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quinta-feira, 10 de maio de 2012

G. FREGE: "O PENSAMENTO" (tradução, introdução e notas)


Introdução e tradução publicadas no livro Estudos Filosóficos (Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro 1999):


                   INTRODUÇÃO: NOTAS PARA UMA LEITURA DE
                               "O PENSAMENTO"
                            Claudio F. Costa

                                                                      

Entre os escritos de Gottlob Frege, o ensaio "O Pensamento" (Der Gedanke) é aquele que possui maior abrangência filosófica, estendendo-se muito além dos limites de uma teoria semântica. Em poucas páginas de excelência argumentativa, Frege faz desfilar diante de nós uma variedade de idéias de grande alcance, a maioria delas tendo sido posteriormente retomadas e desenvolvidas por outros filósofos. Apesar disso, é conveniente notar que poucos crêem hoje na verdade de muitas das concepções defendidas nesse ensaio. Mas a verdade, como notou com algum exagero C. S. Peirce, importa tão pouco à filosofia quanto a maneira como alguém decide repartir os cabelos; - mesmo sendo falsa a idéia, o argumento filosófico destinado a fundamentá-la pode mostrar-se relevante ao induzir-nos a uma revisão e aprofundamento de nossa maneira de conceber e tratar a questão.
   No que se segue, quero expor e comentar criticamente algumas idéias mais influentes, contidas em "O Pensamento".
   1. Frege inicia o seu ensaio com uma tentativa de caracterizar a natureza da lógica compreendida em seu Begriffsschrift. Para ele, a tarefa da lógica consiste em descobrir as leis da verdade, entendendo-se com isso, mais particularmente, as regras através das quais, em inferências válidas, a verdade das premissas é preservada na conclusão. Por exemplo: supondo-se que os enunciados "P" e "Se P então Q" sejam verdadeiros, podemos concluir, por meio das regras lógicas da conjunção e da implicação, que o enunciado "Q" é verdadeiro.
   Tais leis da verdade podem ser chamadas de leis do pensamento, conquanto não sejam confundidas com leis psicológicas. Um pensamento que se processa na mente de alguém pode estar de acordo com leis psicológicas e mesmo assim não seguir as leis da verdade. As leis da verdade são descritivas, tal como as leis da natureza, não admitindo, como essas, exceção. Elas não são prescritivas, como as leis morais e civis, que podem ser ou não ser respeitadas. Como leis do pensamento, no entanto, as leis da verdade podem ser chamadas também de prescritivas, no sentido de que nos ensinam como deve ser o pensar logicamente correto.
  2. Definida a lógica como o estudo das leis da verdade, Frege passa à questão: "O que é a verdade?" Para ele o conceito de verdade é primitivo, não analisável. Ele chega a essa conclusão após expor argumentos contra a concepção de verdade como correspondência. Farei uma exposição e crítica dos dois argumentos mais interessantes, mostrando que eles nada têm de conclusivos.
   O primeiro argumento diz respeito às diferentes funções lógicas das palavras 'verdade' e 'correspondência'. Se dizemos que X corresponde a Y, '...corresponde a...' funciona como um predicado relacional, da mesma maneira que o predicado '...é maior que...' em "Uma pedra é maior que um grão de areia". Mas '...é verdadeiro' ou 'É verdade que...' não são expressões predicativas relacionais. Quando dizemos "O enunciado X é verdadeiro", fazemos uso de um predicado monádico, da mesma forma que quando usamos o predicado '...é vermelho' na frase "Essa maçã é vermelha".
   Esse argumento não é decisivo. Em nossa linguagem natural há expressões predicativas monádicas que na realidade denotam estados de coisas relacionais. Exemplos são expressões predicativas como '...é pai' ou '...é casado'. Essas expressões fazem referência abreviada ao que de fato são estados de coisas relacionais. Isso fica claro pelo fato de que podemos sempre nos perguntar quem é pai de quem, quem é casado com quem, e em resposta a tais questões nós substituímos essas expressões predicativas pelas expressões relacionais equivalentes '...é pai de...' e '...é casado com...', as quais nos permitem a especificação completa do estado de coisas referido. Já o mesmo não pode ser feito com expressões predicativas não usadas na referência a estados de coisas relacionais, como é o caso de "...é vermelho". Ora, um raciocínio semelhante pode ser aplicado à relação entre a predicação da verdade e a de correspondência. Primeiro, podemos sugerir que expressões predicativas monádicas, como 'É verdade que...' ou '...é verdadeiro' são usadas na referência aos mesmos estados de coisas que a expressão predicativa relacional '...corresponde a...'. Mais além, podemos considerar que o predicado monádico '...é verdadeiro', embora não sendo idêntico ao predicado diádico '...corresponde a...', é idêntico a um outro predicado monádico, qual seja, '...corresponde a um fato', sugerindo serem ambos formas abreviadas de se fazer referência à própria relação correspondencial, as quais não indicam o estado de coisas relacional específico assim constituído. Desse modo, ao menos em certos casos, “p é verdadeiro” é sinônimo de “p corresponde a um fato”, sendo ‘...corresponde a um fato’ a expressão predicativa monádica que buscávamos.
   O argumento mais influente que Frege sugeriu contra a concepção correspondencial visa a estabelecer que se a verdade fosse concebida como correspondência, a decisão de que uma sentença é verdadeira envolveria  um regresso ao infinito. Vejamos como ele chega a essa conclusão.
   Supondo que a verdade seja uma relação de correspondência, Frege considera que essa relação deverá ser mantida entre uma figura, uma representação, e aquilo que ela representa. Nesse caso, porém, a correspondência não só depende de algo psicológico, de uma intenção de fazer corresponder, como também nunca será exata. Mas nesse caso nada pode ser completamente verdadeiro. Contudo, prossegue ele, o conceito de verdade não é quantitativo; ele não admite um mais ou um menos: se algo é verdadeiro, então é completamente verdadeiro.  Frege sugere então ser admissível que a correspondência possa não ser exata e que mesmo assim a atribuição de verdade não seja quantitativa, se entendermos que se trata de correspondência "de uma certa maneira", que podemos chamar aqui da maneira . Mas isso já nos evidencia o anunciado regresso. Se julgar que uma representação X é verdadeira exige de nós a decisão de que X corresponde com Y da maneira Z, então poderia ser questionado se é verdade que X corresponde com Y da maneira Z. Caso se decida que isso é verdadeiro, então surge a questão de se saber se é verdade que a nova relação de correspondência, segundo a qual "X corresponde com Y da maneira Z” corresponde da maneira Z1, e assim por diante. Frente a isso caímos em um regresso ao infinito, o qual torna impossível decidir se X é verdadeiro.
   Esse argumento tem sido excessivamente valorizado(1); um defensor da concepção correspondencial não terá grande dificuldade em revidá-lo(2). Ele poderá simplesmente sugerir que se verdade é correspondência, então a decisão de atribuir verdade a X é precisamente a mesma que a decisão de atribuir correspondência entre X e Y ou, melhor dizendo, correspondência da maneira Z entre X e Y. Ora, se a decisão é sempre uma e a mesma, então não há lugar para um regresso. Esse raciocínio é, como nota W. Künne, corroborado pelas próprias palavras de Tomás de Aquino, em sua clássica defesa da concepção correspondencial: "A verdade é definida pela conformidade do entendimento com a coisa; donde, reconhecer a conformidade é reconhecer a verdade."(3)
   3. Embora para Frege a verdade não seja definível, é possível estabelecer aquilo que, em um sentido próprio, é ou não é verdadeiro: o portador (Träger) da verdade. Ele não é a sentença assertiva ou frase (Satz), pois sua relação com a verdade não satisfaz o que poderíamos chamar de condição de invariância da verdade. Segundo essa condição, se algo - o portador da verdade - for verdadeiro, ele será sempre verdadeiro; se for falso, ele será sempre falso. Se o portador da verdade fosse a frase, essa condição seria contrariada, pois há casos em que uma mesma frase pode ser verdadeira em um contexto e falsa em outro. A frase "Essa árvore está florida", por exemplo, pode ser verdadeira dita na primavera e falsa dita no inverno. Por outro lado, se a verdade é invariável, o seu portador também deveria sê-lo. Mas é um fato que diferentes frases com o mesmo sentido comportam a mesma verdade, no sentido de que o seu valor-de-verdade depende das mesmas condições e é necessariamente o mesmo.
   Por razões como essas, o portador da verdade não parece ser a frase, mas o que a frase diz, o seu sentido descritivo ou cognitivo, chamado por Frege de pensamento. Diversamente da frase, a relação do pensamento com o seu valor-de-verdade é invariável. Isso é possível porque os pensamentos também são invariáveis; Frege os concebe como entidades abstratas que não se encontram nem no espaço nem no tempo, sendo tanto eles quanto os seus valores-de-verdade eternamente os mesmos.
   Isso parece claro no caso do pensamento expresso pela frase "2 + 2 = 4". Mas torna-se obscuro no caso de pensamentos expressos por frases que só podem ser adequadamente entendidas quando associadas ao contexto de seu proferimento, como é o caso de “Essa árvore está florida”, “Eu uso goma Amarelina”, “Hoje é sábado”. Como vimos, tais frases podem ser ora verdadeiras, ora falsas, suscitando a impressão de que os pensamentos por elas expressos são ora verdadeiros, ora falsos. Mas não é isso o que acontece. Frege mostra que a mudança do valor-de-verdade corresponde necessariamente a uma mudança no pensamento, o que é evidenciado pelo fato de que em tais casos a frase só expressa um pensamento auxiliada pelo contexto. Assim, se ouvimos alguém proferir a frase "Essa árvore está florida", a consideração do contexto - que inclui a árvore, o local e o momento do proferimento - é necessária à compreensão do pensamento. Como nesse momento essa árvore ou está ou não está florida, o pensamento expresso por seu intermédio permanecerá invariável, além de invariavelmente verdadeiro ou falso, ficando assim satisfeita a condição de invariância da verdade.
   Frege também notou que nem tudo o que é significativo em uma frase pertence ao pensamento. Uma frase como "Ele ainda não veio" exprime o mesmo pensamento que a frase "Ele não veio", mesmo que o advérbio 'ainda' sugira que a pessoa está sendo esperada. Qual é, para Frege, o critério para a delimitação do pensamento expresso por uma frase?
   Embora o texto de "O Pensamento" não o explicite suficientemente, para Frege o pensamento deve constituir-se de tudo o que pode contribuir para o estabelecimento da verdade/falsidade da frase assertórica, o que podemos chamar de o seu sentido assertível. Isso nos dá um critério de identidade para o pensamento: duas frases expressam um mesmo pensamento quando o que conta para o estabelecimento de seus valores-de-verdade é a mesma coisa.
   Essa idéia pode ser ilustrada pela consideração de um exemplo. No caso de frases predicativas singulares, o pensamento - o sentido da frase - é constituído pelo sentido do nome, adicionado ao sentido da expressão predicativa. Frege mostra, através de um exemplo, como uma pequena alteração no sentido de um nome próprio (i.e., no modo de identificação do objeto nomeado) no interior de uma frase pode induzir-nos a tomar por verdadeiro o que é falso e vice-versa, implicando assim em uma modificação no pensamento. Eis uma versão - algo simplificada - do exemplo dado por ele. Suponhamos ser verdade que a pessoa de nome Gustavo Lauben foi ferida. Suponhamos ainda que a pessoa A entenda pelo nome 'G. Lauben' um médico que mora só, em uma certa casa de seu quarteirão, enquanto a pessoa B entenda por 'G. Lauben' apenas a única pessoa que nasceu em N.N. em 28 de agosto de 1864, um dado que é desconhecido por A. Nesse caso, as pessoas A e B não poderão saber se estão ou não falando da mesma pessoa. Mesmo que A tenha razões conclusivas para crer que G. Lauben foi ferido, isso não obriga B a acreditar que a pessoa que ele identifica como sendo G. Lauben foi ferida. Pode ser, inclusive, que B seja conduzido por pistas enganosas à conclusão de que tal pensamento é falso. Por conseguinte, os pensamentos de A e B são diversos, mesmo que sejam realmente sobre a mesma pessoa e que possuam os mesmos valores-de-verdade, pois os elementos que podem contribuir para o estabelecimento da verdade não são os mesmos.
   A noção de pensamento como o portador da verdade também permite a Frege esclarecer as noções de juízo e de asserção. O juízo é o ato mental pelo qual se atribui verdade a um pensamento. A asserção é a manifestação verbal do juízo; ela o pressupõe, como ele pressupõe o pensamento. A asserção é caracterizada por uma força assertórica. Sem essa última, o pensamento é apenas manifestado; com ela, ele é também afirmado como sendo verdadeiro. O que determina a força assertórica são elementos contextuais: se, em um teatro, alguém diz ter cometido um assassinato, não se trata de uma asserção verdadeira, posto que os elementos contextuais não conferem força assertórica ao que a pessoa diz. A noção de força, como é sabido, foi retomada e refinadamente desenvolvida na teoria dos atos de fala de J. L. Austin e J. R. Searle.
   4. A questão central é a da natureza do pensamento. Na elaboração de uma resposta encontramos em Frege uma vigorosa defesa de um realismo de fundo platônico. Ele argumenta no sentido de mostrar a necessidade de reconhecermos a existência de ao menos três reinos ou domínios de entidades, os quais nos permitem classificar tudo o que pode ser efetivamente dado à experiência. Esses domínios são os daquilo que é
                                        (i)  objetivo e real,
                                        (ii)  subjetivo e real, e
                                        (iii) objetivo e não-real.

