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sexta-feira, 11 de maio de 2012

* FILOSOFIA E XAMANISMO: REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A TRADIÇÃO CONTINENTAL

Texto extraído do livro Cartografias conceituais: uma abordagem da filosofia contemporânea (Natal: Edurfn 2008)


                                                      
FILOSOFIA E XAMANISMO: REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A TRADIÇÃO CONTINENTAL

                                Ora, não há porque nos torturarmos angustiados.
                                Pois lá onde faltam conceitos,
                                Lá colocamos uma palavra no momento certo.
                                Com palavras se discute com elegância,
                                Com palavras se constrói um sistema,
                                Em palavras pode-se facilmente acreditar,
                                De uma palavra não se deixa nem um jota roubar.*
                                Mefistófeles, em J. W. Goethe, Fausto
                                                                       

Funções do xamã são a de exorcisar os espíritos maus que habitam os corpos dos enfermos e assegurar a harmonia espiritual aos membros do clã. Em geral os xamãs têm consciência de que tudo o que conhecem são apenas truques, de que a sua magia é ilusória, uma consciência que se perdeu no caso das religiões mais desenvolvidas de nossa civilização. O religioso cristão, por exemplo, acredita honestamente no valor transcendente de seus rituais... Ora, com o filósofo não tem sido muito diferente. Ele freqüentemente age um pouco como o ministro religioso e desconfio que por vezes até mesmo como o xamã, intimado a promover de maneira mágica a regeneração da cultura e a harmonia espiritual das hordas intelectuais. Nesse ensaio pretendo investigar as manifestações xamanísticas da filosofia lá onde elas são mais evidentes, ou seja, na assim chamada tradição continental, que reúne pensadores como Kant, Fichte, Hegel, Husserl, Heidegger e mesmo Habermas, e que foi importada para a França por Sartre e Merleau-Ponty, tornando-se, através de filósofos como Foucault, Deleuze e Derrida, o sangue e a carne da filosofia francesa contemporânea.
                                                                     I

Quero introduzir meus comentários expondo algumas recordações pessoais que remontam à década de 1970. A primeira é do tempo em que, ainda estudante de medicina, pela primeira vez abri o livro de Michel Foucault intitulado As Palavras e as Coisas(1). Ele começava com uma citação de Borges e continuava em uma linguagem requintadamente literária que me deixou maravilhado. Eu quase nada entendia do que estava lendo, mas já sabia que deveria ser a maior expressão do pensamento francês pós-Sartre e, por conseguinte, talvez, a “maior” obra filosófica produzida na segunda metade do século XX.
     Essas impressões ingênuas de leigo, que podem se dar também a outras pessoas que amam a literatura e nada entendem de filosofia, só foram desfeitas anos mais tarde, quando comecei a perceber que as teses mais relevantemente filosóficas sustentadas por Foucault, embora veiculadas em meio a um discurso de grande estilo e sofisticação, tinham muito de trivial ou simplesmente equívoco. A tese central de As Palavras e as Coisas é a afirmação anti-humanista da morte do homem. O homem ainda não existia na época clássica (entre os séculos XVI e XVIII), pois esta se caracterizou pelo domínio da razão e da ciência, nela não havendo espaço para a subjetividade humana. O conceito do humano foi inventado pela modernidade (a partir do iluminismo), tornando-se central através de pensadores como Darwin, Hegel, Marx e Freud. Mas como na atualidade o paradigma epistêmico que permitiu a invenção do humano está desaparecendo, com ele também morre o homem...
     Não me lembro mais dos detalhes dessa tese, mas de minha inocente pergunta acerca da ausência de roupas do rei. Essa pergunta era: se o homem foi uma mera invenção da modernidade, o que dizer do humanismo greco-latino? O que dizer do humanismo renascentista? Foi Sócrates quem colocou pela primeira vez o homem no centro de sua perspectiva intelectual, e o humanismo parece ter-se constituído desde então de exagerações ideológicas de insights legítimos acerca da natureza humana, que podem ter sido mais ou menos tematizados culturalmente em diferentes períodos da história, mas que continuarão a existir, mesmo quando o discurso humanista tiver perdido a sua função ideológica. A época clássica foi apenas um desses períodos em que o discurso humanista voltou a ser latente, após o esgotamento do humanismo renascentista. Também hoje o discurso humanista perde a força ideológica, na medida em que a sua substituição por equivalentes mais científicamente embasados se deixa presentir como necessária e possível. Claro que essas observações seriam vistas por um foucaultiano como inadequadas; o rei está vestido, ele diria, apenas que as suas roupas são invisíveis.
     Ainda quanto a Foucault, quero oferecer um segundo exemplo do tipo autobiográfico. Já desconfiado da importância de Foucault como filósofo, assisti algum tempo mais tarde, em Ipanema, um curso sobre o seu livro História da Sexualidade I(2). Embora o texto seja importante como estudo empírico dos mecanismos culturais de uso e controle da sexualidade, uma tese subliminarmente defendida era a de que Freud estava errado. Ele pensava que a civilização só seria possível através da limitação, controle e adiamento da satisfação sexual, de modo que a sua fórmula um tanto espartana era: “sem repressão, nada de civilização”. Mas para Foucault a nossa civilização, longe de reprimir a sexualidade como meio de permitir a vida civilizada, produz sexualidade. A sexualidade é inventada em formas cada vez mais diversificadas. Não é preciso ver o samba da garrafa para se entender isso.
     A primeira coisa que me veio à mente ao considerar essa idéia foi a tese da dessublimação repressiva proposta por Herbert Marcuse. Segundo esse filósofo, a civilização tecnológica do capitalismo avançado possui mecanismos pelos quais produz o que ele chama de mais-repressão, que é uma repressão que ele considera desnecessária, posto que alienadora e limitadora das potencialidades espirituais do ser humano, mesmo quando as condições econômicas para a sua emancipação já se encontram presentes. Essa mais-repressão se produz principalmente através do mecanismo de dessublimação repressiva, que consiste na liberação de formas insublimadas de erotismo combinadas com um simultâneo controle repressivo de suas formas mais sublimadas, potencialmente perigosas para o funcionamento da sociedade tecnológica. Essa dessublimação institucionalizada age, por exemplo, estimulando o sexo em motéis e ao mesmo tempo ridicularizando a paixão romântica, maximamente exemplificada em clássicos como Anna Karênina e Madame Bovary. A realidade tecnológica, escreveu Marcuse, “limita o alcance da sublimação ao diminuir a energia erótica intensificando a energia sexual”(3). Com isso fica teoricamente explicada a produção da sexualidade constatada por Foucault sem que a equação freudiana, fazendo civilização implicar em repressão, precise ser essencialmente rejeitada.
     Há uma terceira sugestão de Foucault que gostaria de comentar brevemente. Trata-se de sua interpretação e defesa de Nietzsche como um filósofo que vê na verdade uma mera invenção do poder(4). Acho esse um dos pontos mais fracos e contraditórios do pensamento de Nietzsche, um filósofo que por sinal tinha uma saudável aversão aos artifícios retórico-confusivos típicos da filosofia continental. Segundo essa tese a verdade é uma invenção, a servir de instrumento para a aquisição e preservação do poder(5). Essa tese é, como as já discutidas, uma exageração ideológica a partir de um fato socio-cultural que pede um exame isento, no caso, a questão da produção ideológica de pseudoverdades. Uma exageração como essa é uma reação compreensível à defesa do exagero oposto, a crença ingênua naquilo que autoridades declaram verdadeiro, assim como o anti-humanismo de Foucault é uma reação compreensível ao humanismo sartreano, por isso mesmo se tratando de uma ideologia passageira, destinada a perder a sua eficácia com a perda de eficácia daquilo que se lhe opõe. Se levada a sério, no entanto, a tese de que a verdade é mero instrumento do poder é perigosa, pois ao privar as pessoas de um conceito diretivo tão central arrisca produzir efeitos devastadores em sua formação intelectual.
     Com essas considerações não quero avaliar Foucault como pensador, mas como filósofo. Ele parece-me ter sido um historiador da cultura original e iconoclasta, com ricas e penetrantes constatações empíricas. Mas como filósofo ele foi um teórico menor, cujas sugestões mais ambiciosas são geralmente equívocas, quando não constrangedoramente falsas.

