segundo nunca teoria existido”. David Hume: Enquiry Concerning Human Understanding, parte II, “On the necessary connection”). A primeira sentença sugere a teoria da regularidade, enquanto a segunda a complementa com a análise contrafactual.


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