   As noções de objetividade/subjetividade e realidade/irrealidade são usadas por Frege em sentidos específicos, determinados por certos critérios de aplicação. Assim, o critério de aplicação do conceito de objetividade é basicamente o de acesso intersubjetivo: objetivo é tudo aquilo que pode ser compartilhado em sua acessibilidade por mais de um sujeito; além disso, aquilo que é objetivo se caracteriza por ser independente desse ou daquele sujeito particular, enquanto o que é subjetivo depende de um sujeito, de um portador. Já o critério de aplicação do conceito de realidade consiste na constatação de algo como sendo espácio-temporalmente, ou ao menos temporalmente, experienciável. Com isso em mente podemos caracterizar cada um dos três domínios:
   (i) O domínio do que é objetivo e real. A ele pertencem as entidades do mundo externo, do mundo físico.
   Objetos físicos e suas propriedades são intersubjetivamente acessíveis, logo, objetivos; eles são também independentes dos sujeitos. Trata-se de entidades experienciáveis através dos sentidos como estando situadas no espaço e no tempo. Uma cadeira, por exemplo, pode ser vista, tocada, localizada, por mais de uma pessoa; é, pois, algo objetivo e real.
   (ii) O domínio do que é subjetivo e real. A ele pertencem as entidades que constituem o nosso mundo interior, psicológico; Frege as chamava de 'representações' (Vorstellungen).
   Frege utiliza a palavra 'representação' em um sentido ampliado, que inclui sensações, imagens mentais, sentimentos, emoções, desejos, tendências... equivalendo ao que hoje chamamos de estados mentais. Representações são reais, pois ao menos no tempo elas são necessariamente experienciadas (e, embora de forma menos definida, diríamos que são experienciadas também no espaço: uma emoção, por exemplo, não é experienciada no mundo circundante, mas na pessoa que a tem). Mas representações são também subjetivas, pois só são acessíveis aos sujeitos que as têm e a mais ninguém; Frege considera mesmo essencial às representações que haja um e somente um sujeito que as tenha: o seu portador(4).
   (iii) O domínio do que é objetivo e não-real - de entidades abstratas, por Frege denominadas 'pensamentos' (Gedanken).
   Para que isso possa ser compreendido, devemos notar que com a palavra 'pensamento' Frege não tinha em mente um estado mental espácio-temporalmente determinado, como é o caso do ato de pensar designado pelo proferimento "Tive de pensar rapidamente para responder a questão a tempo". Para ele o pensamento é o portador da verdade, e tal portador não pode identificar-se com acontecimentos mentais transitórios. Nós usamos a palavra nessa acepção em uma frase como "O pensamento expresso pelo teorema de Pitágoras é verdadeiro". Nesse caso, segundo Frege, estamos falando de algo que é objetivo e (essencialmente) não real - o que doravante chamarei de pensamento como o sentido assertível de uma frase. Ele é objetivo porque é intersubjetivamente acessível: diferentes pessoas podem ter acesso ao mesmo pensamento expresso pelo pelo teorema de Pitágoras. Ele não é real porque o pensamento de que o comprimento da diagonal de um triângulo retângulo é igual à raiz quadrada da soma dos quadrados dos catetos não é algo que possa ser encontrado no espaço ou no tempo: pensamentos são atemporais, imutáveis. Nós não os experienciamos como experienciamos os objetos sensíveis. Pensamentos, nesse sentido, não são produzidos ou criados por nós, mas descobertos através de apreensão (fassen).
   Ao admitir a existência de um domínio de entidades objetivas e não-reais, de pensamentos, de sentidos, Frege compromete-se com um realismo de fundo platônico, no qual entidades abstratas, à semelhança das idéias platônicas, independem do mundo empírico, sendo até mesmo capazes de - através de nós - produzir efeitos no mundo real.
   5. Não são muitos os filósofos que hoje em dia se sentem inclinados à admissão de um realismo ontológico de fundo platônico(5). Não parece muito difícil, entretanto, refazer a proposta fregeana dentro de uma perspectiva nominalista, que admita a distinção entre três domínios de entidades, mas sem o compromisso com uma discutível autonomia ontológica do terceiro reino. Para evidenciar essa possibilidade, farei um breve esboço de como, sob uma perspectiva que pode ser chamada de conceptualista, seria possível conceber o domínio dos pensamentos.
   Para tal, devemos em um primeiro momento distinguir três coisas. (i) O ato de pensar, que é o processo mental pelo qual se tem ou se experiencia um pensamento. (ii) O pensamento, aqui entendido como o conteúdo de consciência intencionado em um ato de pensar; característico desse conteúdo é que ele possa ser capaz de verdade, a dizer, capaz de ser concebido como possuíndo (ainda que não seja caracteristicamente o seu portador) um valor-de-verdade. Um tal conteúdo é designado em um proferimento como "(Por um momento) pensei que ela não fosse mais aparecer". Tanto (i) quanto (ii) são acontecimentos de caráter psicológico, ocorrendo no tempo e mesmo no espaço. O que não parece possuir caráter psicológico é (iii): o pensamento in abstracto, ou seja, o pensamento entendido em termos de sentido assertível de uma frase. Esse seria o caso do pensamento que dizemos ser expresso por uma frase como "7 é um número primo"; é a isso que Frege chama de pensamento, que nem possui portador nem é real.
   A estratégia conceptualista deverá consistir em explicar os pensamentos no sentido (iii) em termos de pensamentos no sentido (ii), reduzindo-os assim a entidades ontologicamente inócuas. Uma maneira familiar de efetuarmos essa redução é, considerando X como uma frase qualquer, que exprime um conteúdo de consciência capaz de verdade, entendermos o pensamento, o sentido asserível da frase, como sendo o conteúdo de consciência expresso por X, em adição a todos aqueles conteúdos ocorrentes que lhe forem idênticos, consistindo o critério de identidade justamente no fato de que o que consideramos como contando para o estabelecimento do valor-de-verdade é em cada conteúdo de consciência o mesmo. Com isso estaremos considerando um pensamento in abstracto como sendo simplesmente o type dos tokens, que seriam os pensamentos como conteúdos de consciência particulares (pressupondo-se, obviamente, que o type não seja entendido como uma entidade não-mental, mas apenas como um conjunto aberto de pensamentos-tokens: um conjunto de conteúdos de consciência particulares e capazes de verdade, que são entendidos como idênticos entre si). Utilizando a noção de conjunto, podemos ainda definir o pensamento, o sentido asserível de uma frase X, da seguinte maneira:

   (Df.) O pensamento  =   O conteúdo de consciência intencionado
                                          por uma pessoa que pensa X, juntamente
                                          com quaisquer conteúdos de consciência
                                          que forem idênticos a ele.