                                                                      II

Quero expor ainda outro fato autobiográfico, desta vez sobre Heidegger, que é para muitos o candidato – junto a Wittgenstein – ao título de “o maior” filósofo do século XX (a própria questão parece-me algo equívoca). Foi em um curso que assisti na mesma época sobre o último Heidegger, já no mestrado da UFRJ. Por essa época eu já era estudante de filosofia e não me deixava mais mistificar tão facilmente. Na primeira aula fui informado de que o curso seria um exercício sobre um único minúsculo texto, perdido entre os muitos milhares de páginas desse grafomaníaco pensador. Após uma ou duas aulas tornou-se-me claro que embora o professor tivesse se adestrado em combinar das mais variadas maneiras as tiradas hermético-altissonantes de Heidegger, se o essencial de toda aquela algaravia fosse traduzido em termos civilizados, o resultado seriam trivialidades humanístico-ecológicas do tipo “O ser humano contemporâneo encontra-se alienado da natureza e de si mesmo”. Em suma, algo ao nível do Greenpace. Minha reação foi desaparecer e só voltar no final do curso com um resumo de Ser e Tempo, escrito com base em uma civilizada exposição do essencial por Wolfgang Stegmüller.
      Preciso reconhecer, todavia, que o meu juízo nunca foi de todo negativo. Minha avaliação é bem menos pessimista do que a de Paul Edwards, que, tomando de empréstimo uma classificação do filósofo alemão Adolf Stöhr, qualificou Heidegger como um metafísico glossogônico. Segundo Stöhr, o metafísico glossogônico é aquele que não consegue dizer nada sobre o mundo, mas que consegue rolar palavras; e rolando palavras, nota Edwards, Heidegger sucede em provocar transportes extáticos em algumas pessoas, que acabam por se converter nos pastores e pastoras do ser(6). Diversamente de Edwards, creio que Heidegger foi capaz de discernir idéias importantes sobre o nosso mundo interior, ainda que (como era de uso na filosofia alemã da época) as hiperdimensionasse na forma de mistificações glossogônicas. Mais ainda, Ser e Tempo pareceu-me uma obra de excepcional originalidade e sugestividade. A idéia heideggeriana de que o homem é um ser para a morte, por exemplo, foi artisticamente tematizada de várias maneiras, como no conto de Tolstoy, A Morte de Ivan Ilitch (citado em Ser e Tempo) e na pintura intitulada A Vida, de Picasso. Nessa última, a juventude, o amor e a paternidade, aparecem em primeiro plano, em cores, enquanto a morte e o sofrimento aparecem no fundo, em preto e branco, apenas delineadas. No conto de Tolstoy, Ivan Ilitch um magistrado antes disperso em preocupações fúteis, é despertado para os valores fundamentais da existência pela descoberta de uma doença que logo o conduzirá à morte. Não há dúvida de que a consciência da inevitabilidade e imprevisibilidade da morte molda em profundidade o nosso ser. Por isso a tentativa de estabelecer a relação entre autenticidade e finitude em uma teoria filosófica da condição humana sempre me pareceu aquilo que Heidegger tinha a oferecer de mais original e profundo. Só considerei perda de tempo útil tentar decifrar a algaravia original pelo fato de que o meu interesse maior era mesmo metafísica, e não antropologia filosófica travestida de ontologia fundamental(7).
     Pouco conheço de Heidegger, mas creio que posso fazer aqui uma breve análise desmistificadora do conceito de Ser em sua última fase. O Heidegger dessa fase cisma mais do que nunca com a palavrinha ‘ser’. Pelo que ele pensa, o ser foi esquecido pela tradição metafísica, que depois dos pré-socráticos se tornou decadente. Devemos recuperá-lo. A linguagem é a casa do ser. O homem é o seu pastor... Só os filósofos pré-socráticos tiveram a abertura para experienciar o ser em sua radiante presença, em seu desvelamento sem limites. Já com Platão o ser passou a ser objetivado, a sua presença esquecida. Desde então a história da metafísica instaurou um progressivo esquecimento do ser, um esquecimento revelado no seu pensamento cada vez mais calculador e dominador, que tende a substituir a filosofia pela ciência e se torna cada vez mais dominado pela técnica.
     Essa tese também hiperdimensiona distorcivamente algo verdadeiro. Certamente, após os pré-socráticos a filosofia perdeu a originariedade, no sentido de considerar as questões sem herdar referenciais de pensamento anteriores, como não poderia deixar de ser. Contudo, ser procedente dessa herança, que tem sofrido rupturas em toda a sua história, não significa necessariamente decadência ou perda de vigor, a menos que queiramos considerar Platão, Aristóteles, Kant e Wittgenstein (para não falar de Nietzsche), filósofos menores.
     Mais auspiciosa seria a interpretação da idéia de Heidegger à luz da crítica nietzscheana à “cristianização” da filosofia a partir de Sócrates, à decadência grega, à perda dos valores afirmativos. Mas essa tese é polêmica: a cristianização pode ter sido resultado de uma moral reativa, mas seria uma falácia genética pensar que ela não introduziu novos e legítimos valores, que elevaram o nível da civilização acima do atingido pelo do mundo antigo, por exemplo, pondo fim à escravidão na Europa. Além disso, quem admitiria que, só por causa do cristianismo, Shakespeare ou mesmo Dante são decadentes? Outra dificuldade é que, aos olhos de Nietzsche, a maneira como Heidegger expõe a sua tese – como esquecimento do Ser – também seria vista como decadente, ou seja, como parte da doença que ele propõe tratar.
     O que dizer da tentativa heideggeriana de recuperar o sentido do ser? Em meu juízo, Heidegger utiliza a palavrinha ‘ser’ de forma multiplamente equívoca. O verbo ser, como tal, nada tem de misterioso. Ele possui uma grande variedade de significados na linguagem ordinária. Se você quiser saber o que ele significa, basta abrir o dicionário. A função logicamente mais relevante e comum é a de introduzir uma predicação (ex: “Risoleta é alegre”). Mas ele é usado também para afirmar identidade (“O Everest é o Chomolungma”), ou para indicar existência na linguagem poética (“Aqui sou humano, aqui posso ser”), ou como sinônimo de realidade, estado, permanência etc.
     Filósofos tradicionais compreensivelmente confundiram diferentes sentidos da palavra, produzindo sofismas que não importa considerar aqui. Contudo, em seu uso das propriedades semânticas da palavrinha ‘ser’, Heidegger vai muito além. Como sabemos, quanto mais sem conteúdo for uma palavra, mais facilmente ela adquirirá um sentido metafórico quando sistematicamente usada no lugar de outra. Se em um texto jurídico a palavra ‘o outorgado’ vier sempre substituida por ‘o blablá’, em pouco tempo passaremos a ler ‘o blablá’ como se fosse ‘o outorgado’. Por isso o conceito de ser, tradicionalmente considerado “o mais geral e o mais vazio”, quando posto em sua forma substantivada, é capaz de ganhar novos sentidos em contextos diferentes, funcionando como uma espécie de metáfora universal. Ora, o que Heidegger faz é valer-se dessa indeterminação da palavra ‘ser’ para usá-la de forma multiplamente metafórica, sugerindo com medida arbitrariedade sentidos variados ao sabor do contexto, fazendo isso sem admitir o que está fazendo, mas insistindo que o seu intento é elucidar uma coisa única, o Ser, que em sua transcendência foge à possibilidade de deixar-se adequadamente capturar pelos meios da linguagem, mas que realmente está lá, inacessível ao espírito superficial e despreparado. Minha suspeita, contudo, é a de que todo esse jogo equívoco de significados, insinuados e não-admitidos, falha em captar qualquer coisa verdadeiramente relevante que não possa, em princípio, ser melhor expressa por outros meios.
     Há em meu juízo dois usos principais da palavra ‘ser’ no segundo Heidegger, nenhum dos dois admitido pelo autor, mas sem os quais o seu discurso, já de pouca inteligibilidade, dificilmente seria capaz de se levantar do solo. O primeiro é o multiplamente metafórico, recém-aludido. O Ser (ou mesmo o ente) é uma metáfora para coisas relevantes como o sentido, a essência e, principalmente, Deus. (A assim chamada diferença ontológica entre os entes (ou seres) e o Ser dos entes, por exemplo, pode ser entendida como uma paráfrase laica da diferença teológica entre a criação e o criador, tal como ele é em si mesmo.) Com efeito, se, nos textos de Heidegger, substituirmos palavras como ‘Ser’ pela palavra ‘Deus’, muitas passagens tornam-se até mais claras, revelando-se uma espécie de versão laica de prédicas religiosas. Heidegger, ex-estudante de teologia é, aliás, o endereço certo para quem busca um substituto filosófico para a religião.
     O outro uso não admitido da palavra ‘ser’, apontado por Edwards, é o existencial, mais proeminente no último Heidegger. Ele evidentemente o negaria, mas o contexto de suas considerações mostra que o ser é também entendido como o existir, como atesta a sua ênfase em uma frase como “Nos altos cumes é (existe, permanece, reina a) serenidade”, com a qual ele espera captar o sentido do ser de forma mais genuína(8). Edwards sugere que Heidegger, usando o conceito de ser em seu sentido existencial, redescobre de maneira equívoca a velha idéia sugerida por Kant e desenvolvida por Frege, de que a existência não é propriedade das coisas. Quero antes explicar essa idéia. Quando consideramos um objeto existente, percebemos uma série de propriedades nesse objeto: sua cor, sua forma, sua textura. Mas se procurarmos entre essas propriedades a sua existência, nada encontraremos. No dizer de Frege, a existência não é uma propriedade de coisas, mas de conceitos, qual seja, a propriedade que alguns deles têm de serem aplicáveis ao menos a um caso(9). O conceito de planeta Saturno, por exemplo, tem a propriedade de ser aplicado ao menos a um caso, donde podemos dizer que Saturno existe. A confusão da existência com uma propriedade de coisas é facilitada pela linguagem, que usa a palavra ‘existe’ predicativamente, como se esta denotasse algo pertencente às coisas. Essa confusão teria tido grande importância na Idade Média, quando foi usada como condição para a prova anselmiana da existência de Deus. Hoje não são muitos, porém, os que pensam que a existência seja uma propriedade de coisas. A sugestão de Edwards é de que Heidegger redescobre confusamente a velha idéia de que a existência não é uma propriedade das coisas, mistificando isso na forma do desvelamento de um insondável enigma: a “ocultação do ser”. Essa ocultação escreve Edwards,