   Com isso, o pensamento de que 7 é um número primo não precisa ser mais do que um conjunto aberto de conteúdos de consciência dados idênticos a um certo conteúdo de consciência que alguém tem ao pensar no número 7 como sendo primo; e um pensamento qualquer nada mais seria do que um conjunto aberto de conteúdos de consciência capazes de verdade e idênticos entre si.
   Note-se que os conteúdos de consciência em questão não devem ser restringidos aos que se reiteram em uma única mente; eles precisam poder ser concebidos como conteúdos supostamente ocorrentes em mentes quaisquer. Se os pensamentos fossem restringidos a conteúdos de consciência daquele que os pensa, isso os tornaria irremediavelmente subjetivos.
    O que vem a ser, nesse caso, a apreensão que uma pessoa faz de um pensamento? Ora, ela parece reduzir-se essencialmente na conjunção de duas tomadas de consciência por parte da pessoa que o apreende, que são: (a) a tomada de consciência de um conteúdo de consciência capaz de verdade (o mesmo que (ii)); (b) a tomada de consciência da existência de outros conteúdos idênticos dados em sua mente e eventualmente em outras mentes. A pessoa sabe da possibilidade de constituição desses conjuntos de conteúdos de consciência pela experiência que tem da reiteração de um mesmo pensamento em sua própria mente e da afirmação do mesmo pensamento por parte de outras pessoas. Assim, uma pessoa pode ter pensado X somente uma vez, mas sabe que é possível repensá-lo e que outros devem tê-lo pensado. Disso resulta que, enquanto o pensamento como conteúdo de consciência é algo em que pensamos de maneira efetiva e completa, o pensamento como o sentido assertível, in abstracto, é algo que apenas concebemos, a palavra ‘conceber’ sendo aqui usada para enfatizar a espécie de indeterminação introduzida pela adição da suposição (b) ao pensamento entendido no sentido (ii), como um conteúdo de consciência realmente intencionado no ato de pensamento.
   São os pensamentos, assim entendidos, objetivos e não-reais? De certo modo sim, mas sem que isso se torne ontologicamente comprometedor. Eles são objetivos no sentido de que o seu portador não é um sujeito individual, mas geralmente um número indeterminado de sujeitos individuais, que admitem a similaridade de suas instanciações em outras mentes e a sua reproduzibilidade nelas; assim, da perspectiva do sujeito individual, ao menos, eles são objetivos. Além disso, eles não dependem de portadores particulares para existirem, mas de portadores em geral. Por isso, se morre um portador de um pensamento, o pensamento não desaparece com ele. Mas nem por isso devemos crer que os pensamentos são eternos ou atemporais, como Frege supunha. Apenas no caso de um pensamento nunca ter sido pensado, poderíamos afirmar que ele não existe - mas justamente isso é impossível de se fazer, posto que para tal teríamos de pensá-lo, instanciando-o como conteúdo de consciência em ao menos uma mente. Assim, diversamente do que a ontologia fregeana tende a sugerir, o pensamento expresso pelo teorema de Pitágoras de fato não existia antes que homens como o próprio Pitágoras o tivessem. Nem ele continuará existindo quando os seres pensantes não mais existirem. Posso dizer que mesmo há um bilhão de anos atrás a lei da identificação entre massa e energia era verdadeira; - mas o que posso estar querendo dizer com isso, senão que mesmo há um bilhão de anos, se alguém o pensasse, esse pensamento poderia ser corretamente tomado como sendo verdadeiro?(6)
   Dizer que pensamentos não são reais, por sua vez, não chega a ser correto. Um pensamento é dispersamente real, na medida em que forma um conjunto cujos elementos ocorrem em mentes, sendo, como um todo, espácio-temporalmente localizado, embora de uma maneira indeterminadamente dispersa nas mentes dos que cheguem a pensá-los. Por isso os pensamentos assim concebidos parecem não ser dotados de qualquer realidade.
   Uma vantagem dessa espécie de explicação é que ela torna compreensível uma suposta inter-relação causal entre mentes e pensamentos, uma vez que esses últimos afinal fazem parte das mentes. Isso parece impossível se os pensamentos não possuíssem realidade empírica. Frege procura contornar o problema no final do ensaio, sugerindo que tal inter-relação é possível porque os pensamentos, em suas propriedades inessenciais, possuem temporalidade! Mas essa é uma solução canhestra, reminiscente da decepcionante tentativa feita por Descartes de explicar a relação entre alma e corpo, para ele essencialmente heterogêneos, pela intermediação dos espíritos animais...
   Se uma análise como a que propus for correta, a caracterização fregeana do pensamento é uma aproximação, ainda que distorsiva, repousando nisso o seu poder de convicção. A falha de Frege consistiu em ter subestimado o papel da noção de conteúdo de consciência no esclarecimento da noção de pensamento como sentido assertível. E isso encorajou-o a tratar o sentido assertível da frase como se ele possuísse um status ontológico irredutível, e a inventar uma mitologia do terceiro reino.
   6. Para Frege, nem tudo o que é objeto de pensamentos é intersubjetivamente acessível. Quando digo algo acerca de meus estados mentais, refiro-me a algo a que só eu mesmo posso ter acesso. Também quando me refiro a mim mesmo, faço-o em um sentido especial, diverso daquele pelo qual outras pessoas podem se referir a mim. Mais além, Frege considera necessário admitirmos que esse eu, embora possa ser objeto de pensamentos, não é passível de se tornar objeto de intuição empírica - o que lhe dá um status que o aproxima do Eu transcendental sugerido por Kant. Segundo o raciocínio fregeano, o meu eu não pode ser objeto de representação, uma vez que ele é o portador das minhas representações; e o meu eu não pode ser representado, pois, ainda que eu associe à palavra 'eu' representações de mim mesmo, eu, que as tenho, não sou essas representações.
   Frege conclui também que, quando o pensamento não é intersubjetivamente acessível, como nos casos acima, ele também não é verdadeiramente comunicável, dado que o domínio do mental é essencialmente subjetivo. Tal resultado foi rejeitado por Wittgenstein através de seu argumento da linguagem privada, no qual procurou mostrar que as regras que constituem os sentidos das expressões - e com isso os pensamentos expressos por frases - exigem, para poderem ser fixadas, a mediação de uma praxis lingüística intersubjetiva. A validade do argumento de Wittgenstein tem sido considerada, no entanto, discutível(7). Ainda assim, um princípio dificilmente questionável é o de que tudo o que é pensável é comunicável. E é a rejeição fregeana a esse princípio, com o seu caráter contra-intuitivo, o que mais custa a convencer.
   7. No final de seu ensaio Frege propõe, quase casualmente, a tese de que fatos são o mesmo que pensamentos verdadeiros. Defendida por outros filósofos, essa tese teve uma considerável influência posterior. Com efeito, a palavra 'fato'  em uma sentença como "Que o fogo queima é um fato", pode ser substituída pela expressão 'pensamento verdadeiro', resultando em "Que o fogo queima é um pensamento verdadeiro", o que parece indicar sinonímia. Mas também isso é questionável. Pode ser objetado que uma tal substituição nem sempre é possível: "O que ele pensou é um fato" não pode ser substituído por "O que ele pensou é um pensamento verdadeiro" sem considerável mudança de sentido. Há, além disso, a sugestão recente de que a relação entre o pensamento verdadeiro e o fato é normalmente concebida como sendo de muitos para um, o que tornaria inviável a identificação proposta por Frege(8).


Notas:
1  Ele é positivamente avaliado no influente livro de M. Dummett: Frege: Philosophy of Language, London 1981, cap 13.
2  Um argumento similar encontra-se em W. Künne: "Wahrheit", in: H. E. Martens & H. Schnädelbach (ed.): Philosophie: ein Grundkurs, Hamburg 1986, p. 137.
3   Tomás de Aquino: Suma Teológica, I, Fr. 16, Art. 2. Apud. em W. Künne, ibid. p. 137. 
4  Para Frege, representações só podem ter um único portador, sendo logicamente não compartilháveis: mesmo que uma outra pessoa pudesse penetrar em minha mente para experienciar as minhas representações, as representações por ela experienciadas seriam as suas próprias e não as minhas. Não obstante, esse argumento deixa de ser decisivo se for possível separar (a) a representação, como o objeto mental da experiência, de (b) a própria experiência da representação. Em caso afirmativo, torna-se logicamente concebível que uma outra mente experiencie a minha representação como objeto mental - como eu próprio o faço - mesmo tendo dela a sua própria experiência. Nesse caso a representação seria intersubjetivamente compartilhada, permanecendo incompartilhada somente a sua experiência, tida por cada um de nós. Em um outro lugar tentei evidenciar que essa possibilidade lógica de compartilhamento de representações efetivamente existe, mostrando então que tal admissão poderia ser usada para neutralizar um eventual argumento da linguagem privada, i.e., um argumento que rejeite a linguagem mentalista com base na impossibilidade lógica de correção intersubjetiva de pretensas regras identificadoras de representações (Cf. meu artigo "Das Paradox der privaten Erfahrung", Prima Philosophia, vol. 10, 1997).
5  Uma versão recente dessa espécie de realismo consiste na teoria popperiana dos três mundos, mais imaginativa e menos rigorosa que a ontologia fregeana. Sobre a implausibilidade do realismo fregeano e as razões que o levaram a defendê-lo, ver o artigo de M. Dummett, "Frege’s mith of the third realm", in: Frege and other Philosophers, Oxford 1991.
6  Que os pensamentos são imutáveis e a sua verdade atemporal pode ser aqui interpretado no sentido de que os pensamentos idênticos a X serão sempre idênticos a X, e que a sua verdade ou falsidade deverá ser sempre a mesma de X.
7  Cf., por exemplo, H. Robinson: Perception, London 1994. (Ver nota 4 do presente artigo).
8  J. Searle: The Construction of Social World, London 1995, p. 220. Embora a tese de que fatos são pensamentos verdadeiros me pareça incorreta, não me parece evidente que a relação entre pensamentos (proposições) e fatos deva ser de muitos para um, como pretende Searle. Isso seria correto se um fato fosse concebido como alguma coisa completamente indeterminada, a não ser por sua localização espacio-temporal, sendo esse “x” algo capaz de tornar verdadeiros os pensamentos diferentes acerca dessa região espacio-temporal, expressos por p, q, r... Mas se o fato for concebido como algo tão determinado quanto o pensamento que o descreve - como a teoria correspondencial tradicionalmente pretende - então os pensamentos expressos por p, q, r... dirão respeito a fatos diferentes, ainda que a localização espácio-temporal destes seja a mesma. Em meu artigo “A pragmática das concepção correspondencial” procurei mostrar que, ao menos no que diz respeito a enunciados observacionais, a sua verdade pode ser aceita como a correspondência isomórfica entre um juízo hipotético e o “fato-inseparável-de-juízo” que o corrobora, precisando ser ambos igualmente determinados (ver meu livro A Linguagem Factual, Rio de Janeiro, ed. Tempo Brasileiro, 1996, pp. 139-172; ver também o artigo "Fatos Empíricos", no mesmo livro).








            O PENSAMENTO - UMA INVESTIGAÇÃO LÓGICA(*)