...é um modo de referir ao fato de que, quando buscamos a existência nas coisas, nós não podemos encontrá-la; a ‘revelação’ do ser é um meio desnecessariamente apologético de dizer que as coisas, apesar de tudo, existem. Nós podemos honestamente caracterizar a descoberta heideggereana da ‘paradoxal natureza do Ser’ como uma redescrição bombástica desses fatos, que nada faz para esclarecê-los(10).
 Com efeito, essa redescoberta é que permite a Heidegger perguntar-se que ser é esse que não é um ente junto aos entes, mas que subjaz necessariamente a todo ente dado. E com isso voltamos encobertamente ao ser-Deus, pois quem é senão Deus o responsável pelo mantenimento das coisas em sua existência? É, pois, com o auxílio roubado de bacamartes como o ser-existência, o ser-Deus, o ser-essência e ainda um número indefinido de seres cada vez menores, como o ser-belo, o ser-relevante, o ser-melhor... todos eles contextualmente afirmados e explicitamente negados, que Heidegger está preparado para principiar o seu cerco a um mistério tão grande que mesmo muitas milhares de páginas não ousarão decifrar. E por que não? Ora, porque por detrás do remetimento a algo misterioso, que paira além dos meios usuais de expressão lingüística, não há muita coisa além da descontextualização de trivialidades e da fabricação de simulacros.
     Gostaria agora de discutir pontualmente duas teses de Heidegger. A primeira é a de que a verdade deve ser analisada como desvelamento (alétheia). Ele admite que em um sentido secundário a verdade é a adequação do enunciado à coisa, como pensou a tradição filosófica desde Platão. A teologia medieval fundamentou essa adequação recorrendo a Deus, que criou as coisas em adequação com as suas idéias e nos tornou capazes de ter acesso às últimas verificando tal adequação. Deus tornou-se assim o fundamento último da verdade. Heidegger rejeita essa explicação teológica subseqüente, mas a reintroduz mais tarde, transformada, em sua idéia da verdade como desvelamento.
     O argumento de Heidegger pode ser resumido assim(11). Primeiro passo: a adequação depende de um deixar surgir pela originária abertura do comportamento, a qual só é possível onde houver liberdade. Ora, se o que fundamenta a adequação é a liberdade, a essência da verdade não é a adequação, mas a liberdade. Por conseguinte, a essência da verdade é a liberdade. Segundo passo: essa liberdade é o abandono à abertura do que é (das Seiende), ao seu desvelamento; como a palavra grega para a verdade, alétheia, significa também desvelamento, Heidegger conclui que a essência originária da verdade é o desvelamento do que é. Terceiro passo: aqui se descobre que o des-velamento é também velamento; ou seja, a verdade é o re-velar-se do que é em sua totalidade, que ao se mostrar se vela novamente, produzindo assim a experiência do mistério, que define as errâncias inexoráveis do homem historial.
     Uma análise desse sugestivo “argumento” mostra que Heidegger nele combina brilhantemente equívoco, confusão e banalidade. Consideremos o primeiro passo. É possível dizer que a abertura do comportamento – que entendo como o entendimento dos atos verificadores – sendo o que permite a constatação da verdade como adequação, é condicionada a alguma forma de liberdade, pois um ser não-livre, um autômato, que procede à compreensão e verificação de um enunciado, não pode chegar realmente a saber que ele é verdadeiro. Mas é insensato pretender que isso nos permite concluir que a essência da verdade é a liberdade! Se a relação R entre x e y pressupõe uma condição z, isso não significa que z seja a essência de xRy. Ou, em um exemplo concreto: se uma condição da hemofilia de João é que seus pais sejam portadores de genes de hemofilia, isso não quer dizer que a essência da hemofilia de João sejam certos genes portados por seus pais. Além do mais, no mesmo sentido em que a liberdade é uma condição da abertura comportamental (compreensão, verificação), ela também pode ser uma condição de qualquer ato mental e ação racional. Um raciocínio análogo ao de Heidegger poderia levar-nos a concluir que o ato de votar constitui-se essencialmente de liberdade, pois pressupõe a liberdade... Consideremos agora o segundo passo, com o qual Heidegger conclui que a essência da verdade é também o desvelamento. Esse passo é desesperadoramente obscuro e confuso, exigindo o apelo à autoridade filológica do logos grego. E a sua conclusão, de que a verdade não é só a liberdade, mas também desvelamento, é inconsistente, pois a liberdade é uma propriedade do sujeito, enquanto o desvelamento é uma propriedade do ente apresentado ao sujeito. O terceiro passo poderia ser resumido na frase de Heráclito: “A natureza ama ocultar-se”, nada mais tendo a ver com a verdade.
     Cada um desses passos exemplifica uma diferente artimanha discursiva usada pelo autor. No primeiro ela é a do raciocínio equívoco; no segundo é a da obscuridade, que permite provar qualquer coisa; já no terceiro é a da pseudoprofundidade, ou seja, o recurso a um linguajar poético-impressionista-aglutinador, que faz o que é dito parecer muito mais elevado e importante do que realmente é.
     Para exemplificar essa última artimanha, considere a seguinte passagem do texto, acerca do desvelamento que dissimula:

Instalar-se na vida corrente é, entretanto, em si mesmo o não deixar imperar a dissimulação do que está velado. (...) todas essas questões que não surgem de nenhuma inquietude e estão seguras de si mesmas, são apenas transições e situações intermediárias nos movimentos da vida corrente e, portanto, inessenciais. Lá onde o velamento do que é em sua totalidade é tolerado sob a forma de um limite que acidentalmente se anuncia, a dissimulação como acontecimento fundamental caiu no esquecimento(12).

Podemos traduzir isso mais claramente como a seguinte banalidade:

Se consideramos apenas as questões da vida comum, não somos em geral confundidos (o ser confundido só é inevitável em investigações mais aprofundadas).

Considere essa outra pérola retórica sobre a existência humana no erro:

A errância em cujo seio o homem se movimenta não é algo semelhante a um abismo ao longo do qual o homem caminha e no qual cai de vez em quando. Pelo contrário, a errância participa da constituição íntima do ser-aí, à qual o homem historial está abandonado(13).

Traduzido em linguagem civilizada isso quer dizer apenas:

O homem não é alienado apenas de vez em quando; uma certa alienação é parte mesma da condição humana.
     Nossa conclusão é a de que a tese heideggeriana de que a essência da verdade é liberdade e desvelamento dissimulador do ente só ganha algum sentido como uma forma equívoca e impressionante de dizer alguma coisa bem mais trivial, qual seja, que é através do exercício de nossa liberdade que nos tornamos capazes de alcançar as verdades nas quais as coisas se revelam, mas que – dado que somos inevitavelmente falíveis – nossos acertos são fatalmente associados a erros, o que foi demonstrado em todo o curso da história... Quando nos desfazemos dos equívocos e dos artifícios retórico-confusivos que geram a pseudoprofundidade, o que resta arrisca-se a se tornar penosamente trivial, denunciando Heidegger como o mestre supremo na técnica de inflar balões metafísicos.
     Um último exemplo é a tese de Heidegger sobre o nada em “O que é Metafísica”(14). O “argumento” pode ser resumido assim. Há um estado de ânimo que nos revele o nada? Sentimentos como o tédio e a alegria revelam-nos a totalidade do ente e afastam-nos do nada. Mas há um sentimento raro, o da mais profunda e originária angústia, que é capaz de revelar-nos o nada. Nessa angústia de estranha tranquilidade, o ser-aí (Dasein: o ser do homem) torna-se suspenso dentro do nada. Como a essência do nada é o nadificar, o nada nadifica o ser-aí, conduzindo-o à sua transcendência, que é um estar para além do ente na totalidade que lhe foge. Só nessa clara noite do nada surge a abertura para o seu oposto, que é aquilo que é enquanto tal. Sem o nada o ser-aí não teria a revelação do ser enquanto tal, não seria si-mesmo, não seria livre...
     Em que pese aquilo que não quero negar, originalidade, estilo, força sugestiva, a tese de Heidegger sobre o nada só parece ganhar sentido como uma exposição metafórica e poeticamente engrandecida de idéias da psicologia profunda, nas quais a palavra ‘nada’ vem no lugar da expressão ‘sentimento de vazio’ referente ao afastamento dos objetos intencionais na angústia (a fuga do ente em sua totalidade). Tendo isso em mente, a tese de Heidegger sobre o nada pode ser traduzida como algo ainda importante, embora menos portentoso, ou seja: certas formas de angústia produzem em nós um sentimento de vazio tão profundo que faz com que as auto-ilusões que normalmente permeiam e possibilitam a nossa existência cotidiana percam a razão de existir. Quando isso acontece passamos a nos concentrar no essencial, passando a ver a nós mesmos e ao mundo ao redor de forma mais realista e despojada de ilusões, o que no final das contas acaba por fazer-nos mais plenamente livres em nossos julgamentos e escolhas. As últimas horas da vida de Don Quixote, quando este recuperou a lucidez, revendo em consciência plena a absurdidade de sua vida pregressa são exemplificadoras dessa angústia de estranha tranquilidade referida por Heidegger.
     Enfim: se os usos metafóricos de palavras como ‘ser’, ‘ente’, ‘verdade’, ‘nada’... fossem irresgatáveis por apontarem para algo novo, para cuja adequada descrição ainda não encontramos palavras, o discurso heideggeriano poderia adquirir a relevância abissal por ele ambicionada. Mas como as suas metáforas só chegam a fazer sentido quando resgatadas em termos de antropologia filosófica, parece que é sob esse prisma que a sua filosofia pode ser lida com maior proveito.

                                                                        III

Façamos agora algumas considerações de ordem genética. Como começou a tradição continental? Quem foi o culpado? O grande iniciador dessa tradição, lamento informar, chamava-se Immanuel Kant(15). Descartes era claro; Spinoza e Leibniz também. Os empiristas eram todos muito claros. Desde os pré-socráticos, passando por Platão, por Aristóteles e pela grande maioria dos filósofos medievais, a filosofia procedia através de argumentos que pelo menos aspiravam a clareza, ainda que com freqüência esta acabasse inevitavelmente turvada pelas dificuldades intrínsecas ao próprio questionamento filosófico. A regra era: nada de truques. Mas Kant fundou a tradição de fazer poeira em torno das idéias. Sua desculpa foi dizer que não teve tempo para escrever a Crítica de maneira mais clara, mas sabemos que era apenas uma desculpa. Coisas que poderiam ser ditas claramente e em poucas palavras são apresentadas por ele de forma intrincada e altissonante, em um jargão obtuso e pedante, como se fossem revelações de uma pitonisa prolixa. Dificuldades intrínsecas ao sistema – que me parecem patentemente insuperáveis – são ocultadas em meio a emboladas argumentativas, como é o caso da famosa dedução transcendental das categorias (cujo estudo, nas palavras de H. J. Paton, pode ser comparado à travessia do grande deserto árabe).
     O problema é que, como notou P. F. Strawson(16), Kant produziu grande mistificação mesclada a grandes insights, os quais fizeram de sua obra a mais influente e provavelmente a mais importante de toda a filosofia moderna. Essa estratégia, que permitiu a Kant colar as peças de seu sistema, e que ao fazê-lo possui um valor heurístico inegável na exploração das possibilidades de novos veios argumentativos, foi rigorosamente assimilada por Fichte e levada à maturidade no idealismo alemão. Um filósofo como Hegel – também ele um homem de gênio – produziu um sistema omniabrangente que se lê como uma algaravia filosófica desmedidamente ambiciosa e confusa, cujos efeitos fulgurantes se sobrepõem certamente aos méritos mais modestos que possui pela sugestão de idéias seminais em domínios como os da filosofia da cultura, da história e da arte. A continuação da estratégia de produzir um vendaval retórico em torno das idéias com o objetivo de fazê-las parecer mais profundas foi levada ao extremo pelo segundo Heidegger e por filósofos franceses como Gilles Deleuze e Jacques Derrida, nos quais cada vez mais encontramos uma nevoada de experimentalismo retórico descompromissado, que adquire as mais bizarras formas, mas que quando faz sentido o suficiente para poder ser traduzido em linguagem civilizada evidencia-se como banalidade ou bobagem.
     Como pretendo ter feito notar, pode haver um maior ou menor grau de perversão nessas estratégias. Nos piores casos o que vemos é a priorização de artifícios retórico-discursivos que obscurescem o pensamento, que dificultam a detecção da verdade, e que transformam o discurso filosófico numa maneira de fazer a cabeça do leitor; como não há o objetivo de se chegar a um entendimento efetivo sobre coisa alguma, mas apenas o de produzir um efeito de aquiescência e deslumbramento na audiência, o processo todo corre o risco de se tornar emocional, intimidatório e intrinsecamente desonesto(17).
     Pode-se aqui, em defesa da filosofia continental, apelar para as vantagens heurísticas da vaguidade e da obscuridade na construção de uma reflexão filosófica sistemática, o que me parece justo quando pensamos em filosofias como a de Kant e Hegel, ou ainda, no Wittgenstein do Tractatus.
     Mas o que dizer da filosofia continental não-sistemática? Pode-se aqui apelar ainda ao elemento estético, sugerindo que ela pode ser concebida como arte. De fato, há obras de filósofos como Deleuze e Derrida que seriam melhor avaliadas em termos de experimentos estéticos. Quando Derrida publicou Glas, um livro com dois textos paralelos de quase trezentas páginas, “um deles comentando a metafísica sistemática de Hegel, o outro comentando a sodomia sistemática de Jean Genet”(18), o objetivo era claramente o de produzir um shock semelhante ao que é produzido por certas instalações em artes visuais.
     Certo, mas ainda assim é preciso apontar para o fato de que uma coisa é arte, outra filosofia como arte. Há uma diferença categorial relevante entre a situação do filósofo e a do artista, a qual costuma produzir tensões. Como notou Ernst Tugendhat, aprender filosofia não é como aprender a dançar(19). Quando aprendemos a dançar não faz muita diferença entre uma forma e outra: uma pessoa pode dançar o foxtrote pela manhã e o maxixe à noite. Mas em filosofia entra a questão da verdade. E quando duas filosofias sugerem soluções opostas para um mesmo problema é porque uma delas deve estar certa ou pelo menos mais próxima da verdade em um ou mais aspectos. O mesmo não acontece com a arte. Obras de arte não competem entre si, uma delas sendo boa apenas se a outra for ruim e vice-versa. A arte não é diretamente heurística: com ela nós não pretendemos comunicar a verdade ou conduzir o intelecto. A arte é apenas ilusão consciente, e a grande arte é a ilusão consciente capaz de produzir em nossas mentes ao menos uma aptidão para uma ampliação de nossa compreensão da condição humana, o que pode (mas não precisa) nos orientar em direção à verdade. Esse caráter não-diretivo da relação entre arte e verdade impede que a arte qua arte seja mistificadora. Mas o mesmo não pode ser dito de ao menos parte do que se escreve sob a rubrica de filosofia continental. Embora haja exceções (como os devaneios de Bachelard, que são limítrofes à arte e não objetivam impingir-nos coisa alguma) o estilo continental pode não ser tanto o da ilusão consciente, mas o de uma filosofia da ilusão, oposta a da verdade. Produzem-se ilusões ideológicas que fazem de conta que são a revelação da verdade, ou, se ela for suposta não existir, ao menos fazem de conta que são a revelação de algo que se encontra além da mera ilusão, numa auto-indulgência que arrisca a fazer desse estilo filosófico, diversamente da arte, uma atividade pueril e mistificadora. O resultado, se levarmos as suas conclusões demasiado a sério, pode ser oposto ao da experiência estética, terminando em um estreitamento dogmático de nossas aptidões para perceber novas e mais legítimas alternativas em nossa visão da realidade.
     Podemos nos perguntar pela razão da emergência de uma filosofia da ilusão em contraste com a filosofia da verdade. Uma razão pode ser encontrada em Nietzsche, um filósofo que por ser claro e usar argumentos metafóricos, mas não retórico-confusivos, não pertence exatamente ao gênero dos filósofos continentais que exemplificam as minhas considerações. Para ele esse modo de filosofar seria uma manifestação da decadência, do nihilismo, servindo à fraqueza do ser humano que precisa da ilusão para suportar a vida. Essa ilusão pode ser propiciada pela religião, mas também pela retórica discursiva deliberadamente obscura e pseudoprofunda, tão comum à filosofia continental. Paradoxalmente, uma comparação nietzscheana entre Nietzsche e Heidegger sugere considerarmos o primeiro como o filósofo da afirmação destemida (apesar de patologicamente exagerada) dos valores vitais e o último como uma vítima do nihilismo, a refugiar-se em um universo de simulacros verbais sempre mais poéticos e vazios.
     Quero terminar considerando algo acerca da relação entre filosofia continental e sofística. A filosofia continental por nós considerada distingue-se por ser mais voltada para a produção de ilusão do que para a aproximação da verdade. Se o filósofo continental, mais do que outros, é um vendedor de ilusões, não seria ele um exemplar daquilo que Platão chamou de sofista? Sem cair no grande erro que seria o de identificar a filosofia continental com a filosofia sofista, quero sugerir que ela foi o principal veio do pensamento sofista no século XX, em alguns casos mais do que em outros.
     Contudo, como esse veio mistificatório não é de modo algum o único, e como a filosofia analítica ou pós-analítica anglo-americana-australiana acabou se tornando plenipotenciária, sou forçado, para ser equitativo, a adicionar um breve excurso sobre os elementos sofísticos que vigem dentro desse novo estilo filosófico.