                                                                                                                   Gottlob Frege
       

Assim como a palavra 'belo' à estética e 'bem' à ética, 'verdade' indica à lógica a direção. É certo que todas as ciências têm a verdade como fim; mas a lógica ocupa-se dela de um modo muito diverso. Ela relaciona-se com a verdade um pouco como a física com o peso ou com o calor. Descobrir verdades é a tarefa de todas as ciências; à lógica cabe discernir as leis da verdade. A palavra 'lei' é usada em dois sentidos. Quando falamos de leis morais e civis, temos em mente prescrições que devem ser obedecidas, mas com as quais os acontecimentos nem sempre estão de acordo. Leis da natureza são o que há de geral no acontecimento natural, que a elas sempre se conforma. É antes nesse último sentido que falo de leis da verdade. Claro que não se trata aqui do que ocorre, mas do que é. Das leis da verdade resultam prescrições para o tomar algo por verdadeiro (Fürwahrhalten), o pensar, o julgar, o inferir. É assim que também se fala de leis do pensamento. Mas com isso surge o perigo de se confundirem coisas diferentes. Pode-se  entender  a expressão 'lei do pensamento' como se fosse ‘lei da natureza’, tendo-se em mente traços gerais do pensar como ocorrência anímica. Uma lei do pensamento nesse sentido seria uma lei psicológica. E assim chega-se à opinião de que a lógica trata do processo anímico do pensar e das leis psicológicas segundo as quais este ocorre. Mas com isso seria mal interpretada a tarefa da lógica, pois a noção de verdade não obteria o lugar que lhe é devido. O erro, a superstição, tem as suas causas, tanto quanto o conhecimento correto. O tomar algo falso por verdadeiro e o tomar algo verdadeiro por verdadeiro dependem de leis psicológicas. Uma derivação a partir dessas leis e uma explicação de um fenômeno anímico que resulta em uma opinião não pode jamais substituir uma prova daquilo a que esse tomar por verdadeiro se refere. Mas não é possível que leis lógicas também tenham tomado parte nesses processos anímicos?  Isso eu não quero contestar. Mas quando se trata da verdade, só a possibilidade não basta. É possível que também o não-lógico tenha participado e que ele tenha apartado o processo da verdade. Só podemos decidir sobre isso após termos chegado a conhecer as leis da verdade; mas então provavelmente poderemos dispensar-nos da derivação e da explicação do processo anímico, se o que nos interessa decidir é se o tomar por verdadeiro em que ele resulta, é justificado. Para excluir qualquer mal-entendido e para evitar que se possa obliterar as fronteiras entre psicologia e lógica, concebo como a tarefa da lógica encontrar as leis da verdade, e não as do tomar por verdadeiro ou do pensar. Nas leis da verdade desdobra-se o significado da palavra 'verdade'.
   Primeiro, porém, tentarei esboçar muito cruamente os contornos daquilo que quero chamar de verdade nesse contexto, de maneira a tentar afastar os modos de uso desviantes de nossa palavra. Ela não deve ser aqui usada no sentido de 'veracidade' ou 'autenticidade', nem da maneira como por vezes aparece no tratamento de questões artísticas, quando, por exemplo, se fala sobre a verdade na arte, quando a verdade é apresentada como a finalidade da arte, quando se fala da verdade de uma obra de arte ou de um sentimento verdadeiro. Também se costuma antepor a palavra 'verdade' a uma outra palavra, para se dizer que se quer entender essa última em seu sentido próprio e não adulterado. Também esse modo de uso está fora do caminho aqui perseguido. O que tenho em mente é a verdade cujo conhecimento é colocado como a finalidade da ciência.
   Gramaticamente, a palavra 'verdadeiro' parece designar uma propriedade. Isso nos sugere uma delimitação mais estreita do domínio no qual a verdade é predicada, onde ela pode entrar em questão. Encontramos a verdade predicada de figuras, representações, frases e pensamentos. Nota-se claramente que coisas visíveis e audíveis aparecem junto a coisas que não podem ser percebidas pelos sentidos. Isso indica que deslocamentos de sentido ocorreram. Com efeito: é uma figura, como mera coisa visível e tocável, propriamente verdadeira? e uma pedra, uma folha, não são verdadeiras?  Evidentemente, não chamaríamos a figura de verdadeira se não houvesse uma intenção envolvida. A figura deve representar algo. Também a representação não é em si chamada de verdadeira, a não ser com respeito a uma intenção de que ela deva corresponder a algo. Com base nisso pode-se supor que a verdade consiste na correspondência de uma figura com aquilo que é afigurado. Uma correspondência é uma relação. Mas isso é contradito pelo uso da palavra 'verdade', que não é um termo relacional, não contendo nenhuma indicação de uma outra coisa, à qual algo deva corresponder. Se eu não sei que uma figura tem o propósito de representar a catedral de Colônia, então não sei com o que devo comparar a figura para decidir se ela é verdadeira. Uma correspondência só pode ser perfeita se as coisas que se correspondem coincidem, ou seja, se elas simplesmente não são diferentes. A autenticidade de uma cédula bancária só pode ser comprovada, na medida em que tenta fazê-la coincidir estereoscopicamente com uma cédula autêntica. Mas a tentativa de fazer coincidir estereoscopicamente uma peça de ouro com uma nota de vinte marcos seria ridícula. Comparar uma representação com uma coisa só seria possível se a coisa também fosse uma representação. E, então, se a primeira correspondesse perfeitamente à segunda, elas coincidiriam. Ora, isso é precisamente o que não se pretende quando se define a verdade como correspondência de uma representação com algo real. Pois aqui é essencial que o real seja distinto da representação. Mas então não pode haver nenhuma correspondência perfeita, nenhuma verdade perfeita. Mas então absolutamente nada poderia ser verdadeiro; porque o que é apenas em parte verdadeiro é não-verdadeiro. A verdade não admite um mais ou um menos. Ou será que sim? Não se pode estabelecer que a verdade ocorre quando a correspondência se dá de uma certa maneira? Mas qual? O que precisaríamos então fazer para decidir se algo é verdadeiro? Precisaríamos investigar se seria verdade que - algo como uma representação e algo real - se correspondem da maneira estabelecida. E com isso estaríamos novamente diante de uma questão da mesma espécie, e o jogo poderia começar outra vez. Assim fracassa essa tentativa de explicar a verdade como correspondência. Mas assim fracassa também qualquer outra tentativa de definir a verdade. Pois em uma definição devem ser especificadas certas características. E pela aplicação a qualquer caso particular surgiria sempre a questão de se saber se seria verdade que as características estariam presentes. Girar-se-ia então em círculos. Isso torna provável que o conteúdo da palavra 'verdade' seja sui generis e indefinível.
   Quando se diz que uma figura é verdadeira, não se quer propriamente predicar alguma propriedade que pertença à figura em completa independência de outras entidades; o que se tem em vista com isso é uma coisa completamente diversa, e o que se quer dizer é que a figura corresponde de algum modo a essa coisa. "Minha representação corresponde à catedral de Colônia" é uma frase, e trata-se da verdade dessa frase(**). Assim, aquilo que é impropriamente chamado de verdade de figuras e representações reduz-se à verdade de frases. O que denominamos uma frase? Uma seqüência de sons. Mas isso só quando ela tem um sentido, sem que se queira dizer com isso que cada seqüência significativa de sons seja uma frase. E quando dizemos que uma frase é verdadeira, temos em mente simplesmente o seu sentido. Disso resulta que aquilo a respeito do que a verdade legitimamente pode ser questionada é o sentido da frase. Mas não seria o sentido de uma frase uma representação? Seja como for, a verdade não consiste na correspondência do sentido com alguma outra coisa, pois nesse caso a questão sobre a verdade reitera-se ao infinito.
   Sem querer dar uma definição, chamo de pensamento algo sobre o que a verdade pode ser legitimamente colocada em questão. Também o que é falso conto como sendo um pensamento, tanto quanto o que é verdadeiro(1). Posso então dizer: o pensamento é o sentido de uma frase, com o que não quero afirmar que o sentido de toda frase seja um pensamento. O pensamento, que em si mesmo é não-sensível, veste-se com a roupagem sensível da frase, tornando-se assim apreensível para nós. Dizemos que a frase expressa um pensamento.
    O pensamento é algo não-sensível, e todas as coisas perceptíveis aos sentidos devem ser excluídas do domínio daquilo acerca do que a verdade pode legitimamente entrar em questão. A verdade não é uma propriedade que corresponde a uma espécie particular de impressão sensível. Assim, ela                distingue-se nitidamente de propriedades denominadas por palavras como 'vermelho', 'amargo', 'cheirando a sabugueiro'. Mas não vemos que o sol nasceu? E não vemos então que isso também é verdadeiro? Que o sol nasceu, não é nenhum objeto emitindo raios que alcançam meus olhos; não é uma coisa  visível como o próprio sol. Que o sol nasceu é reconhecido como verdadeiro com base em impressões sensíveis. Todavia, o ser verdadeiro não é nenhuma propriedade perceptível aos sentidos. Também o ser magnético é reconhecido em uma coisa com base em impressões sensíveis, embora essa propriedade, tanto quanto a de ser verdadeiro, não corresponda a nenhuma espécie particular de impressão sensível. Até aqui essas propriedades concordam. Mas para reconhecermos um corpo como sendo magnético, precisamos recorrer a impressões sensíveis. Por outro lado, se eu considero verdadeiro que nesse momento não sinto odor algum, não faço isso com base em impressões sensíveis.
   Ainda assim dá o que pensar, que nós não possamos reconhecer em coisa alguma uma propriedade sem com isso ao mesmo tempo considerar verdadeiro o pensamento de que essa coisa tem essa propriedade. Assim, a cada propriedade de uma coisa associa-se uma propriedade de um pensamento, qual seja, a de ser verdadeiro. Também é digno de nota que a frase “Sinto odor de violetas” tenha o mesmo conteúdo que a frase “É verdade que sinto odor de violetas”. Parece, pois, que nada é adicionado ao pensamento por eu ter-lhe atribuído a propriedade de ser verdadeiro. Contudo, não é um grande sucesso quando o cientista, após longa hesitação e laboriosas investigações, finalmente pode dizer: “O que eu havia conjecturado é verdadeiro”? O significado da palavra 'verdade' parece ser bastante singular. Não estaríamos aqui tratando de algo que, no sentido usual da palavra, de modo algum pode ser chamado de propriedade? Apesar dessa dúvida, quero inicialmente me expressar ainda segundo o uso corrente, como se a verdade fosse uma propriedade, até que algo mais apropriado seja encontrado.
   Para elaborar mais precisamente o que quero chamar de pensamento, distinguirei alguns tipos de frase(2). Não se negaria que uma frase imperativa tem sentido; mas esse sentido não é do tipo acerca do qual se questionaria a verdade. Por isso não chamarei o sentido de uma frase imperativa de pensamento. Igualmente, excluem-se frases que expressam desejos e pedidos. Só aquelas frases com as quais comunicamos ou asserimos algo é que podem entrar em consideração. Mas exclamações, nas quais alguém dá livre curso aos seus sentimentos, gemidos, suspiros, risos, não conto como tais, a menos que, por meio de convenções especiais, sejam destinadas a comunicar algo. Mas que dizer de frases interrogativas? Em uma pergunta com pronome interrogativo (Wortfrage), pronunciamos uma frase incompleta, que somente através da complementação por ela convocada vem a receber um verdadeiro sentido. As perguntas com pronome interrogativo ficam desse modo fora de consideração. Outro é o caso de perguntas em forma de frase. Esperamos ouvir 'sim' ou 'não'. A resposta 'sim' diz tanto quanto a frase assertórica; pois através dela o pensamento, que já se encontra completo na pergunta, é apresentado como verdadeiro. Para cada frase assertórica pode ser assim construída uma pergunta. Eis porque uma exclamação não pode ser vista como uma comunicação: nenhuma pergunta correspondente pode ser construída. Uma frase interrogativa e uma frase assertórica podem conter o mesmo pensamento; mas a frase assertórica contém algo mais, a saber, a asserção. Também a pergunta contém algo mais, a saber, uma convocação. Em uma frase assertórica devem ser portanto distinguidas duas coisas: o conteúdo, que ela tem em comum com a pergunta, e a asserção. O primeiro é o pensamento, ou ao menos o contém. É assim possível expressar um pensamento, sem apresentá-lo como verdadeiro. Em uma frase assertórica ambos vêm tão unidos, que a separabilidade passa facilmente despercebida. Distinguimos, por conseguinte: 

   1. A apreensão do pensamento - o pensar,
   2. O reconhecimento da verdade de um pensamento - o julgar(3),
   3. A manifestação desse juízo - o asserir.