                                                                          IV

O primeiro e mais grave defeito da filosofia analítica contemporânea foi em meu juízo apontado por P.F. Strawson e se chama cientismo(20). Ele consiste, creio, em uma excessiva assimilação de procedimentos e questionamentos típicos das ciências particulares pela filosofia. Uma conseqüência disso é um hipertecnicismo aleatório. Outra é uma espécie de fragmentação positivista do campo da investigação filosófica, que a faz perder o direito a tentativas de síntese mais amplas, à abrangência que sempre a caracterizou, substituindo-a por uma multiplicação sem fim de discussões conflitantes umas com as outras e cada vez mais particularizadas(21). Wittgenstein e Habermas me parecem ter sido, cada qual ao seu modo, os últimos filósofos de maior importância capazes de resistir com sucesso a essa tendência.
     Dentro do cientismo, há um procedimento que eu gostaria de apontar como particularmente problemático e que está ligado a certo descompromisso da investigação com a verdade e com qualquer visão totalizadora da realidade. Ele consiste no desenvolvimento de idéias que se chocam de modo frontal e – o que é decisivo – perfeitamente gratuito com o senso comum, perdendo nisso a espécie de equilíbrio reflexivo que bem ou mal havia sido conservado na tradição filosófica(22). Nos Estados Unidos, o expoente fundador dessa tendência foi W. V-O. Quine, particularmente com as suas famosas teses da indeterminação da tradução, da referência etc. Embora essas teses sejam brilhantemente argumentadas e intelectualmente incitantes, eventualmente ensinando-nos coisas importantes ao forçar-nos a refutá-las, isso não nos deve fechar os olhos para o fato de que elas são obviamente falsas. Como ouvi de J. R. Searle, a estratégia de Quine é: “Se você chegar a uma conclusão totalmente implausível, não culpe o argumento; proclame-a uma descoberta!”.
     Devido às liberdades propiciadas pela ênfase formalista influenciada pela filosofia da linguagem ideal (que abstrai nossas intuições semântico-pragmáticas), essa estratégia denunciada por Searle foi brilhantemente assimilada por Saul Kripke (com a sua irresgatável doutrina do “batismo” dos nomes próprios), Hilary Putnam (que defendeu a existência de pensamentos fora das mentes), David Lewis (que nos quis fazer acreditar que os mundos possíveis existem), e Timothy Williamson (que inventou um argumento para demonstrar que o conhecimento é algo primitivo e externo). Essa estratégia anti-intuitiva transbordou para além do formalismo em filósofos como Daniel Dennett (que tentou mostrar que a consciência fenomenal é uma ilusão) e ainda em Richard Rorty (que rejeitou a possibilidade da epistemologia). Rorty foi, aliás, um imaginoso escapista, cujo pensamento pode se tornar particularmente debilitador ao conjugar em um único discurso as duas fontes de sofisma acima mencionadas: de um lado, a rejeição gratuita das intuições do senso comum, de outro, o recurso a uma argumentação retórico-literária,indireta e externa(23).
     Parece, pois, que o xamanismo filosófico mantém-se, hoje não menos do que sempre, um fenômeno insidioso e ubíquo que, à semelhança de um vírus dotado de um prodigioso poder de mutação, se adapta facilmente a qualquer novo estilo filosófico que venha a ser adotado.

Notas:
* “Nur muss man sich nicht allzu ängstlich quälen;/ Denn eben wo Begriffe fehlen,/ Da stellt ein Wort zur rechten Zeit sich ein,/ Mit Worten lässt sich trefflich streiten,/ Mit Worten ein System bereiten,/ An Worte lässt sich trefflich glauben,/ Von einem Wort lässt sich kein Jota rauben.“
1 Michel Foucault: Les Mots et les Choses (Gallimard: Paris 1966).
2 Michel Foucault: Histoire de la Sexualité (Gallimard: Paris 1976).
3 Herbert Marcuse: Ideologia da Sociedade Industrial (trad. bras. de The Unidimentional Man) (Zahar: Rio de Janeiro 1969), p. 83. Parece-me que uma das ilusões difundidas por Marx e assimilada de maneira não-crítica pela escola de Frankfurt foi uma crença idealizada na capacidade humana de viver em consciência plena da realidade, caso as meras condições econômicas o possibilitem – uma crença negada por Freud e de modo muito vívido também por escritores como Dostoiévski e Ibsen. Há nisso certa redução do psicológico ao social. Se levarmos em conta esse fato, veremos que a dessublimação repressiva não costuma ser um produto dispensável, imposto pela ordem econômica, mas algo que tem nascido espontaneamente como uma alternativa que o ser humano encontra, em uma sociedade inevitavelmente estratificada e diversificada, para fazer face às contingências que o envolvem.
4  Ver “Verdade e Poder” e “Nietzsche, a Genealogia e a História”, em Michel Foucault: Microfísica do Poder, Roberto Machado (ed.) (Rocco: Rio de Janeiro 1979). A favor de Foucault já foi notado que ele nunca defendeu explicitamente essa idéia. Mas por que não se preocupou em desfazer o mal-entendido?
5 Foucault sugere que os discursos, i. é, as produções culturais resultantes das epistemes (dos pressupostos das manifestações culturais de cada época) não são comparáveis entre si, sendo as suas verdades relativas. A tese é paralela à de Tomas Kuhn, que sugeriu serem os paradigmas científicos (i.é, os pressupostos das ciências de cada época) não-comparáveis (incomensuráveis) entre si, sendo as suas verdades também relativas. A tentação é a mesma, mas a conclusão de Foucault, se ficar restrita aos incertos saberes não-científicos, é mais admissível do que a de Kuhn, concernente à ciência.
6 Paul Edwards: “Heidegger’s quest for Being”, Philosophy, 64, 1989.
7 Sobre isso é bom notar que Heidegger sugeriu em Ser e Tempo que pelo fato de (1) “formularmos a pergunta sobre o sentido do ser” nos tornamos, como seres humanos (Daseins), (2) “o tipo de entidade cujo ser deve ser propriamente questionado”, o que para ele dá à sua antropologia o direito de tornar-se ontologia fundamental. Mas nada garante que (1) implica em (2). Por exemplo: o fato de eu formular uma pergunta sobre a natureza de coisas visíveis, e o fato de meu corpo ser uma coisa visível minha em um sentido peculiar, não me obriga a pensar que meu corpo deva ser o objeto mais apropriado de uma investigação sobre a natureza das coisas visíveis. Contudo, essa maneira de ver implausível está na base de uma fértil perversão antropocentrista da maneira de se entender a filosofia e a sua história.
8 Martin Heidegger: Introdução à Metafísica (Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro 1999), p. 116.
9 Gottlob Frege: Die Grundlagen der Arithmetik (Felix Meiner: Hamburg 1988 (1884)), par. 53.
10 Paul Edwards: Ibid, p. 464.
11 Martin Heidegger: “Sobre a Essência da Verdade”, in col. Os Pensadores, vol. XLV (Abril Cultural: São Paulo 1973), pp. 340-41 (“Vom Wesen der Wahrheit“, in Wegmarken (Vittorio Klostermann: Frankfurt 1996) pp. 177-202).
12 “Sobre a Essência da Verdade”, p. 340 (Cf. Wegmarken, p. 195). O método de parafrasear em linguagem comum o que filósofos escrevem foi usado por Popper em sua crítica a Adorno em “Reason or Revolution?”, publicado em K. R. Popper: The Mith of the Framework: In Defense of Science and Rationality, ed. M. A. Notturno (Routledge: London 1994), p. 73.
13 “Sobre a Essência da Verdade” pp. 340-1 (Cf. Wegmarken, p. 196).
14 Martin Heidegger: “Que é Metafísica?”, in col. Os Pensadores (Abril: São Paulo 1973) (“Was ist Metaphysik?”, Wegmarken, pp. 103-122)
15 Devo essa sugestão ao professor Fernando Fleck.
16 P. F. Strawson: The Bounds of Sense (Methuen & Co.: London 1968), prefácio. Pode-se objetar que meu juízo é demasiado severo, pois a falta de clareza pode ter um valor heurístico ao permitir que certas visões de mundo sejam sistematicamente desenvolvidas até o limite de sua racionalidade. Um bom exemplo disso é o Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein. Com efeito, a virtude máxima da filosofia continental encontra-se em ter produzido visões sistematizadoras e abrangentes do mundo (Weltanschaungen), o que inclui um momento de síntese especulativa legítima que a torna diversa da filosofia analítica anglo-americana, mais facilmente modelada por uma fragmentação positivista e cientificista do universo do saber. A questão da falta de clareza é, contudo, quantitativa. Há um limite muito flúido, para além do qual o uso de recursos retórico-discursivos deixa de sugerir possibilidades enriquecedoras e começa a assumir uma função tuteladora e limitadora do pensamento. É a transposição desses limites que importa considerar aqui.
17 Brian Magee resumiu esse ponto de forma um tanto dura nas seguintes palavras: “Como forma de treinamento mental a filosofia continental é contraprodutiva: ela ensina os estudantes a se exprimirem inautenticamente – em um jargão morto mais do que em uma linguagem viva, portentosamente mais do que simplesmente, obscuramente mais do que claramente – e a abandonar o argumento racional pela retórica. Ela ativamente treina-os a não pensar e a serem falsos; e ao fazer essas coisas ela corrompe as suas mentes”. B. Magee:  Confessions of a Philosopher (Modern Library Paperbacks: New York 1999), p. 429.
18 Paul Strathern: Derrida em 90 Minutos (Zahar: Rio de Janeiro, 2002), p. 61.
19 Ernst Tugendhat: Vorlesungen zur Einführung in die Analytische Sprachphilosophie (Suhrkamp: Frankfurt 1976), prefácio.
20 P. F. Strawson: Scepticism and Naturalism: Some Varieties (Columbia University Press: New York 1985).
21 Para uma apologia desse modo de pensar, ver o epílogo da obra de Scott Soames, Philosophical Analysis in the Twentieth Century (Princeton University Press: Princeton 2003), vol II, intitulado “A era da especialização”.
22 Considerando a cosmovisão religiosa da época, o choque com o senso comum, por exemplo, em Leibniz ou Berkeley, nada tem de gratuito. Parece que na filosofia analítica o equilíbrio reflexivo ideal encontra-se a meio caminho entre a superficialidade de uma filosofia da linguagem ordinária que não vai muito além de uma lexicografia e a arbitrariedade de uma filosofia da linguagem ideal que depende da constante invenção de novos usos para palavras comuns, sem encontrar justificação suficiente para tal.
23 Para uma crítica a Rorty e ao relativismo contemporâneo, ver o livro de Susan Haack, Manifesto of a Passionate Moderate: Unfashionable Essays (Chicago University Press: Chicago 1998).

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