   Ao fazer uma pergunta, já realizamos o primeiro ato. Um progresso na ciência acontece habitualmente do seguinte modo: primeiro um pensamento é apreendido, tal como ele poderia vir expresso em uma pergunta; após apropriada investigação, esse pensamento é finalmente reconhecido como verdadeiro. Expressamos o reconhecimento da verdade na forma da frase assertórica. Para tal não precisamos da palavra 'verdade'. E mesmo quando a usamos, a força assertórica como tal não reside nela, mas na forma da frase assertórica; e onde essa forma perde a sua força assertórica, a palavra 'verdade' também é incapaz de restituí-la. Isso acontece quando não falamos a sério. Como o trovão e a luta em um teatro, que são apenas aparência de trovão e de luta, a asserção no teatro é apenas uma asserção aparente. É apenas representação, ficção. O ator não assere em seu papel; ele também não mente, mesmo quando diz algo de cuja falsidade está convencido. Na poesia temos o caso em que, apesar da forma assertórica da frase, pensamentos são expressos sem que eles sejam realmente apresentados como verdadeiros, embora seja solicitado ao ouvinte um juízo de assentimento. Assim sendo, mesmo naquilo que se apresenta sob a forma de uma frase assertórica, pode ser sempre questionado se contém realmente uma asserção. E essa questão é para ser negativamente respondida quando faltar a necessária seriedade. Se a palavra 'verdade' for usada junto, isso é irrelevante. Assim se esclarece por que nada parece ser adicionado ao pensamento quando se lhe atribui a propriedade de ser verdadeiro.
   Uma frase assertórica muitas vezes contém, além de um pensamento e da asserção, um terceiro componente, ao qual a asserção não se estende. Não raramente ela tem o propósito de agir sobre o sentimento, o humor do ouvinte, ou de incitar sua imaginação. Expressões como 'infelizmente' e 'graças a Deus' pertencem a esse componente. Tais componentes da frase ressaltam-se mais fortemente na poesia, mas raramente estão completamente ausentes na prosa. Eles tornam-se mais raros em exposições da matemática, da física ou da química, do que nas da história. O que é chamado de ciências humanas está mais próximo da poesia e é por isso mesmo menos científico do que as ciências de rigor, que quanto mais rigorosas mais secas são; pois a ciência de rigor é direcionada para a verdade e só para a verdade. Assim, todos os componentes da frase aos quais a força assertórica não se estende, não pertencem à exposição científica. Apesar disso, mesmo para aquele que vê o risco a eles ligado, eles são por vezes difíceis de ser evitados. Onde se trata de se aproximar do que é inapreensível ao pensamento pelo caminho da intuição, esses componentes são plenamente justificados. Quanto mais rigorosamente científica for uma exposição, menos se fará perceptível a nacionalidade de seu autor e mais fácil será traduzi-la. Por outro lado, os componentes da linguagem sobre os quais quero aqui chamar a atenção dificultam em muito a tradução da poesia, tornando uma tradução perfeita quase sempre impossível; pois é precisamente no tocante a esses componentes, sobre os quais uma grande parte do valor poético se apóia, que as línguas mais se diferenciam.
   Se uso as palavras 'cavalo', 'rocim' ou 'pileca', não faz qualquer diferença para o pensamento. A força assertórica não se estende àquilo pelo que essas palavras se diferenciam. O que pode ser chamado de tonalidade, fragrância, iluminação em um poema, o que se desenha pelo tom e pelo ritmo, não pertence ao pensamento.
   Muito na língua serve para facilitar ao ouvinte a compreensão, por exemplo, a acentuação de uma parte da frase pela entonação ou pela disposição das palavras. Pense-se em palavras como 'ainda' e 'já'. Com a frase "Alfredo ainda não chegou" diz-se apenas que Alfredo não chegou e sugere-se que a sua chegada é esperada; mas sugere-se apenas. Não se pode dizer que o sentido da frase é falso só porque Alfredo não está sendo esperado. A palavra 'mas' diferencia-se de 'e' por sugerir que o que a ela se segue está em oposição ao que a ela precedeu. Tais sugestões discursivas não fazem qualquer diferença no pensamento. Pode-se transformar uma frase convertendo a voz ativa do verbo em sua voz passiva e, simultaneamente, transformando o objeto direto em sujeito. Do mesmo modo pode-se transformar o objeto indireto em sujeito, ao mesmo tempo que se substitui 'dar' por 'receber'. Com certeza tais transformações não são inócuas em todos os aspectos; mas elas não afetam o pensamento, não afetam o que é verdadeiro ou falso. Se a inadmissibilidade de tais transformações fosse universalmente reconhecida, então toda investigação lógica mais profunda poderia ser impedida. É tão importante deixar de lado distinções que não afetam o cerne da questão, quanto fazer distinções concernentes ao essencial. Mas o que é essencial depende do propósito. Aquilo que para o lógico é indiferente pode apresentar-se como o mais importante a uma sensibilidade voltada para o belo na língua.
    Assim, não raramente o conteúdo de uma frase vai além do pensamento nela expresso. Mas o oposto também é freqüente, a saber: que a simples enunciação verbal das palavras, a qual pode ser fixada pela escrita ou pelo fonógrafo, não baste para a expressão do pensamento. O tempus praesens é usado de dois modos: primeiro, para fazer uma indicação temporal; segundo, para suprimir qualquer limitação temporal, nos casos em que atemporalidade ou eternidade sejam componentes do pensamento. Pense-se, por exemplo, nas leis da matemática. Qual dos dois casos tem lugar não é expresso, mas precisa ser adivinhado. Se com o praesens é para ser feita uma indicação temporal, deve-se saber quando a frase foi pronunciada para se entender o pensamento corretamente. Portanto o momento da enunciação é parte da expressão do pensamento. Se alguém hoje quer dizer o mesmo que havia dito ontem com a palavra 'hoje', ele substituirá essa palavra por 'ontem'. Embora o pensamento seja o mesmo, aqui a sua expressão verbal precisa ser diferente de maneira a compensar a mudança de sentido que os diferentes momentos de enunciação de outro modo provocariam. O caso de palavras como 'aqui' e 'lá' é semelhante. Em todos esses casos a mera enunciação verbal, que pode ser fixada pela escrita, não é a completa expressão do pensamento; para a sua correta compreensão precisa-se do conhecimento de certas circunstâncias que acompanham o falante, as quais são utilizadas como meios de expressão do pensamento.  A elas podem pertencer o apontar com o dedo, movimentos da mão, olhares. A mesma sequência de sons contendo a palavra 'eu' na boca de diferentes seres humanos irá exprimir diferentes pensamentos, dos quais alguns podem ser verdadeiros, outros falsos.
   A ocorrência da palavra 'eu' em uma frase dá margem a mais algumas indagações.
   Considere-se o seguinte caso. O Dr. Gustav Lauben diz: "Eu fui ferido". Leo Peter ouve isso e reporta, alguns dias mais tarde: "Dr. Gustav Lauben foi ferido". Exprime essa frase o mesmo pensamento que aquele proferido pelo próprio Dr. Lauben? Suponha-se que Rudolf Lingens tenha estado presente quando o Dr. Lauben falou, e que ele agora ouve o que Leo Peter conta. Se o que é proferido pelo Dr. Lauben e Leo Peter é o mesmo pensamento, então Rudolf Lingens, que domina perfeitamente a língua alemã e que se recorda do que o Dr. Lauben disse em sua presença, deve agora, pelo relato de Leo Peter, saber de imediato que ele fala da mesma coisa. Mas o conhecimento da língua alemã não é suficiente quando se trata de nomes próprios. Pode bem ser que apenas uns poucos associem um pensamento determinado à frase "Dr. Lauben foi ferido". Ao perfeito entendimento pertence nesse caso o conhecimento dos vocábulos  'Dr. Gustav Lauben'.  Se ambos, Leo Peter e Rudolf Lingens, entendem por 'Dr. Gustav Lauben' o médico que mora, como único médico, em uma casa bem conhecida por ambos, então ambos entendem a frase "Dr. Lauben foi ferido" do mesmo modo; eles associam a ela o mesmo pensamento. Mas também é possível que Rudolf Lingens não conheça pessoalmente o Dr. Lauben, e não saiba que foi precisamente o Dr. Lauben a pessoa que recentemente disse: "Eu fui ferido". Nesse caso, Rudolf Lingens não pode saber que se trata da mesma coisa. Por isso digo em tal caso: o pensamento que Leo Peter manifesta não é o mesmo que aquele que Dr. Lauben havia proferido.             
    Suponha-se ainda que Herbert Garner sabe que o Dr. Gustav Lauben nasceu em 13 de setembro de 1875 em N. N., e que isso não sucedeu com mais ninguém; em compensação, ele não sabe onde o Dr. Lauben reside agora nem qualquer outra coisa acerca dele. Por outro lado, Leo Peter não sabe que o Dr. Gustav Lauben nasceu em 13 de setembro de 1875 em N. N. Então, no que diz respeito ao nome próprio 'Dr. Gustav Lauben', Herbert Garner e Leo Peter não falam a mesma língua, ainda que com esse nome eles de fato designem o mesmo homem; pois eles não sabem que fazem isso. Herbert Garner não associa, pois, à frase "Dr. Gustav Lauben foi ferido", o mesmo pensamento que Leo Peter quer com ela expressar. Para evitar o inconveniente de Herbert Garner e Leo Peter não falarem a mesma língua, suponho que Leo Peter use o nome próprio 'Dr. Lauben', e que Herbert Garner use, por sua vez, o nome próprio 'Gustav Lauben'. Então é possível que Herbert Garner tome por verdadeiro o sentido da frase "Dr. Lauben foi ferido", enquanto, conduzido ao erro por falsas notícias, tome por falso o sentido da frase "Dr. Gustav Lauben foi ferido". Assim, dentro das assunções feitas, esses pensamentos são diferentes.
    Ao nome próprio importa, portanto, como é apresentada a coisa por ele designada. Isso pode acontecer de diversos modos, e a cada um desses modos corresponde um sentido especial da frase contendo o nome próprio. Os diversos pensamentos que decorrem da mesma frase concordam, certamente, em seus valores-de-verdade, i.é., se um deles é verdadeiro, são todos verdadeiros, e, se um deles é falso, são todos falsos. Não obstante, a diferença entre eles é reconhecível. Propriamente, deveria ser exigido que a cada nome próprio fosse associado um único modo de apresentação da coisa por ele designada. Que essa exigência seja preenchida é freqüentemente prescindível, embora nem sempre.
    Cada um de nós é apresentado a si mesmo de um modo especial e originário, pelo qual não se é apresentado a mais ninguém. Assim, se o Dr. Lauben pensa que ele foi ferido, ele toma por base provavelmente esse modo originário pelo qual ele é dado a si mesmo. E só o próprio Dr. Lauben pode apreender o pensamento assim determinado. Mas ele quis comunicá-lo a outros. Ele não pode comunicar um pensamento que só ele pode apreender. Se ele então também diz: "Eu fui ferido", ele deve usar o 'eu' em um sentido que também seja acessível aos outros, algo como "aquele que nesse momento vos fala"; fazendo isso, ele põe a serviço da expressão do pensamento as circunstâncias acompanhantes de seu dizer(4).
    Contudo, aqui surge uma questão. É realmente o mesmo pensamento, aquele que aquele homem primeiro expressou, e que agora esse outro expressa?
     O homem ainda não influenciado pela filosofia conhece primeiro coisas que ele pode ver, tocar, em suma, perceber com os sentidos, como árvores, pedras, casas, e ele está convencido de que um outro homem pode ver e tocar a mesma árvore, a mesma pedra que ele vê e toca. Um pensamento não faz parte, obviamente, dessas coisas. Pode ele, apesar disso, ser posto diante de uma pessoa como sendo o mesmo, tal como acontece com uma árvore?
   Mesmo o homem não-filosófico se vê cedo na necessidade de reconhecer um mundo interior, diferente do mundo exterior; um mundo de impressões sensíveis, de criações de seu poder imaginativo, de sensações, de emoções, de sentimentos e de estados de alma; um mundo de inclinações, de desejos e de volições. Para dispor de uma expressão breve, quero reunir tudo isso, à exceção das volições, sob o termo 'representação'.
   Pertencem então os pensamentos a esse mundo interior? São eles representações? Volições eles obviamente não são.
   Em que as representações diferenciam-se das coisas do mundo exterior? Primeiro:
   Representações não podem ser vistas ou tocadas, nem cheiradas, nem degustadas, nem ouvidas.
   Eu faço um passeio acompanhado de alguém. Eu vejo um prado verde; tenho com isso a impressão visual do verde. Tenho-a, mas não a vejo.
   Segundo: representações são tidas. Têm-se sensações, sentimentos, estados de alma, inclinações, desejos. Uma representação tida por alguém pertence ao conteúdo de sua consciência.
   O prado e as suas rãs, o sol que os ilumina, estão lá, não importa se eu os vejo ou não; mas a impressão sensível do verde, a qual eu tenho, só existe através de mim; eu sou o seu portador. Parece-nos disparate supor que uma dor, um estado de alma, um desejo, vagueiem pelo mundo na independência de um portador. Uma sensação não é possível sem um ser sensiente. O mundo interior tem como pressuposto aquele do qual ele é mundo interior.
   Terceiro: representações necessitam de um portador. As coisas do mundo exterior são, em comparação, auto-suficientes.
   Meu acompanhante e eu estamos convencidos de que ambos vemos o mesmo prado; mas cada um de nós tem uma impressão sensível particular de verde. Eu avisto um morango entre as folhas verdes. Meu acompanhante não o encontra; ele é daltônico. A impressão de cor que ele recebe do morango não se diferencia perceptivelmente daquela que ele recebe das folhas. O meu acompanhante vê a folha verde vermelha, ou ele vê o morango verde? Ou ele vê ambos em uma cor que me é de todo desconhecida? Essas são questões irrespondíveis, melhor dizendo, absurdas. Pois a palavra 'vermelho', quando não indica uma propriedade de coisas, mas deve designar as impressões sensíveis pertencentes à minha consciência, só é aplicável no domínio de minha consciência; pois é impossível comparar minhas impressões sensíveis com as de um outro. Para tal seria preciso reunir em uma única consciência uma impressão sensível que pertencesse a uma consciência e uma impressão sensível que pertencesse a uma outra consciência. Mesmo se fosse possível que uma representação desaparecesse de uma consciência e que simultaneamente uma representação emergisse em outra consciência, permaneceria ainda para sempre irrespondível a questão de se saber se essa seria a mesma representação. Ser conteúdo de minha consciência pertence, assim, à essência de cada uma de minhas representações, sendo qualquer representação de um outro, como tal, diferente das minhas. Mas não seria possível que minhas representações, que todo o conteúdo de minha consciência fosse simultaneamente também conteúdo de uma consciência mais abrangente, talvez a divina? Sem dúvida, mas somente se eu próprio fosse parte do ser divino. Mas seriam então propriamente minhas representações? Seria eu o seu portador? Ora, isso ultrapassa a tal ponto os limites do entendimento humano, que podemos deixar tal possibilidade fora de consideração. Em todo caso é impossível a nós homens comparar representações de outros com nossas próprias. Eu colho um morango; eu o seguro entre os dedos. Agora o vê também meu acompanhante, o mesmo morango; mas cada um de nós tem a sua própria representação. Nenhum outro tem a minha representação; mas muitos podem ver a mesma coisa. Nenhum outro tem a minha dor. Alguém pode ter pena de mim; mas minha dor pertence sempre a mim e a sua pena a ele. Ele não tem a minha dor e eu não tenho a sua pena.
   Quarto: cada representação tem apenas um portador; dois homens não têm a mesma representação.
   Senão ela subsistiria independentemente desse ou daquele indivíduo. É aquela tília minha representação? Ao usar a expressão 'aquela tília' nessa pergunta, eu simplesmente já antecipo a resposta; pois com essa expressão quero designar algo que eu vejo e que também outros podem observar e tocar. Existem aqui duas possibilidades. Se a minha intenção é realizada, se designo algo com a expressão 'aquela tília', então o pensamento expresso na frase "Aquela tília é minha representação" deve ser obviamente negado. Mas se falho em realizar minha intenção, se eu apenas penso ver sem ver realmente, se a designação 'aquela tília' é portanto vazia, então eu me perdi, sem saber nem querer, no domínio da ficção. Então não são verdadeiros nem o conteúdo da frase "Aquela tília é minha representação", nem o da frase "Aquela tília não é minha representação"; pois em ambos os casos tenho um enunciado para o qual falta o objeto. A resposta à questão só pode ser então recusada com a justificativa de que o conteúdo da frase "Aquela tília é minha representação" é ficcional. Decerto que eu tenho no caso uma representação; mas não é ela o que tenho em mente com as palavras 'aquela tília'. Também poderia ser que alguém com as palavras 'aquela tília' quisesse realmente designar uma de suas representações; ele seria então portador daquilo que quisesse designar com tais palavras; mas então ele não veria aquela tília, e nenhum outro homem a veria ou seria o seu portador.
    Retornando agora à questão: é o pensamento uma representação? Se o pensamento que eu enuncio com o teorema de Pitágoras pode ser reconhecido como verdadeiro, tanto por outros quanto por mim, então ele não pertence ao conteúdo de minha consciência, então eu não sou o seu portador e posso apesar disso reconhecê-lo como verdadeiro. Se não se tratasse de modo algum do mesmo pensamento a ser concebido por mim e por um outro como o conteúdo do teorema de Pitágoras, então não se poderia simplesmente dizer 'o teorema de Pitágoras', mas sim 'meu teorema de Pitágoras', 'seu teorema de Pitágoras', e eles seriam diferentes, uma vez que o sentido pertence necessariamente ao teorema. Então o meu pensamento pode ser conteúdo de minha consciência, como o seu pensamento o conteúdo da sua. Poderia então o sentido do meu teorema de Pitágoras ser verdadeiro e o do seu ser falso? Eu disse que a palavra 'vermelho' seria aplicável somente no domínio de minha consciência, caso ela não apresentasse uma propriedade de coisas, mas devesse designar algumas de minhas impressões sensíveis. Similarmente, também poderiam as palavras 'verdadeiro' e 'falso', tal como as entendo, se aplicar somente ao domínio de minha consciência; tal seria o caso se elas não dissessem respeito a algo cujo portador não fosse eu mesmo, destinando-se a de algum modo assinalar conteúdos de minha consciência. Então a verdade ficaria confinada ao conteúdo de minha consciência, e permaneceria dubitável sobre se algo similar realmente ocorreria na consciência de outros.
   Se cada pensamento requer um portador, a cujo conteúdo de consciência ele pertence, então ele é pensamento apenas desse portador, e não há nenhuma ciência que seja comum a muitos, na qual muitos possam trabalhar; nesse caso talvez eu tenha a minha ciência, a saber, um conjunto de pensamentos dos quais sou o portador, e um outro tenha a sua ciência. Cada um de nós ocupa-se com conteúdos de sua própria consciência. Uma contradição entre ambas as ciências é nesse caso impossível; e será simplesmente ocioso discutir a verdade, tão ocioso e quase tão ridículo quanto seria o caso, se duas pessoas discutissem se uma nota de 100 marcos é autêntica, no caso em que cada qual tivesse em mente a nota que ele tivesse em seu próprio bolso e entendesse a palavra 'autêntico' em seu próprio sentido particular. Se alguém considera os pensamentos como sendo representações, então aquilo que ele reconhece como verdadeiro é, em sua própria opinião, conteúdo de sua consciência, e a outros em nada concerne. E se ele ouvisse de mim a opinião de que pensamentos não são representações, então ele não poderia contestá-la, pois essa opinião também em nada lhe concerniria.
   O resutado parece ser o seguinte: os pensamentos não são nem coisas do mundo exterior, nem representações.
   Um terceiro reino precisa ser reconhecido. O que a ele pertence assemelha-se, por um lado, às representações, por não poder ser percebido pelos sentidos, e por outro lado às coisas, por não precisar de nenhum portador ao qual pertença como conteúdo de consciência. Assim, por exemplo, é o pensamento que proferimos com o teorema de Pitágoras atemporalmente verdadeiro, verdadeiro independentemente de qualquer pessoa o tomar por verdadeiro. Ele não precisa de nenhum portador. Ele não é verdadeiro a partir de quando foi descoberto, assim como um planeta que, mesmo antes que  alguém o tivesse observado, já se encontrava em interação com outros planetas(5).
   Mas uma estranha objeção parece chegar-me aos ouvidos. Eu assumi várias vezes que a mesma coisa que vejo também poderia ser observada por um outro. Mas como seria se tudo fosse apenas um sonho? Se eu apenas sonhasse meu passeio em companhia de um outro, se eu apenas sonhasse que minha companhia, como eu, visse o mesmo prado verde, se tudo isso fosse apenas um teatro representado no palco de minha consciência, então seria dubitável a própria existência de coisas do mundo externo. Talvez o reino das coisas seja vazio, e eu não veja coisa alguma, nem homem algum, mas tenha apenas representações das quais eu mesmo seja o portador. Uma representação, sendo algo que não existe independentemente de mim mais do que o meu sentimento de cansaço, não pode ser um homem, não pode contemplar junto a mim o mesmo prado, não pode ver o morango que eu seguro. Que eu possua apenas o meu mundo interior, ao invés de todo o mundo circundante, no qual eu suponho me movimentar e agir, é por demais inacreditável. Essa é, não obstante, uma conseqüência inevitável do princípio de que só minhas representações podem ser objeto de minha observação. O que se seguiria desse princípio se ele fosse verdadeiro? Existiriam então outros homens? Isso seria possível; mas eu não saberia nada acerca deles; pois um homem não poderia ser minha representação, e, por conseqüência, se nosso princípio fosse verdadeiro, também não poderia ser objeto de minha observação. E com isso seria retirada a base de todas as considerações com as quais eu supus que algo seria objeto para um outro da mesma forma que para mim; pois, mesmo que isso viesse a ocorrer, eu nada saberia a respeito. Ser-me-ia impossível distinguir aquilo de que eu sou portador daquilo de que eu não sou portador. Na medida em que julgasse que algo não seria minha representação, eu o faria objeto de meu pensamento e com isso minha representação. Existe, segundo essa concepção, um prado verde? Talvez, mas ele não me seria visível. Se um prado não é minha representação, então ele não pode, segundo nosso princípio, ser objeto de minha consideração. Mas se ele é minha representação, então é invisível; pois representações não são visíveis. Eu posso, com efeito, ter a representação de um prado verde; mas ela própria não é verde, pois representações verdes não existem. Há segundo essa concepção um projétil com o peso de 100 Kg? Talvez; mas eu não poderia saber nada acerca dele. Se um projétil não é minha representação, então ele não pode ser objeto de minha representação, de meu pensamento. Mas se um projétil fosse minha representação, ele não teria peso algum. Eu posso ter uma representação de um projétil pesado. Essa representação contém então, como parte constituinte, a representação de peso. Essa representação parcial não é, no entanto, propriedade da representação completa, tão pouco como a Alemanha é propriedade da Europa. Disso resulta:
 Ou é falso o princípio de que só aquilo que é minha representação pode ser objeto de minha observação, ou todo o meu saber e perceber limita-se ao domínio de minhas representações, ao palco de minha consciência. Nesse caso eu teria somente o meu mundo interior e nada saberia de outros homens.
  É estranho como no curso de tais considerações os opostos se convertem um no outro. Consideremos, por exemplo, um fisiologista dos sentidos. Como convém a um pesquisador da natureza, ele está desde o princípio muito distante de tomar as coisas que ele está convencido de que vê e toca por suas representações. Ao contrário, ele acredita ter nas impressões sensíveis os testemunhos mais confiáveis das coisas, as quais subsistem na completa independência de seu sentir, de seu representar, de seu pensar, e prescindem de sua consciência. Ele reconhece fibras nervosas e células ganglionares tão pouco como conteúdo de sua consciência, que ele é antes tentado, ao contrário, a ver a sua consciência como dependente de fibras nervosas e células ganglionares. Ele constata que raios de luz refratados no olho encontram os terminais do nervo óptico e lá produzem uma modificação, um estímulo. Disso alguma coisa é transmitida, através de fibras nervosas, a células ganglionares. Isso conduz a talvez outros processos no sistema nervoso, e sensações de cores surgem, as quais se combinam naquilo que talvez chamemos de representação de uma árvore. Entre a árvore e minha representação intercalam-se processos físicos, químicos, fisiológicos. Ao que parece, porém, somente as ocorrências em meu sistema nervoso se conectam diretamente à minha consciência; e cada observador da árvore tem os seus processos particulares em seu sistema nervoso particular. Os raios de luz também podem, antes de penetrarem em meu olho, ter sido refletidos pela superfície de um espelho, propagando-se então como se fossem provenientes de um lugar atrás do espelho. Os efeitos sobre o nervo óptico e tudo o que daí se segue terão lugar exatamente como se os raios de luz fossem provenientes de uma árvore atrás do espelho e se propagassem sem entraves diretamente até os meus olhos. Assim é que a representação de uma árvore também pode dar-se, mesmo quando árvore alguma existe. Também a difração da luz, pela mediação dos olhos e do sistema nervoso, pode dar lugar a uma representação que não corresponde a nada. A estimulação do nervo óptico não precisa sequer da luz para ocorrer. Se um raio cai perto de nós, cremos ver chamas, mesmo quando não podemos ver o próprio raio. O nervo óptico é nesse caso estimulado por cargas elétricas surgidas em nosso corpo como efeito do raio. Se o nervo óptico é através disso estimulado do mesmo modo que por raios de luz provenientes de chamas, então cremos ver chamas. Isso se dá somente pelo estímulo do nervo óptico; como ele se efetua é indiferente.
 Pode ser dado mais um passo adiante. Propriamente falando, esse estímulo do nervo óptico não é algo diretamente dado, mas mera suposição. Nós acreditamos que uma coisa independente de nós estimula um nervo e por meio disso produz uma impressão sensível; mas, estritamente falando, o que vivenciamos é apenas o final desse processo, que se imprime em nossa consciência. Não poderia essa impressão sensível, essa sensação, que nós atribuimos a uma estimulação nervosa, ter também outras causas, assim como o mesmo estímulo nervoso pode surgir por meios diferentes? Se chamamos àquilo que emerge em nossa consciência de representação, então vivenciamos propriamente apenas representações, mas não as suas causas. E se o pesquisador quer manter-se distante de tudo o que for mera suposição, restam-lhe apenas representações; tudo se desfaz em representações, também os raios de luz, as fibras nervosas e as células ganglionares, com as quais ele havia começado. Assim ele termina por solapar os fundamentos de sua própria construção. Tudo é representação? Tudo precisa de um portador, sem o que não possui nenhuma existência? Eu me considerei como portador de minhas representações; mas não sou eu mesmo uma representação? Parece-me assim como se eu estivesse deitado em uma cadeira de repouso, como se visse um par de pontas de botas polidas, a parte da frente de uma calça, um costume, botões, partes de um paletó, especialmente as mangas, duas mãos, alguns fios de barba, os difusos contornos de um nariz. E essa união de impressões visuais, essa representação completa, sou eu mesmo? É também como se eu visse lá uma cadeira. Isso é uma representação. Eu não me diferencio propriamente tanto assim dela, afinal não sou eu próprio também uma união de impressões sensíveis, uma representação? Mas onde está então o portador dessas representações? Como chego a escolher uma dessas representações e instituí-la como portadora das outras? Porque precisa ser essa a representação que eu prefiro chamar de eu? Não poderia igualmente escolher para tal aquela que eu sou tentado a chamar de cadeira? Mas para que, afinal, um portador de representações? Um portador seria sempre algo essencialmente diverso das representações que porta, algo independente, que não precisaria de nenhum portador estranho. Se tudo é representação, então não existe nenhum portador de representações. E assim assisto novamente a uma conversão ao oposto. Se não há nenhum portador das representações, então não há também nenhuma representação; pois representações precisam de um portador sem o qual elas não podem subsistir. Onde não há soberano não há súditos. A dependência da sensação com respeito àquele que a tem, que me senti movido a reconhecer, desaparece quando não há nenhum portador. O que eu denominei representação são então objetos auto-suficientes. Falta então qualquer razão para se conceder um lugar especial àquele objeto que eu chamo de eu.
   Mas é isso possível? Pode ser dada uma vivência sem alguém que a vivencie? O que seria de todo esse espetáculo sem um espectador? Pode haver uma dor sem alguém que a tenha? À dor pertence necessariamente o fato dela ser sentida, e ao sentir pertence ademais alguém que sente. Mas então há algo que não é minha representação e que pode ser objeto de minha consideração, de meu pensamento; eu próprio sou tal coisa. Ou posso eu ser parte do conteúdo de minha consciência, enquanto uma outra parte é talvez uma representação da lua? Tem lugar talvez algo assim quando eu julgo que eu observo a lua? Então essa primeira parte teria uma consciência, e uma parte do conteúdo dessa consciência seria outra vez eu. E assim por diante. Que eu estivesse deste modo em mim mesmo infinitamente encapsulado é de todo impensável; pois então não haveria só um eu, mas uma infinidade deles. Eu não sou a minha própria representação; e se afirmo algo sobre mim, por exemplo, que eu no momento não sinto dor alguma, então meu juízo diz respeito a algo que não é conteúdo de minha consciência, que não é minha representação, a saber, a mim mesmo. Portanto, aquilo sobre o que enuncio algo não é necessariamente minha representação. Mas talvez alguém objete: se eu penso que no momento eu não tenho dor, a palavra 'eu' não corresponde então a algo no conteúdo de minha consciência? E não é isso uma representação? Pode ser. Com a representação da palavra 'eu' pode vir associada em minha consciência uma certa representação. Mas nesse caso ela é uma representação entre outras representações, e eu sou seu portador, como sou portador das outras representações. Eu tenho uma representação de mim, mas não sou eu essa representação. É preciso distinguir com rigor entre o que é conteúdo de minha consciência, a minha representação, e aquilo que é objeto de meu pensamento. É portanto falso o princípio segundo o qual só pode ser objeto de minha consideração, de meu pensamento, o que pertence ao conteúdo de minha consciência.  
   Agora o caminho está aberto para que eu possa reconhecer também um outro homem como portador auto-suficiente de representações. Eu tenho uma representação dele; mas não a confundo com ele próprio. E se enuncio algo sobre meu irmão, então isso não é enunciado da representação que tenho de meu irmão.
   O enfermo que tem uma dor é portador dessa dor; mas o médico que o trata e que reflete sobre a causa dessa dor não é portador da dor. Ele não imagina que possa acalmar a dor de seu paciente anestesiando-se a si mesmo. É verdade que à dor do enfermo pode corresponder uma representação na consciência do médico; mas essa última não é a dor e não é aquilo que o médico se esforça por extinguir. O médico pode consultar um outro médico. Então precisa ser distinguido: primeiro a dor, cujo portador é o enfermo; segundo a representação dessa dor pelo primeiro médico; terceiro a representação dessa dor pelo segundo médico. Essa representação pertence, com efeito, ao conteúdo da consciência do segundo médico; ela não é, porém, objeto de sua reflexão, mas talvez um recurso auxiliar de sua reflexão, como um desenho também pode sê-lo. Ambos os médicos têm como objeto comum a dor do enfermo, da qual eles não são portadores. Deixa-se ver com isso que não só uma coisa, mas também uma representação, pode ser um objeto comum do pensamento para pessoas que não têm tal representação.
  Assim me parece que a questão se torna inteligível. Se o homem não pudesse pensar e tomar como objeto de sua consciência algo do qual ele não é o portador, ele teria certamente um mundo interior, mas não um mundo circundante. Mas isso não pode repousar em um erro? Eu estou convencido de que a representação que associo às palavras 'meu irmão' corresponde a algo que não é minha representação e sobre o qual posso dizer alguma coisa. Mas não posso me enganar quanto a isso? Tais erros acontecem. Caímos, malgrado as nossas intenções, na ficção. Com efeito! Com o passo, pelo qual eu conquisto um mundo circundante, exponho-me ao perigo de errar. E aqui deparo-me com mais uma diferença entre meu mundo interior e o mundo exterior. Eu não posso pôr em dúvida que tenho a impressão visual do verde; mas que eu vejo uma folha de tília não é tão certo. Assim encontramos, contrariamente a uma opinião muito difundida, segurança no mundo interior, enquanto em nossas excursões pelo mundo exterior a dúvida nunca nos abandona de todo. Não obstante, a probabilidade é aqui em muitos casos dificilmente diferenciável da certeza, tanto que podemos ousar julgar sobre as coisas do mundo exterior. E precisamos ousar, mesmo sob o perigo do erro, se não quisermos sucumbir a perigos muito maiores.
   Como resultado das últimas considerações constato o seguinte: nem tudo o que pode ser objeto de meu conhecimento é representação. Eu próprio não sou, como portador de representações, uma representação. Nada me impede agora de reconhecer outros homens como portadores de representações, à semelhança de mim mesmo. E se a possibilidade uma vez é dada, a probabilidade é muito grande, tão grande que ela não se distingue mais da minha concepção de certeza. Haveria de outro modo uma ciência da história? Não seria, se fosse de outro modo, cada doutrina da obrigação e cada direito ilusório? O que restaria da religião? Também as ciências da natureza só poderiam ser valorizadas como ficções, à semelhança da astrologia e da alquimia. Portanto, as reflexões que coloquei em pauta, sob o pressuposto da existência de outros homens além de mim mesmo, que podem junto a mim tomar a mesma coisa como objeto de suas considerações, de seu pensamento, permanecem essencialmente não debilitadas em sua força.
   Nem tudo é representação. Posso assim reconhecer também o pensamento que outros homens, tanto quanto eu, podem apreender, como independente de mim. Eu posso reconhecer uma ciência, a qual muitos se aplicam em pesquisar. Nós não somos portadores dos pensamentos como somos portadores de nossas representações. Nós não temos um pensamento tal como temos uma impressão sensível; nós também não vemos um pensamento, tal como vemos uma estrela. Por isso é aconselhável escolher aqui uma expressão especial. A palavra 'apreender' serve para tal propósito. À apreensão(6) do pensamento deve corresponder uma faculdade mental especial, o poder de pensar. Pelo pensar não produzimos pensamentos, mas os apreendemos. Pois o que chamei de pensamentos está na mais estreita conexão com a verdade. O que reconheço como verdadeiro eu julgo como sendo verdadeiro na completa independência do meu reconhecimento de sua verdade, independentemente mesmo de eu pensar nisso. À verdade de um pensamento não pertence o nele pensar. "Fatos! Fatos! Fatos!", exclama o pesquisador da natureza, quando ele quer proclamar a necessidade de uma fundamentação segura da ciência. O que é um fato? Um fato é um pensamento que é verdadeiro. O cientista da natureza certamente não irá reconhecer como o fundamento seguro da ciência algo dependente dos mutáveis estados de consciência humanos. O trabalho da ciência não consiste em um criar, mas em um descobrir de pensamentos verdadeiros. O astrônomo pode aplicar uma verdade matemática na investigação de acontecimentos há muito passados, que ocorreram quando ainda não havia ninguém na terra que reconhecesse a sua verdade. Ele pode fazer isso porque a verdade de um pensamento é atemporal. Portanto, tal verdade não pode ter surgido primeiro com a sua descoberta.
   Nem tudo é representação. Senão a psicologia conteria todas as ciências em si ou seria, ao menos, o mais alto juiz sobre todas as ciências, dominando também a lógica e a matemática. Mas nada deixaria a matemática mais incompreendida que a sua subordinação à psicologia. Nem a lógica nem a matemática tem como tarefa investigar a mente e os conteúdos de consciência, cujo portador é o homem individual. Talvez se pudesse antes assinalar como sua tarefa a  investigação da mente: da mente, não das mentes.
   A apreensão do pensamento pressupõe alguém que o apreenda, um ser pensante. Ele é então o portador do pensar, mas não do pensamento. Ainda que o pensamento não pertença ao conteúdo de consciência do ser pensante, deve haver algo em sua consciência que tenha em vista o pensamento. Mas isso não pode ser confundido com o pensamento como tal. Também Algol, como tal, é algo diverso da representação que alguém tem de Algol. 
   O pensamento não pertence nem ao meu mundo interior, como representação, nem ao mundo exterior, o mundo das coisas perceptíveis aos sentidos.
   Este resultado, por mais forçosamente que ele possa advir do que foi exposto, não será talvez aceito sem resistência. A alguns parecerá, eu penso, impossível obter conhecimento de algo que não pertença ao seu mundo interior, a não ser pela percepção sensível. De fato, a percepção sensível é freqüentemente vista como sendo a mais segura, até mesmo como a única fonte de conhecimento para tudo o que não pertence ao mundo interior. Mas com que direito? À percepção sensível pertence, é certo, como constituinte necessário, a impressão sensível, e essa é parte do mundo interior. Em todo caso, dois homens não podem ter a mesma impressão sensível, ainda que eles possam ter impressões sensíveis assemelhadas. Elas sozinhas não nos revelam o mundo exterior. Talvez exista um ser que tenha apenas impressões sensíveis, sem ver ou tocar coisas. O ter impressões visuais não é ainda nenhum ver as coisas. Como se dá que eu veja a árvore precisamente lá onde a vejo? Obviamente, isso depende das impressões sensíveis que tenho, e da espécie particular daquelas que resultam de eu ver com dois olhos. Em cada uma das duas retinas surge, fisicamente falando, uma imagem particular. Um outro vê a árvore no mesmo lugar. Também ele tem duas imagens retinianas, mas elas diferem das minhas. Devemos supor que essas imagens retinianas são determinantes para nossas impressões. Conseqüentemente, as impressões visuais que temos não só não são as mesmas, como diferem marcadamente entre si. E mesmo assim movimentamo-nos no mesmo mundo exterior. Ter impressões visuais é de fato necessário para se verem as coisas, mas não é suficiente. O que ainda precisa ser adicionado nada tem de sensível. E isso é exatamente o que nos descerra o mundo exterior; pois, sem esse algo não-sensível, cada qual permaneceria fechado em seu mundo interior. Assim, dado que o fator decisivo permanece no domínio do não-sensível, algo não-sensível, mesmo sem qualquer colaboração de impressões sensíveis, poderia conduzir-nos para fora do mundo interior e possibilitar-nos a apreensão de pensamentos. Fora de nosso mundo interior, deveríamos distinguir o mundo exterior propriamente dito das coisas perceptíveis aos sentidos, e o reino daquilo que não é sensivelmente perceptível. Para o reconhecimento de ambos os reinos necessitamos de algo não-sensível; mas na percepção sensível de coisas são requeridas impressões sensíveis, as quais pertencem inteiramente ao mundo interior. Assim, a diferença entre os modos pelos quais um pensamento e uma coisa são dados baseia-se principalmente em algo que não pertence a nenhum dos dois reinos, mas ao mundo interior. Assim, não posso considerar essa diferença tão grande a ponto de tornar impossível que sejam dados pensamentos não pertencentes ao mundo interior.
   Decerto, o pensamento não é algo que estamos acostumados a chamar de real. O mundo do que é real é um mundo no qual isso age naquilo, modificando-o e, por sua vez, sofrendo reações através das quais se modifica. Tudo isso é um acontecer no tempo. Dificilmente reconheceremos como sendo real o que é atemporal e imutável. É então o pensamento mutável, ou é ele atemporal? O pensamento que enunciamos com o teorema de Pitágoras é, não obstante, seguramente atemporal, eterno, imutável. Mas não há também pensamentos que hoje são verdadeiros, e falsos daqui a seis meses? O pensamento, por exemplo, de que a árvore que lá se encontra está coberta de folhas verdes não será falso após seis meses? Não; pois não se trata mais do mesmo pensamento. Por si mesmo, o som das palavras "Essa árvore tem a copa verde" não basta para a expressão do pensamento, pois o tempo da fala a ela pertence. Sem a determinação do tempo aqui dada pelo momento da fala, não temos nenhum pensamento completo, i.é., absolutamente nenhum pensamento. Só a frase suplementada pela determinação do tempo e em todos os aspectos completa, expressa um pensamento. Esse último, contudo, caso verdadeiro, o é não só hoje ou amanhã, mas atemporalmente. O praesens em 'é verdade' não indica, pois, a atualidade do falante, mas é, se a expressão é permitida, um tempus da atemporalidade. Quando nós simplesmente empregamos a forma da frase assertórica, evitando a palavra 'verdadeiro', duas coisas precisam ser distinguidas: a expressão do pensamento e a sua asserção. A determinação do tempo que pode estar contida na frase pertence somente à expressão do pensamento, enquanto a verdade, cujo reconhecimento é dado pela forma da frase assertórica, é atemporal. É certo que as mesmas palavras podem, devido à variabilidade da linguagem, adquirir com o tempo um outro sentido, expressar um outro pensamento; mas a mudança concerne então ao domínio lingüístico.
   Ora, mas que valor poderia ter para nós o eternamente imutável, que nem sofre efeitos nem os têm sobre nós? Algo inteiramente e sob qualquer aspecto sem efeitos seria também totalmente irreal e inexistente para nós. Mesmo o atemporal, se é algo para nós, precisa de algum modo envolver-se com a temporalidade. O que seria para mim um pensamento que nunca pudesse ser por mim apreendido? Ao apreender um pensamento, porém, entro em uma relação com ele e ele comigo. É possível que o mesmo pensamento que hoje é por mim pensado não tenha sido pensado por mim ontem. Com isso é a estrita atemporalidade do pensamento de fato suspensa. Mas somos inclinados a distinguir entre propriedades essenciais e inessenciais e a reconhecer algo como atemporal, quando as mudanças que ele sofre envolvem apenas as suas propriedades inessenciais. Uma propriedade de um pensamento será chamada de inessencial  se ela consiste ou se segue do fato de ele ser apreendido por um ser pensante.
    Como age um pensamento? Por ser apreendido e tomado por verdadeiro. Isso é uma ocorrência no mundo interior de um ser pensante, que pode ter novas conseqüências nesse mundo interior, as quais, estendendo-se à esfera da vontade, acabam se fazendo notar no mundo exterior. Se eu, por exemplo, apreendo o pensamento enunciado pelo teorema de Pitágoras, uma conseqüência pode ser a de que eu o reconheça como verdadeiro e que, além disso, eu o aplique ao tomar uma decisão que produz aceleração de massas. Assim são as nossas ações habitualmente preparadas pelo pensar e pelo julgar. E assim podem pensamentos ter influência indireta sobre o movimento de massas. O efeito do homem sobre o homem é no mais das vezes mediado através de pensamentos. Comunica-se um pensamento. Como isso ocorre? Produzem-se mudanças no mundo exterior comum, as quais são percebidas por outros, devendo conduzi-los a apreender um pensamento e a tê-lo por verdadeiro. Os grandes acontecimentos da história do mundo poderiam ser realizados de outro modo que não pela comunicação de pensamentos? Somos porém inclinados a considerar os pensamentos irreais, porque eles parecem sem inativos nos acontecimentos, enquanto o pensar, o julgar, o asserir, o entender, são todos ações humanas. Quão diversamente real parece um martelo, se comparado com um pensamento! Quão diversa é a ocorrência da transferência de um martelo daquela pela qual um pensamento é comunicado! O martelo passa de um domínio de força para um outro, ele é tomado, sofre uma pressão e com isso muda a densidade, a disposição de suas partes. Nada disso se dá com o pensamento. O pensamento não abandona, pela comunicação, o domínio de força de quem o comunica; pois no fundo o ser humano não tem o menor poder sobre ele. Sendo apreendido, o pensamento causa mudanças, primeiro só no mundo interior de quem o apreende; mas ele próprio, no âmago de seu ser, permanece intocado, pois as alterações que ele sofre dizem respeito apenas a propriedades inessenciais. Falta aqui aquilo que nós reconhecemos em todos os fenômenos naturais: a ação recíproca. Os pensamentos não são inteiramente irreais, mas a sua realidade é de uma espécie totalmente diferente da das coisas. E a sua eficiência é liberada através da ação do ser pensante, sem a qual ele ficaria sem efeito - pelo menos tanto quanto podemos ver. E realmente, aquele que os pensa não os cria, precisando tomá-los como eles são. Os pensamentos podem ser verdadeiros sem ser apreendidos por um pensador, e não são então totalmente irreais, ao menos enquanto eles podem ser apreendidos e através disso tornados capazes de produzir efeitos.


Notas:
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(*)  O texto de Frege foi originalmente publicado sob o título de "Der Gedanke - eine logische Untersuchung", em Beiträge zur Philosophie des deutschen Idealismus, caderno 2, vol. 1,  pp. 58-77, 1918-19. "O Pensamento" é a primeira e mais importante de uma série de três investigações lógicas internamente relacionadas, todas elas publicadas na mesma revista. A atual tradução, que contou com revisão especializada do professor Marco A. Ruffino, a quem eu gostaria de agradecer. Ela foi primeiramente publicada nos Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, vol. 8, n. 1, janeiro-junho de 1998, sendo republicada aqui com permissão do editor.

(**) (N.T.) O termo alemão 'Satz' foi traduzido como 'frase'. A palavra 'Satz' tem sido em geral traduzida como 'proposição', em parte devido à influência do uso da palavra 'proposition' na literatura filosófica inglesa (Peter Geach, contudo, preferiu em sua tradução de "O pensamento" a palavra 'sentence'). 'Proposição' é, porém, um termo ambíguo, que também pode denotar um conteúdo de pensamento que independe de sua expressão lingüística, o que Frege chama de pensamento. Ora, em português podemos evitar essa ambigüidade, dado que dispomos da palavra 'frase', um equivalente natural e semanticamente mais próximo à palavra 'Satz', que significa em Frege (geralmente) frase com sentido. É verdade que essa tradução mais técnica e menos literal tornou-se usual; mas é sempre tempo de se tentar corrigi-la.

1. Similarmente já foi dito: "Um juízo é algo que é verdadeiro ou falso". De fato, uso a palavra 'pensamento' aproximadamente no sentido de 'juízo' nos escritos dos lógicos. Eu espero que se torne compreensível, no que se segue, porque prefiro a palavra 'pensamento'. Tal explicação tem sido censurada, porque nela é dada uma divisão dos juízos em verdadeiros e falsos, a qual, de todas as divisões dos juízos talvez seja a menos significativa. Mas não posso reconhecer como uma insuficiência lógica o fato de que com a explicação possa ser dada ao mesmo tempo uma divisão. No que diz respeito à relevância da divisão, não se deve menosprezé-la se, como eu disse, a palavra 'verdade' indica à lógica a sua direção.
2. Uso a palavra 'frase' aqui não de todo no sentido gramatical, o qual também inclui frases subordinadas. Isoladamente, uma frase subordinada nem sempre tem um sentido do qual se pode questionar a verdade, enquanto a combinação de frases, à qual ela pertence, tem um tal sentido.
3. Parece-me que até agora não se distinguiu suficientemente pensamento de juízo. A linguagem induz talvez a isso. Nós não temos em frases assertóricas nenhuma parte específica correspondente à asserção; que se afirme vem já implícito na forma da frase assertórica. Em alemão temos uma vantagem no fato de que frase principal e a frase subordinada se distinguem pela ordem de colocação das palavras. Mas é preciso notar que uma frase subordinada também pode conter uma asserção, e que freqüentemente nem a frase principal nem a frase subordinada, tomadas em si mesmas, expressam um pensamento completo, mas só a frase complexa.
4. Não me encontro aqui na feliz situação de um mineralogista, que mostra um cristal de rocha aos seus ouvintes. Não posso colocar um pensamento nas mãos de meus leitores, com o pedido de que eles melhor o observem, de todos os lados. Devo satisfazer-me em apresentar ao leitor o pensamento, que em si é não-sensível, na forma lingüística sensível. Mas aqui o caráter figurativo da linguagem produz dificuldades. O sensível pressiona-se sempre de novo, tornando a expressão figurativa imprópria. Assim surge um conflito com a linguagem, e vejo-me compelido a ocupar-me com a linguagem, embora essa não seja aqui a minha tarefa específica. Espero ter conseguido esclarecer aos meus leitores o que quero chamar de pensamento.
5. Vê-se uma coisa, tem-se uma representação, apreende-se ou pensa-se um pensamento. Quando se apreende ou se pensa um pensamento, não se o cria, mas apenas depara-se com ele, que já existia antes, e isso em uma certa relação que é diferente das relações do ver uma coisa e do ter uma representação.
6. A expressão 'apreender' é tão metafórica quanto 'conteúdo da consciência'. A essência da linguagem não permite algo diverso. O que tenho na mão pode ser considerado como o conteúdo da mão, mas é conteúdo da mão em um sentido muito diverso dos ossos e músculos em que ela consiste e das suas tensões.






Um comentário:

  1. Muito boa a análise. De forma clara e de fácil compreensão. Ajudou bastante

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